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Um fim, um começo

Os irmãos brincavam com uma bola enquanto ela fechava as malas. Quatro volumes, um para cada membro da família. É tudo que levariam de seu planeta cada vez mais desértico. Ergueu os olhos para além da redoma de vidro, instalada há muito tempo, quando se percebeu que a deterioração do clima era irreversível. Uma tempestade de areia vermelha se erguia no horizonte.

Procurou pelo marido, que ainda não tinha retornado do espaçoporto de onde partiriam para a nova casa. A bola veio quicando, indiferente a sua inquietação e aninhou-se entre seus pés. Os meninos agora estavam agora sobre umas caixas, posicionando as mãos em forma da aba de um boné sobre os olhos, espreitando o céu azulado do anoitecer que começava a pipocar de estrelas.

— É qual delas, mamãe?

— É aquela na direção do Sol poente, a mais azulada.

— É tão pequena. Vai caber todo mundo?

Ela riu, algo que não fazia há muito tempo. Eles eram os últimos habitantes a deixar o planeta moribundo, cada vez mais desértico e desolado. Preocupava o casal, mais do que a solidão de ter ficado para trás por serem cientistas-chefes da missão de evacuação planetária, a angústia de não terem recebido qualquer comunicação de retorno das muitas naves que partiram antes deles para o planeta vizinho.

— Sim, vai caber. Na verdade, é um planeta maior do que esse, mas inabitado. Vocês vão adorar. É muito parecido com nosso próprio mundo, como ele era tempos atrás, cheio de verde e de água.

As crianças seguiram olhando para o céu, incrédulas. Ela também se corroía de insegurança e medo. Nenhum sinal das expedições anteriores.

Haviam decidido mudar o lugar de pouso, um outro continente no novo planeta. Provavelmente nunca mais encontrariam outros de seu povo. Mas se o local das aterrisagens anteriores oferecia algum perigo, o que explicaria o silêncio por tanto tempo, a família teria mais chances de encontrar um lugar amistoso para reiniciar a longa caminhada da espécie.

Empilhou as malas fechadas sobre um carrinho. O céu já estava totalmente escuro e estrelado. Pouco se via das dunas e rochas avermelhadas fora da redoma. Um silêncio mortal imperava, quebrado somente pela voz do marido, que retornava do espaçoporto.

— Eva, a nave está pronta. Podemos partir.

Capa do livro Caixa de Futuros

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.

No metaverso

No metaverso
o verso da realidade
o espelho da vaidade
paixão elétrica por um ponto de luz

No metaverso
o reverso da prosa
o raso, o efêmero
a vazante da história num story

No metaverso
a busca da alegria
a metanfetamina
o mano, a mina
paixão elétrica por um ponto de luz

No metaverso
como insetos na lâmpada
como a foto na câmara
quadros por segundo
e segundas intenções

No metaverso
o verso é um slogan
avesso à emoção
emoji chorando
paixão efêmera por um punhado de luz

No metaverso
metade de mim
a meta de likes
emoji sorrindo
fake. virtual. irreal. luz.

Onde fica o centro urbano no pós-pandemia?

Centro do Rio, em foto de 2010

Quase todas as cidades tem um “Centro”. Um “marco zero”, um ponto de confluência. Às vezes é uma pracinha com uma igreja. Em outras, uma região essencialmente comercial com prédios altos e bom acesso pela malha de transporte público.

Os centros urbanos são espaços de encontros fortuitos, de troca de ideias em cafés. Quando todos estão dedicando suas vidas de trabalho por ali, é fácil promover encontros físicos, tudo está ao alcance de uma caminhada.

Quando você diz que “vai ao Centro”, não é preciso explicar “qual” centro. Mas o centro geográfico e o centro de gravidade econômica e social nem sempre estão sobrepostos. Nas duas principais cidades brasileiras, por exemplo, há alguns anos eles estão se afastando. Desde o início do século, pelo menos, o que efervesce em São Paulo é a região da Berrini, da Faria Lima. Como trabalho com internet e tecnologia desde sempre, diria que 70% dos meus compromissos profissionais em Sampa foram nessa região, e não na Avenida Paulista, coração do “centro geográfico”, e muito menos próximo à Sé, onde fica o Marco Zero da capital paulista.

