A vida (com androides) como ela é
Robôs, autômatos, androides, criaturas dotadas de inteligência artificial. Não faltam personagens e histórias de ficção científica centradas nessas figuras presentes em nosso imaginário há séculos. As Leis da Robótica, postuladas por Isaac Asimov, estreitaram as ligações entre ficção e realidade. Uma imaginando, a outra lendo a SciFi como profecias sendo realizadas.
Em boa parte das narrativas, a IA se torna autoconsciente, onipotente e, daí, deriva uma batalha avassaladora. De O Exterminador do Futuro a 2001, temos a luta da humanidade contra máquinas que se desviaram do propósito original. Em outras histórias, a batalha mal é travada, estamos subjulgados e nem todos acham isso ruim. Aqui valem desde episódios da Netflix ao nacional Movimento 78, de Flávio Izhaki, sobre o qual já escrevi aqui.
Máquinas como eu: E gente como vocês, de Ian McEwan, traz uma outra abordagem, ainda mais dolorosa. O problema com as inteligências artificiais extremamente elaboradas é que elas ressaltam nossas profundas imperfeições, incoerências e inconsistências. As máquinas “falham” por não conseguirem emular nossa confusa e complexa realidade enquanto seres imperfeitos.
A narrativa se passa em uma realidade alternativa em que Turing sobreviveu à absurda condenação por homossexualismo no pós-guerra, Lennon e JFK não foram assassinados e a Inglaterra perdeu a Guerra das Malvinas. Nesse contexto, a tecnologia floresceu muito precocemente, e temos carros elétricos autônomos e robôs avançadíssimos ainda no século XX.
É um desses robôs que integra um pitoresco e frágil arranjo familiar, trazendo uma série de questões ao longo do processo. A escrita de McEwan, primorosa, nos leva a mergulhos na história e política deste mundo que poderia ter sido, a como Alan Turing teria contribuído de forma impressionante com a evolução de tecnologias como IA e ao impacto de inovações nas vidas e relacionamentos de pessoas comuns.
Comuns e imperfeitas. Os protagonistas, o casal formado por Charlie e Miranda, estão longe de serem heróis infalíveis. Colecionam defeitos, mentiras, segredos e decisões moralmente questionáveis. Estas características saltam aos olhos quando refletidas em Adão, robô ávido por conhecer o mundo. E que, talvez, o superestime. Os robôs de sua geração parecem sofrer ao perceber o quão ilógico e incoerente é a sociedade humana.
Me agrada essa construção de protagonistas com atitudes questionáveis. Tanto que HP e Soraia, os personagens mais importantes de meu livro IVUC – A Iniciativa C’ach’atcha, são falhos e questionáveis às suas maneiras.
Em Máquinas como eu, essas decisões equivocadas e o choque de percepções (sempre centradas no pequeno núcleo familiar, mas que ecoam o turbilhão de conflitos e eventos em escala nacional) movem a narrativa, que busca sempre o íntimo, partindo do macro. A vida como ela é, ou poderia ser, com robôs que criam poesia e se apaixonam.
É uma leitura que vai prender os fãs de ficção científica mas que funciona perfeitamente para quem apenas busca um romance extremamente bem escrito. Estes podem achar as explicações técnicas um tanto quanto enfadonhas, mas nada que uma leitura diagonal dessas páginas não resolva.
Que parada específica a Inglaterra ter perdido a invasão das Malvinas! Só isso já me interessou!
A questão da inteligência artificial emulando a nossa ser um péssimo caminho, pois a nossa inteligência não é um bom modelo, também me interessa bastante!
Parece uma ótima obra pra observar nossas falhas olhando para elas com algum distanciamento!