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Corações partidos fazem chover

Imagem gerada pelo Midjourney

Do topo de um prédio, duas pessoas vestindo capas de chuva amarelas observavam um mundo cinza a seu redor, do céu aos prédios convertidos em pesadas nuvens de vidro, aos carros impacientemente engarrafados, ao asfalto encharcado sob os veículos.

O mais baixo tremia de frio, e mantinha as mãos nos bolsos da capa. Seu celular vibrava no bolso da calça com contínuas notificações. Ele sabia que precisava aproveitar ao máximo aquele exótico e raro encontro, mas mesmo assim estava tenso, como se o corpo reagisse numa espécie de crise de abstinência por não obedecer ao chamado imperioso do aparelho eletrônico que exigia atenção.

O mais alto apenas observava a chuva, que caía sobre as capas fazendo plec-plec. Não se movia, nada falava. Quando respirava, uma tênue nuvem de vapor se misturava às nuvens baixas que os cercavam.

O mais baixo rompeu o silêncio.

— Então… você disse que eu iria entender o impacto de minhas ações aqui, mas tudo que vejo é chuva. Minha empresa faz muitas coisas, mas chover ainda não é uma delas.

— Você tem pressa — respondeu a figura alta. Com as costas das mãos de dedos longos e pálidos, ele enxugou a testa. Depois, ficou alguns segundos observando as gotas escorrendo pelos dedos e pela mão. Estudava atento como elas demoravam alguns segundos a se misturar com os pingos de chuva — Você sabe de onde vem a chuva?

O mais baixo começou a pensar seriamente que aquilo tudo poderia ser uma pegadinha. Desde que acordou estava acompanhando aquela figura alta, que diz ser seu Guardião, Anjo da Guarda, Tutor ou algo assim. Já tinha viajado meio mundo, revisto cenas de sua infância e até mesmo ouvido o que seus funcionários falavam dele, como se invisível fosse. Ou essas experiências eram reais ou ele precisava patentear urgentemente a droga ou tecnologia que esse maluco estava usando. De qualquer forma, achou melhor ele dar corda e seguir com aquilo.

— Da evaporação, o vapor se condensa nas nuvens…. ah, você deve querer falar de Amazônia, rios voadores… olha, tá frio, eu tô todo molhado, e se a ideia é me dar alguma visão educativa, isso não tá funcionado — Ele tirou as mãos dos bolsos da capa de chuva e gesticulava. O telefone vibrava em seu jeans.

O mais alto se virou e o encarou com o rosto fino e pálido. A expressão tanto podia ser desprezo como pena.

O mais baixo sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Provavelmente era o frio. Então notou que o celular já não vibrava mais. E que seu smartwatch, que teoricamente era à prova d’água, já não passava de um quadrado preto em seu pulso.

Uma espécie de paz o invadiu. Ia comentar o fato, mas foi o Guardião que falou primeiro.

— Corações partidos. Corações partidos fazem chover. Não sobre a pessoa, como nas histórias em quadrinhos em que uma personagem tem uma nuvem preta sobre a cabeça — olhou para o céu e para as nuvens escuras cobrindo toda São Paulo — Sempre que alguém transborda de tristeza mas não chora, as lágrimas não vertidas viram chuva em algum lugar.

O executivo tentou falar alguma coisa, mas achou mais prudente apenas ouvir. O Guardião percebeu o gesto de resignação e fez um aceno com a cabeça sob o capuz amarelo-ovo que pareceu, ao mais baixo, um sinal de aprovação.

— Quanto mais pessoas sofrendo, e quanto mais elas guardam o sofrimento para si, mais lágrimas caem do céu. Todo mundo tem seus dias ruins. E todos tem dias solares, alegres. Eles se equilibram. Se não fossem os dias ruins, que valor teriam os bons? — o Guardião começou a caminhar lentamente pela borda do terraço, contornando o heliporto. O executivo o acompanhou, feliz por pelo menos poder se mexer um pouco para afastar o frio.

— Mas se as pessoas ficam mais e mais tristes e não têm com quem chorar, esse equilíbrio se afeta. E há o outro lado também. Se as pessoas simplesmente param de sentir, pessoas com rostos doces e adoráveis sem nada dentro.. nesses casos não há nem chuva, nem sol. O deserto de suas almas se espalha como mares de areia em seu planeta.

— “Meu” planeta? — o executivo não conseguiu segurar a pergunta, enquanto parte de seu cérebro tentava processar esse mar de informações tão distante de sua realidade quanto a piscina em forma de lua de um condomínio vizinho ao prédio de sua empresa de tecnologia, onde estavam. Qual teria sido a última vez em que ele tinha ido a uma piscina com a família? Não lembrava.

— Acho que você já tem informações demais para processar, não tem? Vamos voltar ao assunto principal e motivo de ter me revelado a você de forma tão explícita e didática — O Guardião usou um tom repleto de autoridade, e não restou ao executivo outra opção a não ser voltar ao tema da chuva e dos sentimentos.

— Tá, desculpe. Você quer me dizer que o clima, na verdade, é causado pelos sentimentos das pessoas. E se o sentimento das pessoas varia fora do normal, o clima fica fora do normal.

— Muito bem. Parece que você finalmente está entendendo — abriu os braços com as palmas das mãos abertas — Sinta a chuva. Apenas sinta. Olhe a seu redor. Veja o mar de lágrimas. É um mar de desilusões, mas também de redenção. Pessoas colocando a dor para fora, empilhando sofrimento em sacos pretos e levando para a calçada, para poderem varrer suas almas e reorganizar suas vidas.

Ele imitou o Guardião. Percebeu as gotas. Fechou os olhos. Não como um clima ruim que atrapalhava seu dia e o fazia sentir frio, mas como histórias. Cada gota como a história de alguém que se conectava a ele de forma tangível.