Se as reuniões em São Paulo foram em condados farialimers, o centro de gravidade profissional aqui no Rio migrou em 2008, quando troquei o agitado Centro do Rio pela distante Barra da Tijuca. Em 12 anos centralizado em escritórios na Barra, vi mais e mais empresas próximas, ou na Zona Sul, que fica a meio caminho do novo Centro e do antigo.

As idas ao Centro carioca eram mais comuns que às ao centro paulista, mas quase tão cansativas quanto: não é simples se deslocar pelo Rio de Janeiro.

Então veio a pandemia, e o centro de gravidade mudou novamente de lugar. Já não era na Rio Branco, nem na Faria Lima e nem nos assépticos centros comerciais na Barra. O centro veio para casa. Meu centro de gravidade profissional e pessoal se juntaram, com o home office. E, para surpresas de muitos, ele funciona muito bem, obrigado.

Se o crescimento dos condados paulistas e da Barra já deterioravam o contexto dos centros tradicionais, a pandemia foi um golpe duro. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, lançou pelo Twitter um apelo para que o futuro presidente da Petrobras reveja a decisão de tornar permanente o teletrabalho, alegando que esta decisão fere mortalmente o centro da cidade.

Primeiro, é preciso ter em mente que o processo de degradação e de mudança de papel e perfil começou antes, com a descentralização da atividade econômica. Segundo, essa moeda tem dois lados: é claro que estabelecimentos, restaurantes e a própria malha de transporte público foram concebidos considerando um afluxo diário de milhares de pessoas para essa densa região. Por outro, há um custo e impacto enorme nisso, pois diariamente, milhares de pessoas deslocam-se de bairros e municípios distantes para cumprir suas rotinas: com isso, há grande desperdício de tempo dessas pessoas, fatores de risco para proliferação de doenças nos transportes lotados e pesada emissão de gases poluentes em todo o processo. Além disso, se os estabelecimentos comerciais do centro podem contar com enorme afluxo de pessoas e dinheiro, cria-se bolsões nos bairros e municípios vizinhos sem atividade econômica relevante. Bairros e cidades-dormitório.

Não faz sentido impor que milhares de pessoas dediquem duas, quatro, seis horas de seus dias em transportes públicos para ir para um único ponto e fazer um trabalho que poderia ser perfeitamente feito de forma remota apenas a troco de preservar o status quo destas importantes regiões das cidades.

Não é caso de se abandonar os centros, mas de repensá-los. No longo prazo, os centros urbanos não serão mais espaços de concentração de produção e trabalho, mas locais de encontro. A vocação dos centros urbanos está em eventos, em cultura, em turismo. Em sua História. Nos encontros em cafés e restaurantes, ainda que os participantes destas reuniões não estejam mais a apenas alguns passos uns dos outros. Em espaços abertos — lembra da pracinha que marca o centro nas pequenas cidades? — de convivência e, por que não, áreas verdes.

O futuro dos centros está mais nas centenas de bicicletas da Av. Paulista aos domingos e no reurbanizado trecho para pedestres da Av. Rio Branco, de onde se vê o belíssimo Teatro Municipal, monumentos e restaurantes tradicionais, do que nas calçadas dos dias de semana, em que filas dos restaurantes por quilo disputam espaço com ambulantes.

A era dos festivais e eventos sem cerveja quente e fila pro banheiro

A julgar pela quantidade de pessoas em bares e restaurantes no pós-quarentena, os grandes festivais de música não sumirão do mapa. Serão viabilizados por vacinas, pela ilusão de segurança dada por máscaras descoladas e iluminadas com led patrocinadas por algum banco ou marca de chiclete ou mesmo por nossa impressionante capacidade de negar riscos evidentes ajudarão a lotar arenas e cidades temáticas em todo o planeta.

