Skip to content

Vento no Litoral

Ilustração criada no Midjourney

– No que você está pensando?

– Em Hemingway.

Os dois caminhavam pela praia vazia de um dia frio e nublado. O mar estava calmo, apesar do tempo ruim. A espuma das ondas lentamente apagava as pegadas que deixavam pelo caminho.

– Pô, Hemingway? Tu vem aqui pra pensar em Hemingway?

Ele pega um punhado de areia com as mãos e joga na espuma de uma onda que acabara de recuar. – É. No Velho e o Mar. Livraço. Curtinho, tipo aqueles que a gente lia na escola, só que bom.

– História boa não precisa ser longa pra valer a pena, né?

– É…

Ficaram em silêncio, caminhando descalços e segurando os tênis. As ondas molhavam os pés com água gelada. Um mar de ideias revoltas batia contra os ossos do crânio de cada um. As palavras se embaralhavam no caminho até os lábios e morriam em uma espuma rala. Seguiram mais alguns passos. De tempos em tempos, o vento soprava forte e atravessava os agasalhos, limpando a espuma e deixando as palavras fluírem de novo.

– Você pensa em voltar aqui de novo… depois?

– Ah, sim, acho que sim. Minha família não deve vender a casa, vão acabar insistindo pra vir com eles nos feriados.

– Tá certo, faz bem. – Gaivotas passaram por eles. Algumas davam rasantes sobre o mar e arremetiam depois. – Qual é a história?

– Que história?

– Do livro. O Velho e o Mar.

– Ah. É muito boa. Um velho pescador, experiente, em sua luta final contra um peixe gigante. Um tubarão… ou um arenque, um peixe-espada. Sei lá. Era um peixe grande. Acho que os dois aprendem a se respeitar e morrem no final.

– Tubarão, arenque, acha que o velho morre… você lembra algo da história, afinal?

Param ao encontrarem uma concha na areia. Era uma bela concha, construída pela natureza ao longo de muito tempo. Meses, anos, séculos. A idade do objeto era um mistério, mas não reduzia sua beleza. Observaram a concha em silêncio, e depois a arremessaram com força ao mar.

– Pra ser sincero, não muito. Mas é engraçado. Tem história que você esquece os detalhes. Eles somem como se fossem escritos aqui, nessa areia. Mas a história fica. A história, sei lá, é maior que os personagens, que o que aconteceu de fato. Eu lembro que é um baita livro, que me emocionou, que valeu a pena. Isso me basta.

– Te entendo. As pessoas passam, as histórias ficam. Servem pra lembrar do que é importante e esquecer o que é só firula.

– Os lugares também. Essa praia. É só um lugar. Mas também é a história que cada um viveu aqui.

– E acabou que, depois de todos esses anos, não achei um puto de um cavalo marinho.

– Se um dia eu achar, eu te aviso.

– Se eu achar um por lá eu te aviso também.

O barulho das gaivotas em voo fez com que os dois olhassem para o céu cinzento. Assim ficaram por um tempo, observando o padrão de voo das aves.

– Será que tem? Será que dá pra montar em cavalo marinho? Um cavalo marinho voador? Que cospe fogo?

– Isso tá mais pra dragão –  riu. – Mas talvez, quem sabe? Eu pergunto assim que chegar e te conto.

Subiram em silêncio em umas pedras no canto da praia, ajudando-se para escalar a rocha escorregadia e úmida.

– Tu vai puxar meu pé, aparecer no espelho do banheiro, ficar me chamando no final de um corredor escuro, essas coisas?

– Com certeza… tipo Freddy Krueger. Vou te azucrinar em forma de arenque.

– Falando nisso, o que é aquilo? – disse, apontado para algo em alto mar.

– Sei lá… será que é um tubarão?

– Cavalo marinho não é, lamento.

– Será um peixe-espada?

– Faz muita diferença pra história?

– Faz não.

– Faz não.

Ficaram olhando o suposto tubarão no mar. Então riram juntos, como o fizeram em muitos verões e invernos. E como jamais fariam novamente.

Ouça Vento no Litoral, da Legião Urbana, que inspirou este conto.

