Skip to content

Os literais

Written by

Roberto Cassano
Imagem gerada pelo KREA.AI com casas de campo que foram as palavras OS LITERAIS

Valente deu uma gorjeta generosa para os carregadores e fechou a porta da casa nova atrás de si. Caixas e mais caixas com a mudança se amontoavam na sala. As costas doíam do sobe e desce da longa estrada até a pequena cidade no meio do nada, mas não lhe restava opção. Era desempacotar tudo ou dormir sobre o estrado nu da cama, sem um lençol sequer para lhe fazer companhia. Já tinha esvaziado algumas caixas quando ouviu o toc-toc.

Abriu a porta. Uma mulher alta, forte e feia, de uns quarenta anos e macacão empoeirado, trazia uma caixa de ferramentas e um sorriso prestativo. Ao lado, um homem de rosto amável se empenhava para aliviar-lhe o peso e segurar a tal caixa.

— Olá, sou Maria D’Ajuda, vi quando o caminhão da mudança chegou. Esse é meu marido, o Gentil. Que tal se a gente montar os móveis enquanto você abre as caixas? — Esticou o pescoço para lançar um olhar ansioso para o monte de volumes lacrados.

O homem, que não esperava visitas, viu D’Ajuda e Gentil entrarem e começarem a trabalhar. Mal teve tempo de processar a invasão quando ouviu um bafafá em seu quintal: outro casal estava podando um canteiro de flores, e discutiam calorosamente com dois caras fortões que tentavam derrubar uma grande mangueira que dava sombra ao terreno.

— Ô vizinho, o Serra e o Machado tão tentando derrubar sua árvore, avisa lá que você não quer. Esses dois não batem bem, só pode…

Valente não tinha planos de botar a mangueira abaixo e foi até os lenhadores, que recuaram sob protestos.

— Esses dois sempre estragam nossa festa — disse Machado, apontando para a dupla que cuidava das flores. — O Dr. Jardim e a mulher adoram arrumar confusão.

Concordou por educação e voltou para casa, onde Maria D’Ajuda já prendera duas prateleiras. Um grupo de outras cinco pessoas passou por ele, às gargalhadas, e se puseram a abrir caixas e a desempacotar coisas.

— E você, quem é? — perguntou Valente ao que parecia ser o líder da entretida trupe.

— Oi, sou Hilário. Trouxe uns amigos pra ajudar também. Vai ficar apertado, mas com jeito todo mundo se encaixa. Sacou? Caixa, encaixa… — girou dois dedos da mão para oficializar o trocadilho enquanto todos na casa se contorciam de tanto rir.

Valente já não desempacotava mais nada, sequer fechou a porta da frente. Apenas assistia à pequena multidão que exalava prestatividade em sua nova sala. Eles abriam caixas, retiravam com cuidado os itens e desfaziam os embrulhos de plástico bolha. D’Ajuda já tinha montado a estante e a mesa de jantar, e falava sem parar sobre assuntos diversos. Contava que a cunhada, Auxiliadora, adoraria estar ali, mas caíra doente, e estava sob os cuidados da moradora lá do fim da rua principal, a Dra. Márcia Remédios.

Alguém o cutucou no ombro. Era o Dr. Jardim, perguntando se ele teria um regador. Não tinha. Entrou então pela casa, deixando pegadas de terra fofa, seguindo para o banheiro. Hilário fez uma piada sobre os joelhos sujos de barro e o grupo veio abaixo numa gargalhada. Valente só queria ficar sozinho, que era a única motivação pra ter se mudado às pressas para aquele fim de mundo.

O Serra, que tinha desistido de derrubar a mangueira, saiu de repente por uma porta interna, todo coberto de serragem.

— A bancada da cozinha era muito grande, não ia caber uma geladeira de duas portas. Resolvi isso pra você.

A geladeira de Valente era de uma porta só. Ele abriu a boca pra argumentar, mas não processou qualquer resposta. Grunhiu alguma coisa e teve a atenção atraída para outra pessoa que também vinha da cozinha.

— Ô Carvalho, machucou, precisa de algo? — perguntou Gentil ao homem. O marido de D’Ajuda segurava uma bandeja e várias xícaras de café, devidamente desempacotadas e postas em uso. Distribuía a bebida ao exército de voluntários.

—  Foi esse maluco do Serra, ia me cortando — protestou Carvalho, com o braço enfaixado num dos panos de prato que Valente trouxe na mudança.

Valente tremia. O zumzumzum da comitiva o desnorteava. Puxou o ar para colocar todo mundo para fora aos berros, quando notou uma mulher se preparando para abrir uma das caixas. Era mais fornida que bonita. Trazia uns olhos castanhos enormes e um cabelo liso e escuro descendo à frente do vestido floral bem curto, cuja manga escorregava pelo ombro conforme se debruçava sobre a caixa, mais insinuando que revelando. Ostentava curvas sinuosas como a estrada percorrida até aquele lugar. Valente empertigou-se para puxar papo. Ela de pronto pegou-lhe na mão e Valente sentiu um calor rasgar suas vísceras como nunca antes. Os olhos se encontraram, e ela abriu um sorriso fogoso.

— Oi, sou a Rosa. Rosa del Fuego. Gostei da sua blusa…

— Valente. É, isso. Meu nome é Valente.

Ela se inclinou sobre a caixa e aproximou o rosto ao de Valente. O decote revelava mais do que insinuava. Ela seguiu seu olhar e sorriu maliciosamente enquanto apertava ainda mais sua mão.

— É justamente de um valente que eu preciso… — sussurrou em seu ouvido, e labaredas queimaram o cérebro do homem, o calor irradiando por todos seus membros.

Não teve tempo de perguntar o motivo. De súbito, todos saíram da casa com pressa. Ficaram apenas Del Fuego, Valente e o Sr. Inocêncio, que não entendeu o que se passava. À porta, os encarava um sujeito enorme, carrancudo, tatuado, com cicatrizes no rosto e no bíceps delineado.

Rosa largou a mão de Valente e ergueu-se, trêmula, acertando a manga e esticando o vestido.

— To-Tonho, meu amor, como foi no trabalho?

Tonho Boa-Morte só tinha olhos para Valente, e um outro tipo de fogo ardia em cada pupila.

Foi nessa hora que Valente provou não ser fruto daquela terra. Ele pulou pela janela e correu até não sentir mais as pernas. Nunca mais foi visto por aquelas bandas.


Curtiu? Então não deixe de conferir IVUC – A Iniciativa C’ach’atcha, uma ópera espacial de humor, disponível na Amazon.

in:

Tagged:

Previous article

Vai um conto aÍ? Dicas de leitura

Next article

A longa viagem a um universo adorável