O mesmo vale para nosso carnaval de rua e para tantos outros eventos. O “novo normal” (argh), ao que parece, tende a ser bem parecido com o “velho normal” (argh argh). Parecido, mas não tem como ser igual porque a caixa de pandora de novos comportamentos foi aberta.

Com um filho de 9 anos em casa, foi impossível evitar certas concessões tecnológicas. Liberamos os jogos multiplayer com os amigos, conversas com a “galera” por Skype ou Discord e ele descobriu novas formas de usar computadores para se divertir e para estudar também. Talvez ele tenha acumulado mais horas de Zoom durante a quarentena do que eu.

Uma das descobertas mútuas, de pai e filho, foram os eventos virtuais dentro de games. Pra quem viveu a rápida bolha do Second Life (consulte o Google se for jovem demais para ter se aventurado nas ilhas do SL), o deja-vu é forte, mas a experiência atual é significativa melhor e mais massiva.

Se na época do Second Life poucos tinham computadores e conexões capazes de oferecer experiências realmente imersivas, o evento “O Dispositivo”, que marcou uma mudança de temporada no jogo Fortnite, foi vivido (sim, vivido, mais que assistido) por 12 milhões de pessoas DENTRO DO GAME, acessando por consoles, tablets, celulares e computadores.

12 milhões é gente pra caramba

Depois de apresentações “ao vivo” de DJs e premieres de filmes, a Epic Games criou uma área de eventos dentro do jogo, uma espécie de centro de convenções virtual, especialmente para estas experiências. Ao invés de atirar nos amigos, você pode curtir um som, ver um cinema ou, quem sabe, ser apresentado a um novo carro, celular ou coleção de tênis.

Parece melhor que drive in. E pior que simplesmente botar o filme pra tocar na Netflix.

Os festivais virtuais podem ter escala global. E o alcance vai além da música e do cinema. No Rio de Janeiro, Flamengo, os demais clubes e a TV Globo estão em guerra pelos direitos de transmissão dos jogos da equipe rubro-negra. Na Europa, a Amazon já transmite partidas.

Como será a experiência de acompanhar uma final da Champions League da arquibancada virtual de uma réplica perfeita do estádio, podendo interagir com os torcedores ao lado e fazer coisas que vão além de simplesmente replicar o espaço real — nos shows do Fortnite você pode saltar em pisos-elásticos, viajar para o espaço, ser teleportado para dimensões mágicas etc.

Como experiência para o público e para marcas, como se compararão grandes festivais físicos regionais com os festivais virtuais globais?

Que novos players estão se juntando à indústria do entretenimento?

Perguntas que veremos respondidas em breve. Provavelmente com um joystick em mãos.

Os fins justificam os fakes?

No final de novembro, o incrível podcast Radiolab, da WNYC, publicou o episódio Breaking Bongo, sobre a luta virtual de gaboneses exilados contra o ditador Ali Bongo e seu regime. Ao longo de uma hora de histórias e depoimentos, o programa nos apresenta o uso das redes sociais e da mídia digital em geral como armas de guerra. No caso, a guerra contra uma ditadura que controla os meios oficiais de comunicação.

Tudo é tristemente familiar para a gente. É impossível não encontrar vários paralelos e perceber que, no caso do Gabão, as fake news acabam sendo utilizadas por ambos os lados, inclusive com suspeitas de uso de deep fakes para fazer o presidente, que tinha sofrido um derrame, falar à Nação como se nada tivesse acontecido.

Ao final, os jornalistas apresentam uma provocação que volta e meia nos assola também: há alguma justificativa moral para se usar fake news? Se elas são uma arma, são uma arma que os “mocinhos” podem usar? Existe fake news do bem? Ou fake news são como armas químicas, em que seu uso jamais se justifica?

