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A Voyager foi mais longe que você. E daí?

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Roberto Cassano
Sonda Voyager. NASA/JPL

As sondas Voyager são um ano mais novas que eu, mais ou menos. Nesse tempo, editei revistas, escrevi alguns textos, comandei campanhas e projetos para marcas e tive um filho. Elas, por outro lado, visitaram planetas e se tornaram as primeiras terráqueas a deixar o sistema solar, rumo ao imenso vazio interestelar.

Comparar as duas trajetórias não é muito justo e pode ser tão irritante quanto as comparações com os primos que fizeram concurso público, ou fazer aquela busca pelo nome de alguém de enorme sucesso, talento e conquistas para descobrir que a pessoa é mais jovem que você e fez 5453454 vezes mais coisas.

Acontece. E acontece, em geral, pelas órbitas escolhidas. Tem quem faça o estilo “foguete não dá ré” e seja profunda e eternamente apaixonada, fissurada por uma coisa. Por uma única coisa a vida toda. Sabe a bailarina premiada que calçou a primeira sapatilha aos 6 anos e só pensa em ballet desde então? Essas histórias se repetem aos montes, ícones de enorme sucesso. Quem vê close não vê corre, como dizem as redes sociais. Vemos o quão longe aquela trajetória levou a pessoa, mas o que não vemos é tudo aquilo que ficou para trás, todas as coisas que atravessou como um trem-bala. Ou como uma sonda catapultada ao infinito e além.

Podemos chamar essas pessoas de “órbita caule”. Sabe o caule da flor que aprendemos a desenhar quando criança? Um “(” comprido, que normalmente adereçamos com uma ou duas folhas? É a órbita de uma Voyager, de uma primeira bailarina de uma grande companhia de dança. De um Pós-Doutor em um assunto super específico. É uma conquista incrível, louvável e cheia de corre, dores e experiências que ficaram pelas estações em que o trem não parou.

Mas tem as pessoas “pétala”, que são como os modernos foguetes reaproveitáveis, ou como satélites, que não vão muito longe da terra, mas percorrem toda ela. Como o telescópio espacial Hubble, que orbita o planeta a 535 Km de altitude (pouco mais que a Rodovia Presidente Dutra, a BR-116, que tem 402 Km de extensão) mas, mesmo não indo tão longe, nos revelou as imagens mais incríveis já captadas do universo.

Na vida em pétala, no lugar do foguete sem ré temos uma série de “vou lá e já volto”. Cada ida e vinda forma uma pétala, e sempre retornamos para um ponto de partida, como a casa, a profissão, a família, a vontade de recomeçar… A pessoa-pétala não vai tão longe, mas vê mais coisas. Vive diferentes vidas. Tem mais interfaces e conexões.

É melhor? Pior? Não tem isso. São escolhas, e escolher algo é sempre desescolher outros muitos algos. É a vida. A mesma que a Voyager tenta entender lá dos confins do sistema solar, e que muitos tentam entender daqui mesmo, explorando o planeta ou a igualmente vasta mente humana.

Todos temos nossos momentos mesquinhos e invejosos. Nessas horas, quando me pego comparando minha vida com gente-foguete, o que acontece com mais e mais frequência na medida em que a maior parte das pessoas ficam mais jovens do que você, eu recorro à Voyager e penso. “Essa pessoa conseguiu três Oscars, talvez vinte milhões de dólares ou emplacou cinco best-sellers aos 46 anos. Ela trilhou muito bem alguns caminhos, e merece todos os louros, mas não trilhou os meus passos. Só eu andei pelos meus caminhos, só eu pude apreciar a minha viagem. E, longe por longe, a Voyager percorreu distância maior que qualquer um de nós. E tudo bem.” E assim afasto a comparação tacanha da mente e me debruço sobre a pétala da vez.

É como o Neil Gaiman disse uma vez sobre o (natural) desespero de todo aspirante a escritor quando vê os textos brilhantes que ele tece: “Sempre haverá pessoas que são muito melhores fazendo isso ou aquilo – mas só você é você. (…) ninguém escreve Tarantino como o Tarantino (…) ninguém é capaz de escrever uma história de Neil Gaiman melhor que eu” (o resgate desse depoimento foi do Crisdias). E bora traçar nossos caminhos porque esses caules e essas pétalas não vão se desenhar sozinhos pelo espaço.


As comparações são tolas. Fazer concurso ou empreender? Emendar mestrado na faculdade ou mochilar pelo mundo? Ter cinco filhos ou curtir a eterna solteirice? Felizmente, não tem receita de bolo, que fatalmente achataria o mundo como uma harmonização facial de almas. Veja a Voyager, com seu Disco de Ouro carregando amostras do que é a humanidade. Ninguém chegou tão longe quanto ela, e sua bagagem inclui Chuck Berry e desenhos de gente pelada. Qualquer caminho te leva longe, é só seguir por ele. Ou não, você pode preferir voltar ao ponto de partida, sabendo que nem você, nem o ponto, serão os mesmos ao retornar.


Reprodução do jornal O GLOBO de 1976 com a chamada "Viking-2 comprova existência de água em Marte"

A Voyager não é minha única contemporânea espacial. Decolando um ano antes de eu ser lançado pra fora de minha mãe, a Viking-2 descobriu gelo em Marte na semana em que nasci. A notícia foi destaque nos jornais e acabou imortalizada em”Eu Também Vou Reclamar“, de Raul Seixas. Olha a pétala aí: Uma sonda da NASA, um jornal brasileiro, um maluco beleza e, agora, um post de blog provocados pelo mesmo miolo.

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