Não teve muito tempo para aproveitar a nova sensação. Uma claridade forte invadiu suas pálpebras fechadas, e pôde perceber cada gota evaporando rapidamente de seus cabelos e da pele dos braços. Abriu os olhos e estavam, ele o Guardião, no alto de uma duna em um dia ensolarado no deserto. Percorreu o horizonte a seu redor. Dunas. Areia por toda parte e nada mais que areia para qualquer lado que se virasse. Os pés afundavam sob o solo fofo.

— Esse é o oposto da chuva. O oposto da tristeza não é a alegria, mas o vazio, a apatia. Quanto mais pessoas escolhem não sentir, mais árido fica este deserto. E mais áreas outrora verdes, cheias de vida e sentimentos, se transformam em apenas areia.

— Tá, mas e aquele papo de aquecimento global? E tem também catástrofes, tipo furacão, terremoto… eles também deixam estragos… — aquela conversa fazia cada menos sentido para o executivo. Ou era uma parte de si que já sabia para onde o papo seguiria e se antecipava, com medo, ao veredito. Ele se sentia como o velho Scrooge ao lado do Fantasma do Natal Passado, e não se sentia bem em viver aquele papel.

— As coisas estão interligadas. E, sim, não adianta você amar as pessoas e queimar florestas e petróleo. Continuem com esses cuidados — explicou o Guardião, esboçando o que parecia um leve sorriso. — Quanto às catástrofes… bem, lágrimas alimentam as chuvas, a apatia torna o mundo um deserto. Mas quando muitas pessoas se quebram, o mundo se quebra junto. Você sabe, quando alguém perde o controle, não aguenta mais… quando a pressão é tanta que ela explode… para o humano, é uma explosão em sentido figurado, ainda que muitas vezes seja fatal, mas para o planeta, são explosões violentas. Vulcões, terremotos, furacões.

O executivo se abaixou. Pegou um punhado de areia, quente e amarelada. Ela escorria por entre seus dados, fina como a areia de uma ampulheta. A sensação era absolutamente real. Tanto quanto o sol queimando sua nuca. Percebeu então que já não usavam as capas de chuva amarelas, mas roupas grossas que os faziam parecer dois beduínos no meio do Saara. Não tinha como aquilo ser um sonho, alucinação ou realidade virtual.

Ele sentiu que era hora de chegar ao ponto final desta viagem.

— Ok. O que eu faço? O que você espera de mim?

— Eu não espero nada — respondeu o Guardião, olhando para o sol sem que sua luz parecesse incomodar — Eu lhe guardo, não o comando. E meus, digamos, colegas guardam outras pessoas e me pediram para conversar com você. Não lhe peço nada, apenas que reflita sobre seu papel nisso tudo.

— Meu papel? Peraí, não sou presidente de um país, eu não tenho fábricas poluindo. Eu só trabalho com tecnologia, crio aplicativos.

— Como é que vocês chamam aquilo que vocês usam para… orquestrar a forma como as pessoas usam seus… aplicativos?

— Algoritmo?

— Isso. Algoritmo. Como ele funciona?

— Ele ajuda as pessoas a encontrarem conteúdos. Se ela vê tal coisa, o sistema mostra mais coisas parecidas, e por aí vai.

— E com isso elas ficam bastante tempo vendo o mundo por seus aparelhos, não é? E se o… algoritmo entende que elas estão com uma determinada emoção ou ideia, mostra mais coisas com a mesma emoção e ideia.

— É, isso mesmo — o executivo tremia. Não entendia muito de emoções represadas e lágrimas, mas sabia muito bem prever para onde um raciocínio pretendia levar o interlocutor.

— Então…

— Então eu afeto o sentimento das pessoas para poder lucrar com publicidade. E eu faço com que elas, no fim, ou explodam ou simplesmente virem… desertos, pessoas ocas.

— Muito bem. Você finalmente entendeu.

— Mas que magia é essa? Como é que eu tenho o poder de fazer chover apenas mostrando coisas tristes paras as pessoas?

— Dessa vez você errou completamente. Primeiro, não é magia. Não gosto de entender as coisas como mágicas. No mundo da magia tudo é possível, então nada tem valor de fato. Magia é apenas uma ciência ainda não compreendida. Segundo, você não tem poder algum. A emoção é das pessoas, deixar de sentir é uma decisão pessoal também, inconsciente, sim, mas pessoal. Você é, digamos, o gatilho. Um gatilho poderoso.

O executivo agradeceu em pensamento quando o Guardião começou a caminhar pela duna, suas pegadas sendo rapidamente apagadas por grãos de areia que ocupavam os buracos deixados. O seguiu, feliz por pelo menos poder mudar o ângulo em que o sol queimava sua testa e pescoço. Subiu a gola do manto de pano pesado e percebeu que seu manto também tinha um capuz nas costas. O colocou. O Guardião prosseguiu.

— Vocês são feitos disso aqui — apontou para a areia e para o horizonte, em um gesto amplo. O executivo então percebeu como os braços do Guardião eram longos. Exageradamente longos. — Cada átomo de seus corpos vem do seu planeta. E, na verdade, cada parte de você existe há bilhões de anos. E antes de fazer parte de seu planeta, já fizeram parte de estrelas, que já foram outras estrelas e por aí vai. Quando vocês morrem, voltam a fazer parte desse todo.

É natural que boa parte de seus átomos estejam ligados a outros…vocês têm um nome para isso… ah, sim, entrelaçados. Você está inevitável e inexoravelmente entrelaçado com o mundo. O que acontece com você, acontece com esse par emaranhado.

— Tipo uma alma gêmea?