Conexão Gabão-Brasil

Reprodução do PPT apresentado pela deputada Joice Hasselmann

Dias depois do episódio ir ao ar, a jornalista e deputada federal Joice Hasselmann, algumas vezes acusada de plágio ou de disseminar inverdades enquanto apoiadora do atual governo (ainda democrático) do Brasil, foi a uma comissão parlamentar de inquérito para expôr a rede de fake news supostamente conduzida pela família do presidente.

conteúdo apresentado ainda precisa ser comprovado, mas indícios não faltam, inclusive de outras fontes. No caso gabonês, a rede virtual de informação (e, depois, também de desinformação) foi criada de forma descentralizada pela diáspora de gaboneses sobretudo nos EUA e Europa, como forma de levar um contraditório aos moradores do país reféns da imprensa local, controlada (ou cerceada) pelo governo. No caso brasileiro, seguindo o molde pré-eleitoral e também de outros movimentos, como o Brexit e as eleições americanas, a rede virtual parte do Governo. Inclusive, a denúncia de Joice reforça dados já relatados pela imprensa de que muitos dos articuladores são funcionários públicos em gabinetes e departamentos da Administração.

Os fins não justificam os fakes

Curioso entender (ou descobrir) o papel da imprensa tradicional nessa batalha e não deixarmos de lado a questão inicial. Acredito que não haja qualquer dúvidas sobre a imoralidade de uma máquina de fake news plantada e nutrida pelo Governo. Mas e se fosse o contrário? Se fosse como no Gabão? Uma fake news pode ser usada na luta para derrubar um regime ditatorial? Pode-se esperar qualquer efeito benéfico de uma mentira? Rebater mentiras com mentiras faz algum bem ao debate político?

Não tenho a resposta. Mas, como jornalista de informação, não consigo aceitar que manipular os outros por meio de dados falsos ou mal-interpretados seja aceitável. É claro que a imprensa erra, mas errar é diferente de distorcer a realidade deliberadamente. Quando blogamos, quando postamos, quando abrimos uma live, estamos naquele momento nos posicionando como veículo, como fonte, estamos fazendo jornalismo. Uma coisa é dar opinião, outra é apresentar um fato. Fatos são fatos. Se forem distorcidos tornam-se narrativas, e isso é outra coisa. E não é o que o leitor/espectador espera.

Se informação é uma arma de guerra, a verdade será sempre a mais poderosa.

A extinção da privacidade

Wikimedia

Todos os novos usuários de telefones celulares da China precisarão escanear suas faces como determina uma lei que entrou em vigor nesta semana. Este é mais um passo na intensa política de uso de reconhecimento facial pelo governo chinês, o maior laboratório a céu aberto de como o uso de tecnologias sem qualquer freio podem afetar a sociedade.

Até agora, o que chega ao ocidente, filtrado pela escassa liberdade de expressão do gigante capital-comunista, é assustador. Basta acompanharmos o desenrolar dos protestos em Hong Kong e o esforço dos manifestantes em não se deixar identificar por câmeras de segurança.

Orwell era chinês?

Reconhecimento facial, controle das comunicações, gigantescos bancos de dados e o igualmente controverso sistema de crédito social (basicamente o episódio Nosedive, de Black Mirror, só que pra valer) fazem a China parecer o Lex Luthor global da privacidade. O país caminha para ser o primeiro em que o conceito de privacidade seja inteiramente extirpado da sociedade.

Utilizadas pelo próprio governo autoritário do país e com acesso crescente a dados produzidos por mais de 1 bilhão de pessoas, as avançadas tecnologias de reconhecimento facial e inteligência artificial — duas frentes em que a China nada de braçada — podem ter impactos sinistros e inéditos na vida dos chineses, sem que não haja qualquer órgão regulador que possa agir. Quem discorda do que é feito não tem a quem recorrer.

A China é aqui

Não que a China seja uma Lois Lane nessa história, mas é fácil culpar um regime autoritário e quase caricato como é a imagem do gigante asiático no ocidente. Ao utilizar recursos como desbloqueio facial em nossos celulares ou marcarmos familiares nos álbuns online e fotos em redes sociais, estamos sendo voluntários em experimentos similares. Sai um governo autoritário, entram empresas, fica a montanha de dados fornecida gratuitamente. No primeiro caso, pela força de leis draconianas. No segundo, em troca de um filtro bacana, uns segundos a menos para desbloquear o celular ou para não deixar passar o meme do momento. Em todos os casos, a privacidade torna-se um conceito em extinção.

