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O que eu tenho lido? Vem que te contos!

Written by

Roberto Cassano

Dediquei as últimas semanas a contos e livros de contos, começando por mais um livro da Maratona Julio Cortázar: logo ele, o clássico, o fundamental, o magnífico Bestiário, e engatando Contagem Regressiva, de Roque Valente, Charlotte Sometimes, de Fábio Fernandes e Tentei Salvar o planeta de um asteroide em um site adulto, de Douglas Domingues. O que achei? Vem que te contos!

Bestiário, Julio Cortázar

Eu me recordo perfeitamente da primeira vez em que provei batata corada. Isso deve ter me marcado demais, porque já contei essa história umas três vezes só aqui no Brogue. Tinha uns 10 anos, mais ou menos, numa temporada numa fazenda em Teresópolis. Lembro da aparência, um jeito de pão de queijo, mas de um amarelo vivo, levemente tostado. A fumacinha que escapava das bolinhas, a explosão de sabor na boca.

O segundo livro da #MaratonaCortázar foi logo ele, o livro que me ensinou a amar contos. Assim como foi com as batatas, saboreei Bestiário pela primeira vez há muitos anos. Já tinha lido contos, claro, mas foi Julio Cortázar (ok, talvez tenha sido Allan Poe, mas isso não invalida o prólogo) quem primeiro desnudou para mim o papel do conto em sua essência mais pura: um desconhecido que abre caminho entre a multidão na plataforma do metrô e lhe larga um soco no estômago, ou se revela um mágico e te deixa rindo sozinho.

Bestiário começa com um dos mais famosos contos latino-americanos, “Casa Tomada, uma metáfora poderosa para nossa (falta de) reação aos fantasmas (que insistem em retornar). Enquanto você ainda está se recuperando, o céu da boca queimando pela batata corada quente, Cortázar engata a história do sujeito que vomita coelhinhos e o misterioso diário de Alina Reyes, texto repleto de jogos de palavras e metalinguagem. Todos impactaram como se fosse a primeira vez. Nenhuma batata corada teve o mesmo efeito depois daquele almoço em um dia frio em Teresópolis.

Em “Ônibus“, Cortázar apresenta um conto de atmosfera. Nessa e em várias outras histórias, vale a analogia de Hemingway ao iceberg. Pouco é dito, muito é sugerido. Cada conto vale por um dúplex na sua cabeça. Depois de mais alguns contos chegamos ao também clássico “Bestiário“, que brinca de mostra-e-esconde e constrói uma narrativa em cima do que é sugerido, que banaliza o absurdo, instiga, machuca. Um mestre.

“Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho os dedos na boca como uma pinça aberta e aguardo até sentir na garganta a lanugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é veloz e higiênico, transcorre num instante brevíssimo. Retiro os dedos da boca e neles trago seguro pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, só que branco e inteiramente um coelhinho.”

Contagem regressiva, Roque Valente

Contagem Regressiva é o primeiro texto de Roque Valente pelo selo Saifers. No conto, um casal de cientistas vai às últimas consequências para proteger um ente amado. A história entrega tudo que um bom conto precisa. Do começo “vem comigo que no caminho te explico” ao final soco no estômago e nas reflexões que nos acompanham além das páginas. Eu faria o mesmo? Faria. Mesmo sabendo das consequências? Danem-se as consequências.

Do núcleo da família ao núcleo do átomo, causa e consequência, ação e reação. Quanta coisa pode ser questionada, revista, escancarada em quarenta e poucas páginas. A história traz, como subtexto (olha o iceberg do Hemingway de novo!), o dilema de Peter Parker: “Com grandes poderes, grandes responsabilidades.” Os protagonistas possuem, com seu conhecimento científico, um brutal poder, e o usam como juízes e executores. Precedente perigoso mas, pelo contexto… no lugar deles… quem aí diria não? Quem afastaria o cálice?

Roque escreve muito bem (já comentei sobre um de seus livros aqui) e une sua excelente bagagem ao universo de ficção científica dos Saifers, sendo uma grata adição ao coletivo de autores de SciFi. “Contagem Regressiva” é uma daquelas histórias que você começa e não larga, pois precisa saber o que vai acontecer antes. Oh wait. Leitura grátis para quem tem o Kindle Unlimited.