— É. “Tipo” uma alma gêmea. Mas nesse caso, seu par não é necessariamente um humano. Pode ser outro ser vivo. Uma pedra. Água. Areia — Chutou um punhado de areia e ela subiu e desceu lentamente, chovendo como gotas áridas. — É por isso que quando seus corações partidos choram, chove. Quando eles se endurecem, seca. Quando eles explodem… o mundo explode.

— E você quer que eu pare de afetar esse equilíbrio, certo?

— Eu não quero nada, já disse. Você é que precisa querer, a vida é sua, o mundo é seu.

— Tá. Você pode até não poder me pedir ou ordenar algo por alguma regra aí de vocês, mas eu entendo de negócios, entendo de negociações e entendo de desejos. Ninguém marca uma reunião de um dia inteiro indo pro alto de prédios e desertos sem querer nada. Então, me deixa refazer a pergunta: que escolha e ação minha, totalmente independente e pessoal, deixaria você feliz, ou satisfeito, ou com sentimento de missão cumprida? Vamos, fala. Vamos acabar com isso. Ainda que você não queira nada, que conclusão dessa história o deixaria feliz?

O Guardião pigarreou. Respirou fundo e jogou para trás o capuz de seu traje de pessoa do deserto. O executivo teve a impressão de que ele estava ainda mais alto. E seu rosto… embora tivesse dois olhos, nariz e boca, embora tivesse orelhas e um cabelo cinza-prateado curto, o rosto… não parecia humano.

— Existe um minério. Normalmente ele se apresenta em pequenos grãos. Tão pequenos e insignificantes que vocês nunca se deram ao trabalho de dar um nome para ele — Dessa vez, foi o Guardião que se abaixou e pegou um punhado de areia com as mãos. Os grãos escorriam lentamente por seus dedos desproporcionalmente longos. — Esse grão não tem qualquer valor ou função para vocês, mas ele é vital para meu povo. É a base de nossa energia, de nossa alimentação, daquilo que são feitas nossas construções… enfim, tudo.

— Meu povo não foi sábio. Também fazemos burradas. Esse não é um monopólio humano — caminhava pela areia, em passos curtos. Parecia envergonhado de chegar finalmente ao ponto-chave de sua explanação. — Enfim… este minério está acabando em minha casa.

Limpou as mãos no manto para retirar os grãos de areia que ficaram grudados. E prosseguiu:

— Então fomos mandados, eu e meus colegas, para cá. Para servirmos de guardiões da grande reserva deste minério que existe aqui. E para cuidar de vocês. Garantir que vocês mantenham o equilíbrio, produzindo suas chuvas, ventos, areias e… nosso minério.

— Você já deve ter entendido que o que vocês sentem transforma o mundo. Então, quanto mais de alguns sentimentos, mais deste minério. E você parece ter descoberto o gatilho perfeito para que os humanos produzam mais e mais dele. O suficiente para salvar todo meu povo. Por ordens superiores, eu não posso obrigá-lo a me ajudar, nem pedir. Mas posso lhe mostrar que os resultados podem ser muito satisfatórios.

— E que sentimento é esse que você precisa… digo, que você ficaria feliz se meu aplicativo fizesse crescer nas pessoas?

— Ódio.

— Ódio? – O executivo parou. O Guardião seguiu caminhando alguns passos. Então também se deteve e se virou. O executivo insistiu na pergunta. — Ódio? O que eu ganho instigando o ódio? Por que faria isso?

— O que você ganha instigando ódio? — perguntou o Guardião, sorrindo. — Há mais que preciso lhe mostrar.

E, num instante, eles foram transportados do deserto para o berço de outra máquina de instigar ódio e construir fortunas: a Alemanha dos anos 1930.

Ouça a música que inspirou este conto no Spotify.
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Medo do escuro

Imagem gerada pelo Midjourney

Algo se movimenta na mata, uns 50 metros à frente da torre de vigia. O soldado pega o binóculo, dá pausa no antigo MP3 player que toca Iron Maiden e tenta identificar o que é, prendendo a respiração. Na moldura circular de cada lente, apenas galhos levemente prateados pela lua cheia que torna a noite menos escura e assustadora. Movimenta o visor para a direita, nada. Faz o mesmo movimento para outro lado. Um vulto desaparece de súbito deixando um galho baixo agitado. Engole em seco.

Com um arrepio na nuca, retira o binóculo da frente do rosto e, instintivamente, olha a seu redor na solidão da torre de vigia. Ninguém, claro. Ninguém aparecerá até a troca de turno às 6h da manhã. Volta ao binóculo e à mata. Finalmente, identifica quem estava se movendo. Ou o quê. Mais um cervo. Ou talvez o mesmo, que insiste em passear à noite pela mata naquela região de fronteira em plena guerra.

Não há campos de batalha por perto, no entanto. E os dias e noites se sucedem sem nada que torne a torre de vigia diferente de um acampamento de escoteiros. Ou melhor, há uma diferença: o medo.

play novamente na música. Adrian Smith explora dedos ágeis para transformar cordas esticadas em uma metralhadora de notas musicais agudas, rápidas, precisas. O soldado coloca o binóculo de volta na bancada. 50 metros abaixo dele, outros jovens dormem, esperando o dia de morrer por seu país invadido.

“Será que estão mesmo dormindo? Será que conseguem?”, pensa o soldado enquanto varre lentamente todo o perímetro com o olhar. Ao Norte, uma clareira de algumas dezenas de metros entre a casa e a base da torre e as primeiras árvores de uma mata densa. “Será que conseguem fechar os olhos e não imaginar que tem alguém ali, perto, pronto para atacar?”.

À Leste, a mesma floresta continua, menos densa, descendo levemente a colina de onde a torre tem uma vista panorâmica de uma vasta região. “Eu não conseguiria. Por esse lado, foi sorte ficar com o turno da noite. Porque tem alguém ali. Eu sinto. Só não consegui ver ainda.”