Nenhum dado a mais. Nenhum direito a menos (será?)

Conhecer o outro é uma vantagem competitiva. O governo que conhece mais seus cidadãos que as pessoas ao governo tem vantagens sobre seu próprio povo. Idem para empresas, que cada vez nos conhecem mais e mais. Se não há governo que controle a si mesmo na China, é imperativo lutarmos para que as empresas que coletam nossos dados sejam transparentes no uso que pretendem dar a eles, que os armazenem de forma segura e, sobretudo, que possamos efetivamente ter controle sobre quem sabe o que sobre a gente.

Empresas hoje sabem exatamente onde você está agora, com quem, onde esteve nas últimas 24h e para onde provavelmente vai. Com quem você falou, o que comprou, o que comeu, que música ouviu, que seriado está vendo e por aí vai. Isso em si não é trágico, embora preocupante. A conta pode até fechar, desde que esse mar de informações não esteja numa terra sem lei.

Existem regulamentações, órgãos de controle e princípios pra isso, mas, como na luta por uma web saudável e democrática, não dá pra ficar apenas esperando que terceiros resolvam a pendenga pra gente. É uma briga pra encararmos continuamente, como consumidores, como indivíduos e organizados em sociedade, e pra ficarmos de olho em todos os movimentos do mercado e de governos (especialmente os com vocação autoritária), olho no olho, face a face.

Crie leis estúpidas (sobre tecnologia) e elas te comerão os olhos

Já fui partidário da filosofia valesiliciana de que a tecnologia é irrefreável, e que se uma lei ou um grupo social é atacado pela tecnologia, que se mude a lei ou o grupo social. Também já concordei integralmente com a visão de que se um robô tira o emprego de alguém, a culpa é do alguém que não é capaz de ser melhor que um amontoado de chips e algoritmos.

Tem horas em que é isso mesmo, mas hoje entendo que a questão é muito mais cinza do que preto-no-branco e que a evolução tecnológica não deve-se dar a qualquer custo. Um avanço tecnológico não é válido se não trouxer um avanço social a reboque. Ou seja, a descoberta de uma nova vacina beneficia mais pessoas e sociedades do que prejudica as pessoas contrárias à vacinação por alguma questão ideológica. Carros elétricos autônomos podem melhorar a vida de mais pessoas — pela redução de acidentes, melhoria do tráfego nas cidades e redução da poluição — do que os motoristas prejudicados pelo fim de seus empregos. E por aí vai.

Mas nossa classe política não ajuda no embate contra a visão tecnototalitária do Vale do Silício ao tentar restringir a inovação na base da canetada, e ainda mais com leis estúpidas e natimortas.

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que exige que estacionamentos contratem um funcionário para cada máquina de autoatendimento. A justificativa é gerar/preservar empregos, mas é uma lei estúpida não necessariamente pela motivação, mas por ignorar que é inócua e facilmente contornável.

A lei não leva em conta de que a principal força tecnológica em jogo não é a proliferação de totens de autoatendimento, mas o processo de desintermediação e automação de processos. Eles entendem que, ao não poder interagir com a máquina, os clientes preferirão interagir com o atendente. Na verdade, o cliente não quer interagir com ninguém.

A alternativa ao atendente humano não é o totem, são os tags que permitem ao veículo entrar e sair pelas cancelas com pagamento mensal. Os Sem Parar e ConectCar da vida. Ou, ainda, o autoserviço via celular. O sujeito paga o estacionamento por um aplicativo, de dentro do próprio carro ou do shopping, sem precisar interagir com ninguém.

Como será controlado isso? A depender do bairro ou do perfil do estabelecimento, o estacionamento poderá funcionar normalmente sem qualquer posto de atendimento, seja humano ou na forma de totem. E, ainda assim, 100% dentro da lei.