Silêncio, o jovem está esquecendo

“Silêncio, o jovem está descobrindo…” A frase é popular no Twitter, ferramenta usada para pensar em voz alta e ser criticado por estar pensando errado. É usada sobretudo entre um público mais sênior, indignado com jovens que descobrem, como algo inovador e revolucionário, coisas, processos ou hábitos que existem há décadas, mas com nomes e roupagens menos “mudernas”. É um comentário quase sempre pedante e inapropriado, especialmente por ignorar a importância de se maravilhar, de se surpreender mesmo com as pequenas coisas.

A surpresa pelo novo é importante para nossa vida. Faz bem para o corpo, para alma e para o mundo. No entanto, é preciso fazer uma justiça ao comentário arrogante sobre os jovens: em muitos casos, a descoberta é mesmo de algo que já existia. Se você tirar aspectos muito específicos, “coliving” não é tão diferente assim da boa e velha “república”. A clássica T-shirt era unissex muito antes das roupas de gênero neutro. E por aí vai.
Antes de apedrejar os jovens e sufocar um saudável senso de maravilhamento com o mundo, vale refletir sobre o motivo de tantos redescobrimentos.

Como em quase tudo, a resposta não é monolítica, óbvia e simples, como muitos debates de Twitter dão a entender. Vários fatores contribuem. Listarei apenas alguns, como o que nos vem sendo alertado desde 2011 por Nicholas Carr, com seu best-seller The Shallows (Geração Superficial no Brasil). A estrutura da internet e, sobretudo, das redes sociais, nos afoga numa piscina rasa de informação. Precisamos estar prontos a absorver, curtir, reagir e debater tudo. Política, Big Brother, os cancelamentos do dia, a rotina dos atletas e celebridades, pessoas que são felizes/ricas/amadas/mimadas demais, os políticos de estimação etc etc etc. Não há tempo para nos aprofundarmos, pois o deslizar do dedo sobre tela traz uma novidade, uma invenção, uma revolução, uma treta e um cancelamento diferente.

É compreensível que falte tempo para processar o mundo. Atire o primeiro meme aquele que nunca se viu compartilhando como inédito um vídeo, notícia ou fato do ano passado que ressurgiu na linha do tempo. Quem não lamentou a morte do artista que já tinha entrado obituário anos atrás?

Como falta tempo para efetivamente conhecer e entender o mundo, entramos na era do “lavou tá novo” da informação. Se tem um novo nome, é novo. Isso explica a facilidade que muitos políticos têm encontrado de ignorar todo o passado e se apresentar, depois de décadas de abuso da máquina pública, como o novo, os anti-sistema, os salvadores.

Outro motivo também é culpa da Internet. É muito mais fácil achar rastros digitais e históricos daquilo que surgiu na era digital. Nossa sociedade está digitalizada, mas nossa memória não. Há um vasto oceano de fatos, notícias, conteúdo audiovisual e literário, negócios e inovações exilados e distantes de nossos olhos por serem analógicos ou, se digitais, ainda presos em arquivos de veículos restritos a assinantes ou digitalizados em PDFs não indexados. Dessa forma, ao adotarmos a percepção de que “se o Google não acha, não existe”, perdemos nossa memória. As implicações são gravíssimas, visíveis nos recentes processos de revisionismo histórico, com negações a fatos como o Holocausto, a sanguinária ditadura militar no Brasil e demais países da América Latina e atrocidades soviéticas.

A arquitetura fechada das redes sociais e a efemeridade dos conteúdos curtos em vídeo, como stories, só agravam esse processo. Mesmo o conteúdo contemporâneo, o vídeo de ontem, é levado pela correnteza digital, uma constante cabeça d’água que não só entorna litros de informação a cada segundo sobre nossas cabeças, mas que também enxágua nossa mente levando essas mesmas informações para o ralo.

O jovem não está só descobrindo o velho. Está, ao mesmo tempo, esquecendo-o. E não é só o jovem, somos todos nós que cada vez mais terceirizamos nossas habilidades cognitivas para uma incrível plataforma digital que “tudo” armazena, encontra e comunica, mas que, justamente, não reflete. Não pensa, não contextualiza além do que determinam seus algoritmos.