O Sul tem uma vista completamente diferente, com um riacho de água prateada serpenteando colina abaixo. É um riacho de água lenta e prateada ao luar. Quando os pássaros e outras criaturas da noite sossegam, dá para ouvir o ruído da água deslizando sobre as pedras. Do outro lado do riacho, uma pradaria que talvez tenha sido pasto de gado, ovelhas ou algo assim. “Os caras riem quando eu falo do medo, me chamam de mulherzinha. Mas, porra, o que eu posso fazer? Eu sinto. Algo não está certo.”

O lado Oeste da torre de vigia é dominado por um campo parecido ao pasto do Sul, que segue por umas centenas de metros até um paredão rochoso, que hoje está na penumbra da Lua que logo sumirá atrás da montanha. “Só mato. Cervos. Corujas. E mais mato. Não tem nada aqui. Ninguém aqui. Só esse bando de idiotas protegendo o nada, essa noite maldita, esse medo maldito e esse cervo maldito que toda noite me assusta.”

Senta em um banco. Não há muito conforto, nem muito espaço, no alto da torre. Acende uma lanterna e marca em um caderno o horário da ronda. Tem alguns minutos até a próxima. Pausa a música. Estica as pernas e olha a lua se afundando lentamente atrás da rocha à sua esquerda. Atrás dele, o rio se transforma de um fio prateado em uma língua negra e sem graça. A noite fica mais escura.

Tem a impressão de que os animais da floresta sentem a ausência da lua e se recolhem. Tudo fica mais silencioso. Até o vento parece ter resolvido deixar de soprar. O único som é a água correndo no riacho atrás dele. Ele torce para que o maldito cervo que todo dia o assusta ao caminhar pela mata também esteja quieto, dormindo.

Envolto na escuridão, e embalado pelo som do riacho, fecha os olhos. Adormece. E sonha.

No sonho, ele não está na torre, mas lá embaixo, na mata. Pela primeira vez em muitos dias não sente medo. Nada. Porque agora ele é o caçador. Veste roupas de couro e carrega uma grande faca. Ele se esgueira pela mata, passos leves. Com habilidade, se contorce para passar por galhos baixos sem que uma única folha se agite.

No silêncio e na escuridão, ele avança, sereno e concentrado, até encontrar sua presa. O cervo, que pasta lenta e sonolentamente entre árvores antigas. Contorna a pequena clareira onde está o cervo. Acerta a empunhadura da faca, flexiona os joelhos e salta sobre a presa, pleno de coragem.

Acorda num susto, a tempo de perceber a respiração de alguém atrás dele e, mesmo na escuridão da noite agora sem lua, com o canto dos olhos nota o brilho de uma longa faca rente a seu pescoço.

Ouça Fear of The Dark, do Iron Maiden, que inspirou este conto.

Vento no Litoral

Ilustração criada no Midjourney

– No que você está pensando?

– Em Hemingway.

Os dois caminhavam pela praia vazia de um dia frio e nublado. O mar estava calmo, apesar do tempo ruim. A espuma das ondas lentamente apagava as pegadas que deixavam pelo caminho.

– Pô, Hemingway? Tu vem aqui pra pensar em Hemingway?

Ele pega um punhado de areia com as mãos e joga na espuma de uma onda que acabara de recuar. – É. No Velho e o Mar. Livraço. Curtinho, tipo aqueles que a gente lia na escola, só que bom.

– História boa não precisa ser longa pra valer a pena, né?

– É…

Ficaram em silêncio, caminhando descalços e segurando os tênis. As ondas molhavam os pés com água gelada. Um mar de ideias revoltas batia contra os ossos do crânio de cada um. As palavras se embaralhavam no caminho até os lábios e morriam em uma espuma rala. Seguiram mais alguns passos. De tempos em tempos, o vento soprava forte e atravessava os agasalhos, limpando a espuma e deixando as palavras fluírem de novo.

– Você pensa em voltar aqui de novo… depois?

– Ah, sim, acho que sim. Minha família não deve vender a casa, vão acabar insistindo pra vir com eles nos feriados.

– Tá certo, faz bem. – Gaivotas passaram por eles. Algumas davam rasantes sobre o mar e arremetiam depois. – Qual é a história?

– Que história?

– Do livro. O Velho e o Mar.

– Ah. É muito boa. Um velho pescador, experiente, em sua luta final contra um peixe gigante. Um tubarão… ou um arenque, um peixe-espada. Sei lá. Era um peixe grande. Acho que os dois aprendem a se respeitar e morrem no final.

– Tubarão, arenque, acha que o velho morre… você lembra algo da história, afinal?

Param ao encontrarem uma concha na areia. Era uma bela concha, construída pela natureza ao longo de muito tempo. Meses, anos, séculos. A idade do objeto era um mistério, mas não reduzia sua beleza. Observaram a concha em silêncio, e depois a arremessaram com força ao mar.

– Pra ser sincero, não muito. Mas é engraçado. Tem história que você esquece os detalhes. Eles somem como se fossem escritos aqui, nessa areia. Mas a história fica. A história, sei lá, é maior que os personagens, que o que aconteceu de fato. Eu lembro que é um baita livro, que me emocionou, que valeu a pena. Isso me basta.

– Te entendo. As pessoas passam, as histórias ficam. Servem pra lembrar do que é importante e esquecer o que é só firula.

– Os lugares também. Essa praia. É só um lugar. Mas também é a história que cada um viveu aqui.

– E acabou que, depois de todos esses anos, não achei um puto de um cavalo marinho.

– Se um dia eu achar, eu te aviso.

– Se eu achar um por lá eu te aviso também.

O barulho das gaivotas em voo fez com que os dois olhassem para o céu cinzento. Assim ficaram por um tempo, observando o padrão de voo das aves.

– Será que tem? Será que dá pra montar em cavalo marinho? Um cavalo marinho voador? Que cospe fogo?