Será econômico para o estabelecimento, prático e “sem fricção” para o cliente e impossível de se fiscalizar pelo poder público. Pra quê perder energia com uma lei impossível de se viabilizar?

Essa história me lembra um causo corporativo que ouvi certa vez. Reza a lenda que um executivo de uma multinacional tinha como meta reduzir o número de clientes inadimplentes. A meta não dizia que ele tinha que converter estes inadimplentes em pagantes, apenas que ele precisava terminar o ano com menos caloteiros do que tinha em janeiro. Como ele fez para resolver o problema e assegurar seu bônus? Encerrou todos os contratos de clientes em aberto e deixou para lá todo o faturamento que a empresa poderia recuperar com eles.

Muito cuidado com as leis e regras que você cria. Elas podem ser cumpridas ao pé da letra e o resultado pode ser muito pior do que antes de sua canetada.

Supremacia móvel e a sinuca de bico da imprensa

De cada 100 minutos gastos em plataformas digitais no Brasil, 85 são em dispositivos móveis. Os dados são do estudo Global State of Mobile, da ComScore.

Dentre os países avaliados, só perdemos em tempo dedicado aos celulares para Indonésia e Índia, ambos com impressionantes 91%.

A supremacia móvel não surpreende: os celulares são os dispositivos que viabilizam a inclusão digital e as aplicações que mais trouxeram brasileiros para o mundo digital eram justamente as mais mobile friendly, como as redes sociais e os mensageiros instantâneos.

Desta avalanche de minutos online via dispositivos móveis por brasileiros, 92% deles são em apps. Apenas uma pequena fração do tempo é dedicada à navegação. Entre os muitos insights que se pode tirar destes dados, há uma reflexão sobre os futuros da comunicação e a crise na imprensa.

Conteúdos em textos longos — o principal produto da imprensa e do jornalismo — estão longe de ser os mais indicados para consumo nas pequenas telas verticais dos telefones. Acessados prioritariamente a partir de aplicativos, como WhatsApp e Facebook, os veículos são consumidos de forma fragmentada — mais ou menos como músicas são ouvidas isoladamente e não mais nos álbuns de origem.

Há uma tendência de contínua deteriorização da identidade dos veículos. Assim como já não se percebe a curadoria de um álbum ou da gravadora ao se ouvir uma faixa no Spotify. Esse consumo fragmentado, infiel e a conteúdos preferencialmente curtos, ou em vídeo, apenas apresentam ainda mais desafios para modelos de pay-wall, assinaturas ou qualquer fonte direta de receita pelos veículos.

O site Poder 360 compilou números que demonstram o severo decréscimo na tiragem impressa de jornais brasileiros e alta — porém modesta — nas assinaturas digitais. Por exemplo, a Folha de S. Paulo, perdeu 125 mil exemplares de tiragem média diária nos últimos 5 anos, enquanto ganhou 82 mil assinantes digitais. A receita do assinante digital, porém, é pequena face ao leitor de banca. E com tão pouco tempo dedicado a navegar por sites, abertos ou fechados, e pouca garantia de que o próximo link recebido no grupo de zap vai apontar para o mesmo jornal, são cada vez mais frágeis os argumentos para se pagar por essas assinaturas.

Não se consome sites, jornais e revistas como se consome, e paga-se por, Netflix, Spotifys e afins. E ainda não há uma solução bem-sucedida que garanta uma geração digna de receita para quem produz conteúdo de qualidade, nem uma linguagem de fato efetiva que leve informação de qualidade pensada para consumo em celulares.

O problema não é só de receita, é de qualidade. Se os textos longos não funcionam no celular, ficaremos condenados aos conteúdos rasos e falsos das redes sociais? Se os veículos levam seus conteúdos para as redes, ficam sem receita. Se exigem a visita aos sites, ficam sem leitores. Sinuca de bico.

Lute pela Web

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“Foi necessária a contribuição de todos nós para construir a Web que temos hoje. E precisaremos de todos para garantir seu futuro.” É assim que se apresenta o Contrato pela Web, iniciativa capitaneada pelo criador da WWW, Tim Berners-Lee, por meio da World Wide Web Foundation.