Armação Ilimitada

Que nos maravilhemos, então, ao “redescobrir” o passado. Isso vale para tudo. Das repúblicas estudantis aos documentos legítimos de fatos históricos. Da moda unissex às importantes questões sobre gênero e representatividade. Do trisal de Armação Ilimitada, nos anos 80, ao poliamor de hoje. Da inflação aos preconceitos e hábitos injustos que precisam ser lembrados exatamente para que não voltem com um novo nome.

Um fim, um começo

Os irmãos brincavam com uma bola enquanto ela fechava as malas. Quatro volumes, um para cada membro da família. É tudo que levariam de seu planeta cada vez mais desértico. Ergueu os olhos para além da redoma de vidro, instalada há muito tempo, quando se percebeu que a deterioração do clima era irreversível. Uma tempestade de areia vermelha se erguia no horizonte.

Procurou pelo marido, que ainda não tinha retornado do espaçoporto de onde partiriam para a nova casa. A bola veio quicando, indiferente a sua inquietação e aninhou-se entre seus pés. Os meninos agora estavam agora sobre umas caixas, posicionando as mãos em forma da aba de um boné sobre os olhos, espreitando o céu azulado do anoitecer que começava a pipocar de estrelas.

— É qual delas, mamãe?

— É aquela na direção do Sol poente, a mais azulada.

— É tão pequena. Vai caber todo mundo?

Ela riu, algo que não fazia há muito tempo. Eles eram os últimos habitantes a deixar o planeta moribundo, cada vez mais desértico e desolado. Preocupava o casal, mais do que a solidão de ter ficado para trás por serem cientistas-chefes da missão de evacuação planetária, a angústia de não terem recebido qualquer comunicação de retorno das muitas naves que partiram antes deles para o planeta vizinho.

— Sim, vai caber. Na verdade, é um planeta maior do que esse, mas inabitado. Vocês vão adorar. É muito parecido com nosso próprio mundo, como ele era tempos atrás, cheio de verde e de água.

As crianças seguiram olhando para o céu, incrédulas. Ela também se corroía de insegurança e medo. Nenhum sinal das expedições anteriores.

Haviam decidido mudar o lugar de pouso, um outro continente no novo planeta. Provavelmente nunca mais encontrariam outros de seu povo. Mas se o local das aterrisagens anteriores oferecia algum perigo, o que explicaria o silêncio por tanto tempo, a família teria mais chances de encontrar um lugar amistoso para reiniciar a longa caminhada da espécie.

Empilhou as malas fechadas sobre um carrinho. O céu já estava totalmente escuro e estrelado. Pouco se via das dunas e rochas avermelhadas fora da redoma. Um silêncio mortal imperava, quebrado somente pela voz do marido, que retornava do espaçoporto.

— Eva, a nave está pronta. Podemos partir.

Capa do livro Caixa de Futuros

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.

No metaverso

No metaverso
o verso da realidade
o espelho da vaidade
paixão elétrica por um ponto de luz

No metaverso
o reverso da prosa
o raso, o efêmero
a vazante da história num story

No metaverso
a busca da alegria
a metanfetamina
o mano, a mina
paixão elétrica por um ponto de luz

No metaverso
como insetos na lâmpada
como a foto na câmara
quadros por segundo
e segundas intenções

No metaverso
o verso é um slogan
avesso à emoção
emoji chorando
paixão efêmera por um punhado de luz

No metaverso
metade de mim
a meta de likes
emoji sorrindo
fake. virtual. irreal. luz.

Onde fica o centro urbano no pós-pandemia?

Centro do Rio, em foto de 2010

Quase todas as cidades tem um “Centro”. Um “marco zero”, um ponto de confluência. Às vezes é uma pracinha com uma igreja. Em outras, uma região essencialmente comercial com prédios altos e bom acesso pela malha de transporte público.

Os centros urbanos são espaços de encontros fortuitos, de troca de ideias em cafés. Quando todos estão dedicando suas vidas de trabalho por ali, é fácil promover encontros físicos, tudo está ao alcance de uma caminhada.