– Isso tá mais pra dragão –  riu. – Mas talvez, quem sabe? Eu pergunto assim que chegar e te conto.

Subiram em silêncio em umas pedras no canto da praia, ajudando-se para escalar a rocha escorregadia e úmida.

– Tu vai puxar meu pé, aparecer no espelho do banheiro, ficar me chamando no final de um corredor escuro, essas coisas?

– Com certeza… tipo Freddy Krueger. Vou te azucrinar em forma de arenque.

– Falando nisso, o que é aquilo? – disse, apontado para algo em alto mar.

– Sei lá… será que é um tubarão?

– Cavalo marinho não é, lamento.

– Será um peixe-espada?

– Faz muita diferença pra história?

– Faz não.

– Faz não.

Ficaram olhando o suposto tubarão no mar. Então riram juntos, como o fizeram em muitos verões e invernos. E como jamais fariam novamente.

Ouça Vento no Litoral, da Legião Urbana, que inspirou este conto.

Silêncio, o jovem está esquecendo

“Silêncio, o jovem está descobrindo…” A frase é popular no Twitter, ferramenta usada para pensar em voz alta e ser criticado por estar pensando errado. É usada sobretudo entre um público mais sênior, indignado com jovens que descobrem, como algo inovador e revolucionário, coisas, processos ou hábitos que existem há décadas, mas com nomes e roupagens menos “mudernas”. É um comentário quase sempre pedante e inapropriado, especialmente por ignorar a importância de se maravilhar, de se surpreender mesmo com as pequenas coisas.

A surpresa pelo novo é importante para nossa vida. Faz bem para o corpo, para alma e para o mundo. No entanto, é preciso fazer uma justiça ao comentário arrogante sobre os jovens: em muitos casos, a descoberta é mesmo de algo que já existia. Se você tirar aspectos muito específicos, “coliving” não é tão diferente assim da boa e velha “república”. A clássica T-shirt era unissex muito antes das roupas de gênero neutro. E por aí vai.
Antes de apedrejar os jovens e sufocar um saudável senso de maravilhamento com o mundo, vale refletir sobre o motivo de tantos redescobrimentos.

Como em quase tudo, a resposta não é monolítica, óbvia e simples, como muitos debates de Twitter dão a entender. Vários fatores contribuem. Listarei apenas alguns, como o que nos vem sendo alertado desde 2011 por Nicholas Carr, com seu best-seller The Shallows (Geração Superficial no Brasil). A estrutura da internet e, sobretudo, das redes sociais, nos afoga numa piscina rasa de informação. Precisamos estar prontos a absorver, curtir, reagir e debater tudo. Política, Big Brother, os cancelamentos do dia, a rotina dos atletas e celebridades, pessoas que são felizes/ricas/amadas/mimadas demais, os políticos de estimação etc etc etc. Não há tempo para nos aprofundarmos, pois o deslizar do dedo sobre tela traz uma novidade, uma invenção, uma revolução, uma treta e um cancelamento diferente.

É compreensível que falte tempo para processar o mundo. Atire o primeiro meme aquele que nunca se viu compartilhando como inédito um vídeo, notícia ou fato do ano passado que ressurgiu na linha do tempo. Quem não lamentou a morte do artista que já tinha entrado obituário anos atrás?

Como falta tempo para efetivamente conhecer e entender o mundo, entramos na era do “lavou tá novo” da informação. Se tem um novo nome, é novo. Isso explica a facilidade que muitos políticos têm encontrado de ignorar todo o passado e se apresentar, depois de décadas de abuso da máquina pública, como o novo, os anti-sistema, os salvadores.

Outro motivo também é culpa da Internet. É muito mais fácil achar rastros digitais e históricos daquilo que surgiu na era digital. Nossa sociedade está digitalizada, mas nossa memória não. Há um vasto oceano de fatos, notícias, conteúdo audiovisual e literário, negócios e inovações exilados e distantes de nossos olhos por serem analógicos ou, se digitais, ainda presos em arquivos de veículos restritos a assinantes ou digitalizados em PDFs não indexados. Dessa forma, ao adotarmos a percepção de que “se o Google não acha, não existe”, perdemos nossa memória. As implicações são gravíssimas, visíveis nos recentes processos de revisionismo histórico, com negações a fatos como o Holocausto, a sanguinária ditadura militar no Brasil e demais países da América Latina e atrocidades soviéticas.

A arquitetura fechada das redes sociais e a efemeridade dos conteúdos curtos em vídeo, como stories, só agravam esse processo. Mesmo o conteúdo contemporâneo, o vídeo de ontem, é levado pela correnteza digital, uma constante cabeça d’água que não só entorna litros de informação a cada segundo sobre nossas cabeças, mas que também enxágua nossa mente levando essas mesmas informações para o ralo.

O jovem não está só descobrindo o velho. Está, ao mesmo tempo, esquecendo-o. E não é só o jovem, somos todos nós que cada vez mais terceirizamos nossas habilidades cognitivas para uma incrível plataforma digital que “tudo” armazena, encontra e comunica, mas que, justamente, não reflete. Não pensa, não contextualiza além do que determinam seus algoritmos.

Armação Ilimitada

Que nos maravilhemos, então, ao “redescobrir” o passado. Isso vale para tudo. Das repúblicas estudantis aos documentos legítimos de fatos históricos. Da moda unissex às importantes questões sobre gênero e representatividade. Do trisal de Armação Ilimitada, nos anos 80, ao poliamor de hoje. Da inflação aos preconceitos e hábitos injustos que precisam ser lembrados exatamente para que não voltem com um novo nome.