Reprodução: https://contractfortheweb.org/

É a melhor forma de iniciar a conversa, pois traz de volta à discussão o fato, hoje pouco evidente, de que não foi a determinação isolada de mega-empreendedores que trouxe a internet até o que ela é hoje, foi nossa ação coletiva. Não tivesse se mostrado um ambiente coletivo e colaborativo ímpar na história humana, poucos empreendedores teriam se aventurado nesse terreno digital da forma que o fizeram. Sem nossas páginas no Geocities, sem os blogs, os álbuns do Flogão, as comunidades do Orkut, as convenções criadas espontaneamente por usuários de Twitter, como os RTs, sem a imensa variedade de coisas à venda nos eBays e Mercado Livres da vida, sem tudo isso não existiria um Facebook, um Google.

Mesmo que não tenha um único leitor, um livro continua sendo um livro. Uma edição de O Globo não depende do leitor para ter conteúdo, fotos, textos. Google e Facebook não existem sem seus usuários (e sem os terabytes de informações que eles fornecem a todo momento). O mesmo vale para qualquer rede social (que, sem nós, não é nem rede nem social) e para buscadores (que precisam ter o que buscar).

Nos acostumamos a nos apequenar, a abrir mão de nosso protagonismo. Esse manifesto, na forma de um conjunto de princípios e assinado como um contrato, define 9 ações que devem ser tomadas se quisermos que a internet continue (ou volte) a ser um espaço plural, saudável e democrático. E não é um abaixo-assinado para que alguém faça alguma coisa. É um documento com o qual todos podem (devem, eu diria) se comprometer. Há princípios para governos, para empresas e para nós, cidadãos. Todos podem e devem contribuir de alguma forma. Da mesma maneira, todos têm nas mãos o poder de terminar de estragar tudo, com consequências nefastas e distópicas.

Temos visto no mundo inteiro o incrível potencial de estrago que a Internet tem, sobretudo sobre o frágil sistema democrático. E com metade da população ainda desconectada, essa ferramenta de inclusão torna-se plataforma de exclusão.

Muitos já consideram a internet um serviço de utilidade pública e, como tal, garantir acesso universal e a preço justo — se não gratuito — é primordial. Depois, é preciso garantir ambiente saudável e com respeito à privacidade.

Por último, a chamada a ação combinada com um choque de realidade: a Web não vai se salvar numa canetada. Algumas das empresas que apoiam o Contrato pela Web desde seu lançamento são justamente algumas sobre as quais recaem mais questionamentos e denúncias, como Google e Facebook. Levará um tempo até recolocarmos a Web nos trilhos e nada aponta para um caminho linear e tranquilo. A luta pela liberdade, pela democracia e, agora, pela Web, não é pontual. É de constante vigilância.

Então, agora, mas também a cada postagem, a cada compartilhamento, a cada tentação para entrar numa treta, a cada “cancelamento”, pense duas vezes e lute pela Web.

Bad Vibes Social Media Club

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Bad vibes boat — Source: https://www.flickr.com/photos/numb3r/3171953619/
Bad vibes, Bob! — Fonte: https://www.flickr.com/photos/numb3r/3171953619/

Uns 10 anos atrás o cenário era bem diferente do atual. Boa parte de minha agenda era dedicada a dar palestras ou participar de debates sobre o impacto das redes sociais nos negócios, sobre como se preparar para este novo mercado de trabalho e a repercutir, na imprensa, reportagens sobre esse avassalador fenômeno.

Muito antes dos coaches quânticos, o momento era dos gurus de social media, dos Gerentes de Twitter e da blogosfera festiva. E de quem, como minha turma, na Frog, e em tantas outras agências e empresas dedicadas a este contexto, trabalhava duro tentando entender e explorar o admirável mundo novo que surgia.