Quando você diz que “vai ao Centro”, não é preciso explicar “qual” centro. Mas o centro geográfico e o centro de gravidade econômica e social nem sempre estão sobrepostos. Nas duas principais cidades brasileiras, por exemplo, há alguns anos eles estão se afastando. Desde o início do século, pelo menos, o que efervesce em São Paulo é a região da Berrini, da Faria Lima. Como trabalho com internet e tecnologia desde sempre, diria que 70% dos meus compromissos profissionais em Sampa foram nessa região, e não na Avenida Paulista, coração do “centro geográfico”, e muito menos próximo à Sé, onde fica o Marco Zero da capital paulista.

Se as reuniões em São Paulo foram em condados farialimers, o centro de gravidade profissional aqui no Rio migrou em 2008, quando troquei o agitado Centro do Rio pela distante Barra da Tijuca. Em 12 anos centralizado em escritórios na Barra, vi mais e mais empresas próximas, ou na Zona Sul, que fica a meio caminho do novo Centro e do antigo.

As idas ao Centro carioca eram mais comuns que às ao centro paulista, mas quase tão cansativas quanto: não é simples se deslocar pelo Rio de Janeiro.

Então veio a pandemia, e o centro de gravidade mudou novamente de lugar. Já não era na Rio Branco, nem na Faria Lima e nem nos assépticos centros comerciais na Barra. O centro veio para casa. Meu centro de gravidade profissional e pessoal se juntaram, com o home office. E, para surpresas de muitos, ele funciona muito bem, obrigado.

Se o crescimento dos condados paulistas e da Barra já deterioravam o contexto dos centros tradicionais, a pandemia foi um golpe duro. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, lançou pelo Twitter um apelo para que o futuro presidente da Petrobras reveja a decisão de tornar permanente o teletrabalho, alegando que esta decisão fere mortalmente o centro da cidade.

Primeiro, é preciso ter em mente que o processo de degradação e de mudança de papel e perfil começou antes, com a descentralização da atividade econômica. Segundo, essa moeda tem dois lados: é claro que estabelecimentos, restaurantes e a própria malha de transporte público foram concebidos considerando um afluxo diário de milhares de pessoas para essa densa região. Por outro, há um custo e impacto enorme nisso, pois diariamente, milhares de pessoas deslocam-se de bairros e municípios distantes para cumprir suas rotinas: com isso, há grande desperdício de tempo dessas pessoas, fatores de risco para proliferação de doenças nos transportes lotados e pesada emissão de gases poluentes em todo o processo. Além disso, se os estabelecimentos comerciais do centro podem contar com enorme afluxo de pessoas e dinheiro, cria-se bolsões nos bairros e municípios vizinhos sem atividade econômica relevante. Bairros e cidades-dormitório.

Não faz sentido impor que milhares de pessoas dediquem duas, quatro, seis horas de seus dias em transportes públicos para ir para um único ponto e fazer um trabalho que poderia ser perfeitamente feito de forma remota apenas a troco de preservar o status quo destas importantes regiões das cidades.

Não é caso de se abandonar os centros, mas de repensá-los. No longo prazo, os centros urbanos não serão mais espaços de concentração de produção e trabalho, mas locais de encontro. A vocação dos centros urbanos está em eventos, em cultura, em turismo. Em sua História. Nos encontros em cafés e restaurantes, ainda que os participantes destas reuniões não estejam mais a apenas alguns passos uns dos outros. Em espaços abertos — lembra da pracinha que marca o centro nas pequenas cidades? — de convivência e, por que não, áreas verdes.

O futuro dos centros está mais nas centenas de bicicletas da Av. Paulista aos domingos e no reurbanizado trecho para pedestres da Av. Rio Branco, de onde se vê o belíssimo Teatro Municipal, monumentos e restaurantes tradicionais, do que nas calçadas dos dias de semana, em que filas dos restaurantes por quilo disputam espaço com ambulantes.