Um fim, um começo

Os irmãos brincavam com uma bola enquanto ela fechava as malas. Quatro volumes, um para cada membro da família. É tudo que levariam de seu planeta cada vez mais desértico. Ergueu os olhos para além da redoma de vidro, instalada há muito tempo, quando se percebeu que a deterioração do clima era irreversível. Uma tempestade de areia vermelha se erguia no horizonte.

Procurou pelo marido, que ainda não tinha retornado do espaçoporto de onde partiriam para a nova casa. A bola veio quicando, indiferente a sua inquietação e aninhou-se entre seus pés. Os meninos agora estavam agora sobre umas caixas, posicionando as mãos em forma da aba de um boné sobre os olhos, espreitando o céu azulado do anoitecer que começava a pipocar de estrelas.

— É qual delas, mamãe?

— É aquela na direção do Sol poente, a mais azulada.

— É tão pequena. Vai caber todo mundo?

Ela riu, algo que não fazia há muito tempo. Eles eram os últimos habitantes a deixar o planeta moribundo, cada vez mais desértico e desolado. Preocupava o casal, mais do que a solidão de ter ficado para trás por serem cientistas-chefes da missão de evacuação planetária, a angústia de não terem recebido qualquer comunicação de retorno das muitas naves que partiram antes deles para o planeta vizinho.

— Sim, vai caber. Na verdade, é um planeta maior do que esse, mas inabitado. Vocês vão adorar. É muito parecido com nosso próprio mundo, como ele era tempos atrás, cheio de verde e de água.

As crianças seguiram olhando para o céu, incrédulas. Ela também se corroía de insegurança e medo. Nenhum sinal das expedições anteriores.

Haviam decidido mudar o lugar de pouso, um outro continente no novo planeta. Provavelmente nunca mais encontrariam outros de seu povo. Mas se o local das aterrisagens anteriores oferecia algum perigo, o que explicaria o silêncio por tanto tempo, a família teria mais chances de encontrar um lugar amistoso para reiniciar a longa caminhada da espécie.

Empilhou as malas fechadas sobre um carrinho. O céu já estava totalmente escuro e estrelado. Pouco se via das dunas e rochas avermelhadas fora da redoma. Um silêncio mortal imperava, quebrado somente pela voz do marido, que retornava do espaçoporto.

— Eva, a nave está pronta. Podemos partir.

Capa do livro Caixa de Futuros

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.

No metaverso

No metaverso
o verso da realidade
o espelho da vaidade
paixão elétrica por um ponto de luz

No metaverso
o reverso da prosa
o raso, o efêmero
a vazante da história num story

No metaverso
a busca da alegria
a metanfetamina
o mano, a mina
paixão elétrica por um ponto de luz

No metaverso
como insetos na lâmpada
como a foto na câmara
quadros por segundo
e segundas intenções

No metaverso
o verso é um slogan
avesso à emoção
emoji chorando
paixão efêmera por um punhado de luz

No metaverso
metade de mim
a meta de likes
emoji sorrindo
fake. virtual. irreal. luz.

Onde fica o centro urbano no pós-pandemia?

Centro do Rio, em foto de 2010

Quase todas as cidades tem um “Centro”. Um “marco zero”, um ponto de confluência. Às vezes é uma pracinha com uma igreja. Em outras, uma região essencialmente comercial com prédios altos e bom acesso pela malha de transporte público.

Os centros urbanos são espaços de encontros fortuitos, de troca de ideias em cafés. Quando todos estão dedicando suas vidas de trabalho por ali, é fácil promover encontros físicos, tudo está ao alcance de uma caminhada.

Quando você diz que “vai ao Centro”, não é preciso explicar “qual” centro. Mas o centro geográfico e o centro de gravidade econômica e social nem sempre estão sobrepostos. Nas duas principais cidades brasileiras, por exemplo, há alguns anos eles estão se afastando. Desde o início do século, pelo menos, o que efervesce em São Paulo é a região da Berrini, da Faria Lima. Como trabalho com internet e tecnologia desde sempre, diria que 70% dos meus compromissos profissionais em Sampa foram nessa região, e não na Avenida Paulista, coração do “centro geográfico”, e muito menos próximo à Sé, onde fica o Marco Zero da capital paulista.

Se as reuniões em São Paulo foram em condados farialimers, o centro de gravidade profissional aqui no Rio migrou em 2008, quando troquei o agitado Centro do Rio pela distante Barra da Tijuca. Em 12 anos centralizado em escritórios na Barra, vi mais e mais empresas próximas, ou na Zona Sul, que fica a meio caminho do novo Centro e do antigo.

As idas ao Centro carioca eram mais comuns que às ao centro paulista, mas quase tão cansativas quanto: não é simples se deslocar pelo Rio de Janeiro.

Então veio a pandemia, e o centro de gravidade mudou novamente de lugar. Já não era na Rio Branco, nem na Faria Lima e nem nos assépticos centros comerciais na Barra. O centro veio para casa. Meu centro de gravidade profissional e pessoal se juntaram, com o home office. E, para surpresas de muitos, ele funciona muito bem, obrigado.

Se o crescimento dos condados paulistas e da Barra já deterioravam o contexto dos centros tradicionais, a pandemia foi um golpe duro. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, lançou pelo Twitter um apelo para que o futuro presidente da Petrobras reveja a decisão de tornar permanente o teletrabalho, alegando que esta decisão fere mortalmente o centro da cidade.

Primeiro, é preciso ter em mente que o processo de degradação e de mudança de papel e perfil começou antes, com a descentralização da atividade econômica. Segundo, essa moeda tem dois lados: é claro que estabelecimentos, restaurantes e a própria malha de transporte público foram concebidos considerando um afluxo diário de milhares de pessoas para essa densa região. Por outro, há um custo e impacto enorme nisso, pois diariamente, milhares de pessoas deslocam-se de bairros e municípios distantes para cumprir suas rotinas: com isso, há grande desperdício de tempo dessas pessoas, fatores de risco para proliferação de doenças nos transportes lotados e pesada emissão de gases poluentes em todo o processo. Além disso, se os estabelecimentos comerciais do centro podem contar com enorme afluxo de pessoas e dinheiro, cria-se bolsões nos bairros e municípios vizinhos sem atividade econômica relevante. Bairros e cidades-dormitório.

