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A longa viagem a um universo adorável

Written by

Roberto Cassano
Arte sobre ilustração da nave Andarilha, de Christopher Doll
Arte sobre ilustração da nave Andarilha, de Christopher Doll

Para vermos com clareza certas questões, precisamos mudar nossas perspectivas. De fora, muitos traços de nossos comportamentos ou socidade se tornam estranhos. Esse é o desafio do antropólogo e do etnógrafo, por exemplo. Colocar-se como estrangeiro em sua própria terra.

Há um atalho, acessível mesmo a quem não se dedica às importantes ciências sociais: a ficção científica. Em Star Trek, a SciFi nos mostra que há razões para acreditar que, sim, superaremos nossas diferenças e vamos explorar a galáxia como desbravadores que somos. Star Wars nos chama a atenção para o mal travestido de herói, para a vilania dos impérios, mesmo quando se autodenominam guerreiros da democracia. E que não há como se exterminar o mal, nem o bem.

Becky Chambers, em “A longa viagem a um pequeno planeta hostil“, livro de estreia da autora e primeiro da série Wayfarers, constroi um universo fascinante, divertido e adorável, que traz comparações e reflexões profundas sobre nossa vida contemporânea, sem descabar em momento algum para pieguice ou palestrinhas.

Não é uma saga sobre guerras, ganância e nossa eterna vocação para a autodestruição (tem isso tudo, mas não como foco), mas uma história pessoal. O mais incrível não é o enredo nem o desenrolar da história em si, mas o que acontece entre cada acontecimento envolvendo a tripulação da Andarilha, uma nave perfuradora de túneis no espaço-tempo, toda remendada, mas cuidada e amada por cada integrante do time.

É na relação entre a tripulação diversa e nos mergulhos em seus sonhos e dores pessoais que a história brilha como uma supernova. A narrativa acontece no espaço, envolve conceitos científicos, apresenta a política e as normais sociais de espécies sentientes e planetas completamente diferentes entre si, tentando construir uma existência harmônica em uma grande Comunidade Galáctica, a CG, mas se destaca na sensibilidade incrível de Becky para mergulhar na alma de cada criaturinha.

Todos os personagens tem papéis relevantes, suas próprias dores e buscas e seus momentos de foco, ápice, redenção ou perda. Não são soldados rasos (em todos os sentidos), numa busca obcecada por uma missão (salvar a galáxia! Encontrar a joia X! etc). São pessoas. De tudo quando é tipo. Humanos, lagartas, répteis com penas, calados, ranzinzas, promísculos, sem noção, apaixonados. Impossível não traçar paralelos com colegas de trabalho.

Chama também atenção o ritmo, que destoa do frenesi do SciFi moderno (sobretudo do cinema). É uma história que dá o tempo que cada personagem pede. E é nesses detalhes, da ambientação, do lar improvável, de uma família improvável, que vamos viajando, cruzando meia galáxia rumo a um planeta perto do núcleo galáctico. Muitos talvez considerem a narrativa lenta, arrastada. Achei na medida, como um chá agradável numa estufa cheia de plantas e insetos no meio de uma nave supostamente industrial.

Que planeta é esse que procuram? Como é? O que tem nele? Pouco importa. “A longa viagem” é um road movie. Só que sem estrada e sem movie. É um Pequena Miss Sunshine sem uma Kombi. É divertido também, respeitando a trilha aberta por Douglas Adams em “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (trilha que eu respeitosamente tento seguir em meu IVUC – A Iniciativa C’ach’atcha). É uma viagem ao coração de cada adorável personagem e, por tabela, ao nosso próprio, nossos preconceitos, nossa predisposição a julgar os outros por nossos filtros culturais. Nossas relações familiares. É um exercício etnográfico.

Pena que demorei tanto para descobrir essa história, daquelas que você termina a leitura marejado, com saudade de Rosemary, Dr.Chef, Kizzy, Jenks, Sissix, Lovey, do capitão Ashby Santoso, Ohan e até de Corby.

Arte de Elsa Varland.

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