A era dos festivais e eventos sem cerveja quente e fila pro banheiro

A julgar pela quantidade de pessoas em bares e restaurantes no pós-quarentena, os grandes festivais de música não sumirão do mapa. Serão viabilizados por vacinas, pela ilusão de segurança dada por máscaras descoladas e iluminadas com led patrocinadas por algum banco ou marca de chiclete ou mesmo por nossa impressionante capacidade de negar riscos evidentes ajudarão a lotar arenas e cidades temáticas em todo o planeta.

O mesmo vale para nosso carnaval de rua e para tantos outros eventos. O “novo normal” (argh), ao que parece, tende a ser bem parecido com o “velho normal” (argh argh). Parecido, mas não tem como ser igual porque a caixa de pandora de novos comportamentos foi aberta.

Com um filho de 9 anos em casa, foi impossível evitar certas concessões tecnológicas. Liberamos os jogos multiplayer com os amigos, conversas com a “galera” por Skype ou Discord e ele descobriu novas formas de usar computadores para se divertir e para estudar também. Talvez ele tenha acumulado mais horas de Zoom durante a quarentena do que eu.

Uma das descobertas mútuas, de pai e filho, foram os eventos virtuais dentro de games. Pra quem viveu a rápida bolha do Second Life (consulte o Google se for jovem demais para ter se aventurado nas ilhas do SL), o deja-vu é forte, mas a experiência atual é significativa melhor e mais massiva.

Se na época do Second Life poucos tinham computadores e conexões capazes de oferecer experiências realmente imersivas, o evento “O Dispositivo”, que marcou uma mudança de temporada no jogo Fortnite, foi vivido (sim, vivido, mais que assistido) por 12 milhões de pessoas DENTRO DO GAME, acessando por consoles, tablets, celulares e computadores.

12 milhões é gente pra caramba

Depois de apresentações “ao vivo” de DJs e premieres de filmes, a Epic Games criou uma área de eventos dentro do jogo, uma espécie de centro de convenções virtual, especialmente para estas experiências. Ao invés de atirar nos amigos, você pode curtir um som, ver um cinema ou, quem sabe, ser apresentado a um novo carro, celular ou coleção de tênis.

Parece melhor que drive in. E pior que simplesmente botar o filme pra tocar na Netflix.

Os festivais virtuais podem ter escala global. E o alcance vai além da música e do cinema. No Rio de Janeiro, Flamengo, os demais clubes e a TV Globo estão em guerra pelos direitos de transmissão dos jogos da equipe rubro-negra. Na Europa, a Amazon já transmite partidas.

Como será a experiência de acompanhar uma final da Champions League da arquibancada virtual de uma réplica perfeita do estádio, podendo interagir com os torcedores ao lado e fazer coisas que vão além de simplesmente replicar o espaço real — nos shows do Fortnite você pode saltar em pisos-elásticos, viajar para o espaço, ser teleportado para dimensões mágicas etc.

Como experiência para o público e para marcas, como se compararão grandes festivais físicos regionais com os festivais virtuais globais?

Que novos players estão se juntando à indústria do entretenimento?

Perguntas que veremos respondidas em breve. Provavelmente com um joystick em mãos.

Os fins justificam os fakes?

No final de novembro, o incrível podcast Radiolab, da WNYC, publicou o episódio Breaking Bongo, sobre a luta virtual de gaboneses exilados contra o ditador Ali Bongo e seu regime. Ao longo de uma hora de histórias e depoimentos, o programa nos apresenta o uso das redes sociais e da mídia digital em geral como armas de guerra. No caso, a guerra contra uma ditadura que controla os meios oficiais de comunicação.

Tudo é tristemente familiar para a gente. É impossível não encontrar vários paralelos e perceber que, no caso do Gabão, as fake news acabam sendo utilizadas por ambos os lados, inclusive com suspeitas de uso de deep fakes para fazer o presidente, que tinha sofrido um derrame, falar à Nação como se nada tivesse acontecido.

Ao final, os jornalistas apresentam uma provocação que volta e meia nos assola também: há alguma justificativa moral para se usar fake news? Se elas são uma arma, são uma arma que os “mocinhos” podem usar? Existe fake news do bem? Ou fake news são como armas químicas, em que seu uso jamais se justifica?