“Era apenas, e tão somente, um reparo. Consertaria o que havia de errado no mundo (…). Desviaria aquele bondinho, sim.”

Charlotte Sometimes, Fábio Fernandes

Em Charlotte Sometimes (Ed. Draco), conto de 2013, Fábio Fernandes envereda pelo fantástico e nos arrasta pelo pé a uma jornada onírica pelo cenário gótico/ pós-punk dos anos 80. Na verdade não é sobre o cenário, mas é no cenário.

O conto é inspirado na canção homônima do The Cure, a que traz os versos “Sometimes I’m dreaming, where all the other people dance“. E é sobre isso. Mais ou menos. Sonho por sonho, é mais Sandman do que Robert Smith. Aliás, o Sandman dos quadrinhos É o Robert Smith. Então tá tudo em casa. O que me faz lembrar a diferença entre os deuses e os Perpétuos na mitologia de Sandman. E não tem qualquer relação com essa resenha. Talvez tenha. Bom, apenas leia. Talvez não antes de dormir. É de graça no Kindle Unlimited.

“… os ouvidos, pelos vocais de Robert Smith, porque agora você se lembra que o que sai das carrapetas do DJ não é fado, bolero ou tango, mas o bom e velho britpop dos eighties, para ser específico “Charlotte Sometimes”, a canção do The Cure que sempre invadiu seus ouvidos com uma sensação arrebatadora, mas que agora é perturbadora, incômoda, labiríntica, como se tirasse os seus pés do chão, não de arrebatamento extático, mas como se fosse um ataque de labirintite, um  terremoto dos sentidos, um impacto profundo no ouvido interno, um soco na cara da realidade que quase faz com que seus olhos saltem de tão arregalados …”

Tentei salvar o planeta de um asteroide em um site adulto e outros contos semi-espaciais, Douglas Domingues

Eu me achei transgressor quando cometi um “Sonda no furico” como título de um dos capítulos de IVUC. Sabe de nada, inocente. Tentei salvar o planeta...” é uma coleção de contos semi-espaciais, uma pérola do (novo?) gênero SciFi Biruleibe. Se tivesse uma categoria para isso em sites de apostas, eu cravaria R$ 10 dos meus R$ 500 de bônus que todo o livro nasceu de outra aposta, entre a quarta cerveja quente e a quinta, meio choca, de que seria, sim, possível publicar um livro com pegada scifi e o termo “c# prolapsado” enfiado ali no meio (com trocadilho).

O conto que abre a coleção é uma divertida e absurda aventura em que o protagonista faz exatamente o que o título do livro indica. É bastante gozado (mais trocadilhos). Os demais seguem a mesma linha, com situações bizarras e personagens de ética e decisões questionáveis. Enquanto lia, a sensação era a de que Arthur C. Clarke entrou na máquina teletransportadora de A Mosca e, junto com ele, foram as obras completas de Adão Iturrusgarai, Angeli e Laerte. As histórias são uma versão (semi) Sci-Fi das tirinhas que me faziam assinar a Folha de S. Paulo aqui do Rio de Janeiro. 2001 com Bob Cuspe, Aline, Níquel Náusea e afins.

Quando chegar ao fim, verá que meu nome consta, orgulhoso, da lista de apoiadores do financiamento coletivo que tirou essa obra de algum buraco bastante escuro, confuso e espacial da cabeça de Douglas Domingues. Também sai 0800 no Kindle Unlimited.

“Quiseram me afastar para botar o suplente, que é polido, que não faz piada, mas em quem eu nunca confiaria a missão… Nem fudendo que eu confiaria essa missão a uma pessoa sem senso de humor!”

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  1. A escrita do Douglas e suas decisões editoriais, me encantam muito! Você está certo em dizer que ele não estende os limites da escrita criativa, mas que os manda para a casa do c… opa! Aqui não é um site adulto pra eu achar que estou salvando a Terra!

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