Não faz sentido impor que milhares de pessoas dediquem duas, quatro, seis horas de seus dias em transportes públicos para ir para um único ponto e fazer um trabalho que poderia ser perfeitamente feito de forma remota apenas a troco de preservar o status quo destas importantes regiões das cidades.

Não é caso de se abandonar os centros, mas de repensá-los. No longo prazo, os centros urbanos não serão mais espaços de concentração de produção e trabalho, mas locais de encontro. A vocação dos centros urbanos está em eventos, em cultura, em turismo. Em sua História. Nos encontros em cafés e restaurantes, ainda que os participantes destas reuniões não estejam mais a apenas alguns passos uns dos outros. Em espaços abertos — lembra da pracinha que marca o centro nas pequenas cidades? — de convivência e, por que não, áreas verdes.

O futuro dos centros está mais nas centenas de bicicletas da Av. Paulista aos domingos e no reurbanizado trecho para pedestres da Av. Rio Branco, de onde se vê o belíssimo Teatro Municipal, monumentos e restaurantes tradicionais, do que nas calçadas dos dias de semana, em que filas dos restaurantes por quilo disputam espaço com ambulantes.

A era dos festivais e eventos sem cerveja quente e fila pro banheiro

A julgar pela quantidade de pessoas em bares e restaurantes no pós-quarentena, os grandes festivais de música não sumirão do mapa. Serão viabilizados por vacinas, pela ilusão de segurança dada por máscaras descoladas e iluminadas com led patrocinadas por algum banco ou marca de chiclete ou mesmo por nossa impressionante capacidade de negar riscos evidentes ajudarão a lotar arenas e cidades temáticas em todo o planeta.

O mesmo vale para nosso carnaval de rua e para tantos outros eventos. O “novo normal” (argh), ao que parece, tende a ser bem parecido com o “velho normal” (argh argh). Parecido, mas não tem como ser igual porque a caixa de pandora de novos comportamentos foi aberta.

Com um filho de 9 anos em casa, foi impossível evitar certas concessões tecnológicas. Liberamos os jogos multiplayer com os amigos, conversas com a “galera” por Skype ou Discord e ele descobriu novas formas de usar computadores para se divertir e para estudar também. Talvez ele tenha acumulado mais horas de Zoom durante a quarentena do que eu.

Uma das descobertas mútuas, de pai e filho, foram os eventos virtuais dentro de games. Pra quem viveu a rápida bolha do Second Life (consulte o Google se for jovem demais para ter se aventurado nas ilhas do SL), o deja-vu é forte, mas a experiência atual é significativa melhor e mais massiva.

Se na época do Second Life poucos tinham computadores e conexões capazes de oferecer experiências realmente imersivas, o evento “O Dispositivo”, que marcou uma mudança de temporada no jogo Fortnite, foi vivido (sim, vivido, mais que assistido) por 12 milhões de pessoas DENTRO DO GAME, acessando por consoles, tablets, celulares e computadores.

12 milhões é gente pra caramba

Depois de apresentações “ao vivo” de DJs e premieres de filmes, a Epic Games criou uma área de eventos dentro do jogo, uma espécie de centro de convenções virtual, especialmente para estas experiências. Ao invés de atirar nos amigos, você pode curtir um som, ver um cinema ou, quem sabe, ser apresentado a um novo carro, celular ou coleção de tênis.

Parece melhor que drive in. E pior que simplesmente botar o filme pra tocar na Netflix.

Os festivais virtuais podem ter escala global. E o alcance vai além da música e do cinema. No Rio de Janeiro, Flamengo, os demais clubes e a TV Globo estão em guerra pelos direitos de transmissão dos jogos da equipe rubro-negra. Na Europa, a Amazon já transmite partidas.

Como será a experiência de acompanhar uma final da Champions League da arquibancada virtual de uma réplica perfeita do estádio, podendo interagir com os torcedores ao lado e fazer coisas que vão além de simplesmente replicar o espaço real — nos shows do Fortnite você pode saltar em pisos-elásticos, viajar para o espaço, ser teleportado para dimensões mágicas etc.

Como experiência para o público e para marcas, como se compararão grandes festivais físicos regionais com os festivais virtuais globais?

Que novos players estão se juntando à indústria do entretenimento?

Perguntas que veremos respondidas em breve. Provavelmente com um joystick em mãos.

Os fins justificam os fakes?

No final de novembro, o incrível podcast Radiolab, da WNYC, publicou o episódio Breaking Bongo, sobre a luta virtual de gaboneses exilados contra o ditador Ali Bongo e seu regime. Ao longo de uma hora de histórias e depoimentos, o programa nos apresenta o uso das redes sociais e da mídia digital em geral como armas de guerra. No caso, a guerra contra uma ditadura que controla os meios oficiais de comunicação.

Tudo é tristemente familiar para a gente. É impossível não encontrar vários paralelos e perceber que, no caso do Gabão, as fake news acabam sendo utilizadas por ambos os lados, inclusive com suspeitas de uso de deep fakes para fazer o presidente, que tinha sofrido um derrame, falar à Nação como se nada tivesse acontecido.

Ao final, os jornalistas apresentam uma provocação que volta e meia nos assola também: há alguma justificativa moral para se usar fake news? Se elas são uma arma, são uma arma que os “mocinhos” podem usar? Existe fake news do bem? Ou fake news são como armas químicas, em que seu uso jamais se justifica?