Conexão Gabão-Brasil

Reprodução do PPT apresentado pela deputada Joice Hasselmann

Dias depois do episódio ir ao ar, a jornalista e deputada federal Joice Hasselmann, algumas vezes acusada de plágio ou de disseminar inverdades enquanto apoiadora do atual governo (ainda democrático) do Brasil, foi a uma comissão parlamentar de inquérito para expôr a rede de fake news supostamente conduzida pela família do presidente.

conteúdo apresentado ainda precisa ser comprovado, mas indícios não faltam, inclusive de outras fontes. No caso gabonês, a rede virtual de informação (e, depois, também de desinformação) foi criada de forma descentralizada pela diáspora de gaboneses sobretudo nos EUA e Europa, como forma de levar um contraditório aos moradores do país reféns da imprensa local, controlada (ou cerceada) pelo governo. No caso brasileiro, seguindo o molde pré-eleitoral e também de outros movimentos, como o Brexit e as eleições americanas, a rede virtual parte do Governo. Inclusive, a denúncia de Joice reforça dados já relatados pela imprensa de que muitos dos articuladores são funcionários públicos em gabinetes e departamentos da Administração.

Os fins não justificam os fakes

Curioso entender (ou descobrir) o papel da imprensa tradicional nessa batalha e não deixarmos de lado a questão inicial. Acredito que não haja qualquer dúvidas sobre a imoralidade de uma máquina de fake news plantada e nutrida pelo Governo. Mas e se fosse o contrário? Se fosse como no Gabão? Uma fake news pode ser usada na luta para derrubar um regime ditatorial? Pode-se esperar qualquer efeito benéfico de uma mentira? Rebater mentiras com mentiras faz algum bem ao debate político?

Não tenho a resposta. Mas, como jornalista de informação, não consigo aceitar que manipular os outros por meio de dados falsos ou mal-interpretados seja aceitável. É claro que a imprensa erra, mas errar é diferente de distorcer a realidade deliberadamente. Quando blogamos, quando postamos, quando abrimos uma live, estamos naquele momento nos posicionando como veículo, como fonte, estamos fazendo jornalismo. Uma coisa é dar opinião, outra é apresentar um fato. Fatos são fatos. Se forem distorcidos tornam-se narrativas, e isso é outra coisa. E não é o que o leitor/espectador espera.

Se informação é uma arma de guerra, a verdade será sempre a mais poderosa.

A extinção da privacidade

Wikimedia

Todos os novos usuários de telefones celulares da China precisarão escanear suas faces como determina uma lei que entrou em vigor nesta semana. Este é mais um passo na intensa política de uso de reconhecimento facial pelo governo chinês, o maior laboratório a céu aberto de como o uso de tecnologias sem qualquer freio podem afetar a sociedade.

Até agora, o que chega ao ocidente, filtrado pela escassa liberdade de expressão do gigante capital-comunista, é assustador. Basta acompanharmos o desenrolar dos protestos em Hong Kong e o esforço dos manifestantes em não se deixar identificar por câmeras de segurança.

Orwell era chinês?

Reconhecimento facial, controle das comunicações, gigantescos bancos de dados e o igualmente controverso sistema de crédito social (basicamente o episódio Nosedive, de Black Mirror, só que pra valer) fazem a China parecer o Lex Luthor global da privacidade. O país caminha para ser o primeiro em que o conceito de privacidade seja inteiramente extirpado da sociedade.

Utilizadas pelo próprio governo autoritário do país e com acesso crescente a dados produzidos por mais de 1 bilhão de pessoas, as avançadas tecnologias de reconhecimento facial e inteligência artificial — duas frentes em que a China nada de braçada — podem ter impactos sinistros e inéditos na vida dos chineses, sem que não haja qualquer órgão regulador que possa agir. Quem discorda do que é feito não tem a quem recorrer.