Disciplinas, metodologias e processos foram criados por esses profissionais. Muitas evoluíram e tornaram-se, hoje, importantes ferramentas tanto de comunicação quanto de Pesquisa e Insights. Boa parte dos estagiários dessa era de ouro das redes sociais, quando tudo era mato, são hoje empreendedores, gerentes e executivos mundo afora.

Por que, então, um sentimento deprê em relação às mídias sociais?

O tempo virou, isso não dá para negar. As plataformas sociais saíram das páginas de Negócios e Tecnologia para as de Política e até de Polícia. Tememos — não sem razão — os efeitos nefastos da invasão/evasão de privacidade e manipulação de nossos sentimentos e comportamentos. Influenciadores estão na berlinda por documentar e promover modos de vida falsos e inatingíveis. A entrega real dos formatos digitais de mídia é questionada por conta de robôs e distorções nos números.

bad vibe é inevitável. Poucas marcas conseguem preservar algum alcance orgânico significativo, e conforme as pessoas descobrem coisas mais úteis a se fazer do que comentar em postagens de empresas, a promessa de comunidades integrando marcas e seus fãs/consumidores num Woodstock corporativo se esvai tão rápido quanto os novos virais, cada vez mais efêmeros.

É importante entendermos o novo contexto e redescobrirmos nosso papel. O digital veio pra ficar. As redes sociais vieram pra ficar. Mas a verdade é que o mundo, a sociedade, nossos consumidores não precisam de mais uma marca fazendo piadinha. Não precisam de mais uma dica de como preparar o alimento X, Y ou Z.

O desafio de quem quer gerir a comunicação de uma marca é descobrir quais as oportunidades de conexão genuína com seus públicos de interesse. É escolher qual briga vale brigar, e em que lutas estamos apenas fomentando ruído num contexto de qualidade de informação cada vez menor. É descobrir como estar presente na vida do interlocutor na hora certa e na medida certa. Nem mais, nem menos.

E de encarar o cenário de forma ampla e sem paixonites. Se pensarmos no Hype Cycle do Gartner, quase todas as linguagens e ferramentas ligadas ao digital/social media podem ser posicionadas como que despencando ladeira abaixo rumo ao que o gráfico chama de “Vale da Desilusão”, que se sucede ao “Pico das Expectativas Exageradas”. Qual a boa notícia? Quem sobrevive a essa deprê está evoluindo na “ladeira da iluminação”, rumo ao sonhado “platô da produtividade”.

Hype Cycle do Gartner Group.

Como se imagina de qualquer platô, o “Platô da produtividade” é plano, chato. Mas é bem mais útil para se plantar soja, criar gado ou erguer-se uma cidade do que o pico de uma montanha. Picos garantem capas de revistas a seus conquistadores e plateias cheias nas palestras dos coachings de alpinistas, mas o que garante o ganha-pão de mais gente, por mais tempo, são os platôs.

Nada contra descobrir ou desbravar os novos picos. Sem picos hoje, não teremos platôs amanhã, mas também é hora da colheita, hora de se fazer todo o hype de anos atrás virar dinheiro, empregos, resultados. E benefícios sociais.

Sobre a estratégia de muitas marcas hoje em dia

Hora de olhar menos pro trocadilho no Instagram e mais pra cadeia de negócios como um todo, par captação, nutrição e monetização de leads (do cara que realmente quer te comprar), pra extrair insights relevantes sobre o comportamento do consumidor, do cidadão. E para oferecer a eles conteúdos e ferramentas de fato relevantes, de fato memoráveis, de fato integrados com a história maior da marca e com o objetivo tangível do negócio. Hora de se contribuir com a qualidade dos meios digitais, não de se ampliar o ruído. (A criação de uma sociedade baseada em desinformação e vigilância não é um preço aceitável a se pagar por qualquer que seja o objetivo de marketing, mas isso é tema pra outro texto).

A história do platô é menos charmosa, e mais difícil de motivar os estagiários e jovens de hoje. Rende menos capas de revista e palestras estilo TED. Mas elas podem ser a diferença entre uma contabilidade azul ou vermelha. E entre se ter fôlego pra montanha de amanhã ou não.