Conexão Gabão-Brasil

Reprodução do PPT apresentado pela deputada Joice Hasselmann

Dias depois do episódio ir ao ar, a jornalista e deputada federal Joice Hasselmann, algumas vezes acusada de plágio ou de disseminar inverdades enquanto apoiadora do atual governo (ainda democrático) do Brasil, foi a uma comissão parlamentar de inquérito para expôr a rede de fake news supostamente conduzida pela família do presidente.

conteúdo apresentado ainda precisa ser comprovado, mas indícios não faltam, inclusive de outras fontes. No caso gabonês, a rede virtual de informação (e, depois, também de desinformação) foi criada de forma descentralizada pela diáspora de gaboneses sobretudo nos EUA e Europa, como forma de levar um contraditório aos moradores do país reféns da imprensa local, controlada (ou cerceada) pelo governo. No caso brasileiro, seguindo o molde pré-eleitoral e também de outros movimentos, como o Brexit e as eleições americanas, a rede virtual parte do Governo. Inclusive, a denúncia de Joice reforça dados já relatados pela imprensa de que muitos dos articuladores são funcionários públicos em gabinetes e departamentos da Administração.

Os fins não justificam os fakes

Curioso entender (ou descobrir) o papel da imprensa tradicional nessa batalha e não deixarmos de lado a questão inicial. Acredito que não haja qualquer dúvidas sobre a imoralidade de uma máquina de fake news plantada e nutrida pelo Governo. Mas e se fosse o contrário? Se fosse como no Gabão? Uma fake news pode ser usada na luta para derrubar um regime ditatorial? Pode-se esperar qualquer efeito benéfico de uma mentira? Rebater mentiras com mentiras faz algum bem ao debate político?

Não tenho a resposta. Mas, como jornalista de informação, não consigo aceitar que manipular os outros por meio de dados falsos ou mal-interpretados seja aceitável. É claro que a imprensa erra, mas errar é diferente de distorcer a realidade deliberadamente. Quando blogamos, quando postamos, quando abrimos uma live, estamos naquele momento nos posicionando como veículo, como fonte, estamos fazendo jornalismo. Uma coisa é dar opinião, outra é apresentar um fato. Fatos são fatos. Se forem distorcidos tornam-se narrativas, e isso é outra coisa. E não é o que o leitor/espectador espera.

Se informação é uma arma de guerra, a verdade será sempre a mais poderosa.

A extinção da privacidade

Wikimedia

Todos os novos usuários de telefones celulares da China precisarão escanear suas faces como determina uma lei que entrou em vigor nesta semana. Este é mais um passo na intensa política de uso de reconhecimento facial pelo governo chinês, o maior laboratório a céu aberto de como o uso de tecnologias sem qualquer freio podem afetar a sociedade.

Até agora, o que chega ao ocidente, filtrado pela escassa liberdade de expressão do gigante capital-comunista, é assustador. Basta acompanharmos o desenrolar dos protestos em Hong Kong e o esforço dos manifestantes em não se deixar identificar por câmeras de segurança.

Orwell era chinês?

Reconhecimento facial, controle das comunicações, gigantescos bancos de dados e o igualmente controverso sistema de crédito social (basicamente o episódio Nosedive, de Black Mirror, só que pra valer) fazem a China parecer o Lex Luthor global da privacidade. O país caminha para ser o primeiro em que o conceito de privacidade seja inteiramente extirpado da sociedade.

Utilizadas pelo próprio governo autoritário do país e com acesso crescente a dados produzidos por mais de 1 bilhão de pessoas, as avançadas tecnologias de reconhecimento facial e inteligência artificial — duas frentes em que a China nada de braçada — podem ter impactos sinistros e inéditos na vida dos chineses, sem que não haja qualquer órgão regulador que possa agir. Quem discorda do que é feito não tem a quem recorrer.

A China é aqui

Não que a China seja uma Lois Lane nessa história, mas é fácil culpar um regime autoritário e quase caricato como é a imagem do gigante asiático no ocidente. Ao utilizar recursos como desbloqueio facial em nossos celulares ou marcarmos familiares nos álbuns online e fotos em redes sociais, estamos sendo voluntários em experimentos similares. Sai um governo autoritário, entram empresas, fica a montanha de dados fornecida gratuitamente. No primeiro caso, pela força de leis draconianas. No segundo, em troca de um filtro bacana, uns segundos a menos para desbloquear o celular ou para não deixar passar o meme do momento. Em todos os casos, a privacidade torna-se um conceito em extinção.

Nenhum dado a mais. Nenhum direito a menos (será?)

Conhecer o outro é uma vantagem competitiva. O governo que conhece mais seus cidadãos que as pessoas ao governo tem vantagens sobre seu próprio povo. Idem para empresas, que cada vez nos conhecem mais e mais. Se não há governo que controle a si mesmo na China, é imperativo lutarmos para que as empresas que coletam nossos dados sejam transparentes no uso que pretendem dar a eles, que os armazenem de forma segura e, sobretudo, que possamos efetivamente ter controle sobre quem sabe o que sobre a gente.

Empresas hoje sabem exatamente onde você está agora, com quem, onde esteve nas últimas 24h e para onde provavelmente vai. Com quem você falou, o que comprou, o que comeu, que música ouviu, que seriado está vendo e por aí vai. Isso em si não é trágico, embora preocupante. A conta pode até fechar, desde que esse mar de informações não esteja numa terra sem lei.

Existem regulamentações, órgãos de controle e princípios pra isso, mas, como na luta por uma web saudável e democrática, não dá pra ficar apenas esperando que terceiros resolvam a pendenga pra gente. É uma briga pra encararmos continuamente, como consumidores, como indivíduos e organizados em sociedade, e pra ficarmos de olho em todos os movimentos do mercado e de governos (especialmente os com vocação autoritária), olho no olho, face a face.