A China é aqui

Não que a China seja uma Lois Lane nessa história, mas é fácil culpar um regime autoritário e quase caricato como é a imagem do gigante asiático no ocidente. Ao utilizar recursos como desbloqueio facial em nossos celulares ou marcarmos familiares nos álbuns online e fotos em redes sociais, estamos sendo voluntários em experimentos similares. Sai um governo autoritário, entram empresas, fica a montanha de dados fornecida gratuitamente. No primeiro caso, pela força de leis draconianas. No segundo, em troca de um filtro bacana, uns segundos a menos para desbloquear o celular ou para não deixar passar o meme do momento. Em todos os casos, a privacidade torna-se um conceito em extinção.

Nenhum dado a mais. Nenhum direito a menos (será?)

Conhecer o outro é uma vantagem competitiva. O governo que conhece mais seus cidadãos que as pessoas ao governo tem vantagens sobre seu próprio povo. Idem para empresas, que cada vez nos conhecem mais e mais. Se não há governo que controle a si mesmo na China, é imperativo lutarmos para que as empresas que coletam nossos dados sejam transparentes no uso que pretendem dar a eles, que os armazenem de forma segura e, sobretudo, que possamos efetivamente ter controle sobre quem sabe o que sobre a gente.

Empresas hoje sabem exatamente onde você está agora, com quem, onde esteve nas últimas 24h e para onde provavelmente vai. Com quem você falou, o que comprou, o que comeu, que música ouviu, que seriado está vendo e por aí vai. Isso em si não é trágico, embora preocupante. A conta pode até fechar, desde que esse mar de informações não esteja numa terra sem lei.

Existem regulamentações, órgãos de controle e princípios pra isso, mas, como na luta por uma web saudável e democrática, não dá pra ficar apenas esperando que terceiros resolvam a pendenga pra gente. É uma briga pra encararmos continuamente, como consumidores, como indivíduos e organizados em sociedade, e pra ficarmos de olho em todos os movimentos do mercado e de governos (especialmente os com vocação autoritária), olho no olho, face a face.

Crie leis estúpidas (sobre tecnologia) e elas te comerão os olhos

Já fui partidário da filosofia valesiliciana de que a tecnologia é irrefreável, e que se uma lei ou um grupo social é atacado pela tecnologia, que se mude a lei ou o grupo social. Também já concordei integralmente com a visão de que se um robô tira o emprego de alguém, a culpa é do alguém que não é capaz de ser melhor que um amontoado de chips e algoritmos.

Tem horas em que é isso mesmo, mas hoje entendo que a questão é muito mais cinza do que preto-no-branco e que a evolução tecnológica não deve-se dar a qualquer custo. Um avanço tecnológico não é válido se não trouxer um avanço social a reboque. Ou seja, a descoberta de uma nova vacina beneficia mais pessoas e sociedades do que prejudica as pessoas contrárias à vacinação por alguma questão ideológica. Carros elétricos autônomos podem melhorar a vida de mais pessoas — pela redução de acidentes, melhoria do tráfego nas cidades e redução da poluição — do que os motoristas prejudicados pelo fim de seus empregos. E por aí vai.

Mas nossa classe política não ajuda no embate contra a visão tecnototalitária do Vale do Silício ao tentar restringir a inovação na base da canetada, e ainda mais com leis estúpidas e natimortas.

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que exige que estacionamentos contratem um funcionário para cada máquina de autoatendimento. A justificativa é gerar/preservar empregos, mas é uma lei estúpida não necessariamente pela motivação, mas por ignorar que é inócua e facilmente contornável.

A lei não leva em conta de que a principal força tecnológica em jogo não é a proliferação de totens de autoatendimento, mas o processo de desintermediação e automação de processos. Eles entendem que, ao não poder interagir com a máquina, os clientes preferirão interagir com o atendente. Na verdade, o cliente não quer interagir com ninguém.

A alternativa ao atendente humano não é o totem, são os tags que permitem ao veículo entrar e sair pelas cancelas com pagamento mensal. Os Sem Parar e ConectCar da vida. Ou, ainda, o autoserviço via celular. O sujeito paga o estacionamento por um aplicativo, de dentro do próprio carro ou do shopping, sem precisar interagir com ninguém.

Como será controlado isso? A depender do bairro ou do perfil do estabelecimento, o estacionamento poderá funcionar normalmente sem qualquer posto de atendimento, seja humano ou na forma de totem. E, ainda assim, 100% dentro da lei.

Será econômico para o estabelecimento, prático e “sem fricção” para o cliente e impossível de se fiscalizar pelo poder público. Pra quê perder energia com uma lei impossível de se viabilizar?

Essa história me lembra um causo corporativo que ouvi certa vez. Reza a lenda que um executivo de uma multinacional tinha como meta reduzir o número de clientes inadimplentes. A meta não dizia que ele tinha que converter estes inadimplentes em pagantes, apenas que ele precisava terminar o ano com menos caloteiros do que tinha em janeiro. Como ele fez para resolver o problema e assegurar seu bônus? Encerrou todos os contratos de clientes em aberto e deixou para lá todo o faturamento que a empresa poderia recuperar com eles.

Muito cuidado com as leis e regras que você cria. Elas podem ser cumpridas ao pé da letra e o resultado pode ser muito pior do que antes de sua canetada.

Supremacia móvel e a sinuca de bico da imprensa

De cada 100 minutos gastos em plataformas digitais no Brasil, 85 são em dispositivos móveis. Os dados são do estudo Global State of Mobile, da ComScore.

Dentre os países avaliados, só perdemos em tempo dedicado aos celulares para Indonésia e Índia, ambos com impressionantes 91%.

A supremacia móvel não surpreende: os celulares são os dispositivos que viabilizam a inclusão digital e as aplicações que mais trouxeram brasileiros para o mundo digital eram justamente as mais mobile friendly, como as redes sociais e os mensageiros instantâneos.

Desta avalanche de minutos online via dispositivos móveis por brasileiros, 92% deles são em apps. Apenas uma pequena fração do tempo é dedicada à navegação. Entre os muitos insights que se pode tirar destes dados, há uma reflexão sobre os futuros da comunicação e a crise na imprensa.

Conteúdos em textos longos — o principal produto da imprensa e do jornalismo — estão longe de ser os mais indicados para consumo nas pequenas telas verticais dos telefones. Acessados prioritariamente a partir de aplicativos, como WhatsApp e Facebook, os veículos são consumidos de forma fragmentada — mais ou menos como músicas são ouvidas isoladamente e não mais nos álbuns de origem.

Há uma tendência de contínua deteriorização da identidade dos veículos. Assim como já não se percebe a curadoria de um álbum ou da gravadora ao se ouvir uma faixa no Spotify. Esse consumo fragmentado, infiel e a conteúdos preferencialmente curtos, ou em vídeo, apenas apresentam ainda mais desafios para modelos de pay-wall, assinaturas ou qualquer fonte direta de receita pelos veículos.

O site Poder 360 compilou números que demonstram o severo decréscimo na tiragem impressa de jornais brasileiros e alta — porém modesta — nas assinaturas digitais. Por exemplo, a Folha de S. Paulo, perdeu 125 mil exemplares de tiragem média diária nos últimos 5 anos, enquanto ganhou 82 mil assinantes digitais. A receita do assinante digital, porém, é pequena face ao leitor de banca. E com tão pouco tempo dedicado a navegar por sites, abertos ou fechados, e pouca garantia de que o próximo link recebido no grupo de zap vai apontar para o mesmo jornal, são cada vez mais frágeis os argumentos para se pagar por essas assinaturas.

Não se consome sites, jornais e revistas como se consome, e paga-se por, Netflix, Spotifys e afins. E ainda não há uma solução bem-sucedida que garanta uma geração digna de receita para quem produz conteúdo de qualidade, nem uma linguagem de fato efetiva que leve informação de qualidade pensada para consumo em celulares.

O problema não é só de receita, é de qualidade. Se os textos longos não funcionam no celular, ficaremos condenados aos conteúdos rasos e falsos das redes sociais? Se os veículos levam seus conteúdos para as redes, ficam sem receita. Se exigem a visita aos sites, ficam sem leitores. Sinuca de bico.