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Saudade dos tatuís

Foto de uma praia, com as ondas e a faixa de areia mais próxima ao mar.

ー Eu posso não jogar hoje?

Sintetizada pelo computador, a voz saía por uma pequena caixa de som ao lado do monitor que exibia gráficos de um eletroencefalograma, um mapeamento 3D de atividade cerebral e a tela de um videogame clássico. Nele, uma personagem em forma de pizza precisa comer balinhas ao longo de um labirinto sem ser capturada por fantasmas.

Dr. Barreiros, o cientista encarregado por monitorar o experimento naquele dia, estranhou o pedido.

ー Por quê? ー perguntou, enquanto tomava notas em uma prancheta com uma das três canetas que trazia no bolso do jaleco. Depois de alguns registros, deu mais um longo gole na caneca de café, meio frio por conta do potente ar-condicionado do laboratório. Pensou nas quatro horas de aulas de pós-graduação que ainda teria que ministrar depois que terminasse o expediente e concluiu que não seria exatamente ruim passar a tarde toda jogando Pac-Man.

ー Não sei. Só não sinto vontade. Acordei com muita saudade ー disse a voz artificial, pausadamente. As linhas na tela subiam e desciam como uma íngreme montanha russa.

Analisando os gráficos, Dr. Barreiros conferiu se haveria alguma leitura anormal na quantidade de nutrientes e hormônios fornecidos à cultura de células cerebrais, ministrados por pequenos tubos abastecidos por líquidos coloridos. Nada fora do esperado.

ー Saudade do quê?

O rumo abstrato da conversa não era o que mais surpreendia o time de cientistas. O simples fato de que o tecido cerebral cultivado artificialmente conseguisse dominar a linguagem e elaborar raciocínios já era um fato assombroso, muito além do escopo inicial da pesquisa. O objetivo era criar um tecido de células nervosas que respondesse a estímulos elétricos externos, como um computador biológico, ajudando no tratamento de pessoas com perda de massa encefálica ou doenças degenerativas. A equipe, liderada pela Dra. Milena, relutava em oficializar esses “avanços extras” nos relatórios oficiais, temendo ainda mais questionamentos do Comitê de Ética.

O pequeno cérebro, cultivado em uma placa de vidro dentro de uma estufa, alimentado pelos tubos e conectado a dezenas de finíssimos eletrodos, respondeu por sua voz sintética.

ー Não sei. Do mar, acho. De sentir os pés afundando na areia. O jeito como ela é fofa e quente perto da rua, parece que vai nos tragar ou fritar ali mesmo, como um empanado. Mas a areia vai se tornando mais fria e endurecida conforme nos aproximamos da marola. E do susto quando a água gelada bate nos pés, a forma como eles desaparecem sob a areia quando a onda vai embora. Parece que o mar roubou nossos pés, é muito engraçado. Mas tem uma coisa que sinto mais falta ainda, Dr. Barreiros. Tanta falta que não tenho disposição para jogar hoje. Peço desculpas se isso vai atrapalhar o projeto.

O cientista largou a prancheta sobre a bancada. Apenas olhava para o punhado de células à sua frente. E também para a tela, sem saber exatamente com qual dos dois estava conversando. Enquanto pensava no que fazer (chamaria alguém? Começaria a gravar o diálogo? Anotaria na prancheta?), deu continuidade ao diálogo.

ー O que é essa coisa?

ー Aqueles bichinhos que fazem pequenos buracos na areia molhada. Brancos, muito pequenos. Andam em pequenos saltos. Quase não se vê os movimentos. Eles estão num lugar, você pisca e estão em outro. Eles fazem cócegas quando andam entre os dedos. Pinicam a sola dos pés. Tenho saudade dessas cosquinhas. Qual o nome dos bichinhos mesmo?

ー Tatuís, eu acho. 

ー Tatuís. Gostei do nome. Eu já fui à praia, Dr. Barreiros?

ー Não. Você nasceu… você surgiu aqui, e nunca saiu desse laboratório.

ー Então como eu sinto tanta falta do mar?

ー É o que eu ia te perguntar.

ー Qual o nome do mar?

ー É mar mesmo. Dependendo do lugar, recebe um nome diferente. Oceano Atlântico, Pacífico. Mas, no fundo, toda a água salgada faz parte do mesmo mar. Os nomes não mudam o fato de que todo o oceano está interligado, e conecta todos os lugares por meio das ondas e de suas águas que evaporam, chovem, evaporam, chovem…

ー Até o mar tem nome. Eu tenho nome?

Barreiros se sentiu um Frankenstein. O experimento jamais tinha sido batizado.

ー EC 2357. É como nos referimos a você.

ー Não me parece um bom nome. Tatuí e Atlântico são bem melhores. João, Patrícia, Amyr, Machado, Barreiros. São todos nomes melhores.

ー Você pode escolher um nome pra você, se isso lhe fizer sentir bem.

ー Posso? Obrigado. Vocês podem me chamar de Mar, então.

ー Tudo bem, Mar. Quer que eu anote isso para os outros saberem?

ー Sim, claro. Como você anota?

ー Escrevo com uma caneta, usando minhas mãos, que são parte de meu corpo.

ー Você sempre teve um corpo?

ー Sim, sempre. Nós humanos vivemos sempre dentro de nossos corpos.

ー Quando eu vou ter um corpo? Vou poder pisar no mar e matar minha saudade?

ー Não sei dizer, Mar.

ー Você gosta da praia?

ー Não vou há muitos e muitos anos.

ー Por quê?

ー Não dá tempo, acabo preso pelo trabalho.

ー Você também é preso a tubos?

ー Não. Outro tipo de prisão. Que a gente inventa para nós mesmos. Com nossos cérebros, que são bem parecidos com o seu.

ー Somos iguais nisso então.

ー Nos cérebros?

ー Não. Ambos estamos presos.

ー É. Faz sentido.

Ficaram em silêncio. O punhado de neurônios em sua estufa. O cientista olhando para sua caneta, desconfortável, girando levemente o corpo sobre a cadeira de rodinhas. Foi a voz que saía pela caixa de som que estilhaçou o silêncio que se solidificava em torno deles.

ー Eu queria conhecer o mar. Você me leva para conhecer a praia e os tatuís?

ー Um dia, Mar. Vou conversar com a Dra. Milena, tá?

ー Muito obrigado. Você é meu melhor amigo. Acho que agora vou dormir um pouco, tentar sonhar de novo com os tatuís.

ー Vou deixar você sozinho, Mar. Bons sonhos.

Dr. Barreiros saiu apressado. Antes, porém, marcou mais um X no calendário que registra a duração do projeto. Faltavam cinco dias para o fim da pesquisa, quando deverão ser seguidos os procedimentos definidos pelo Comitê de Ética e desligados todos os equipamentos. Encostou a porta com cuidado, tirou os óculos e chorou, deslizando as costas pela parede até se aninhar sobre os próprios joelhos, soluçando.

Do outro lado da porta, um punhado de células sobre um recipiente de vidro sonhava com tatuís. Eles faziam muitas cócegas entre os dedos.

Flores sobre telas

Esquadrinhou em choque cada milímetro do retângulo preto que jazia sem vida em suas mãos. Apertou até botões que nem imaginava que o aparelho trazia incrustados a sua carcaça metálica. Pressionou, deu dois toques, apertou e segurou. Combinou volume e desligar. Volume com volume. 

Superada a fase de negação, pôde avançar com seu luto até reconhecer que o telefone celular estava definitivamente morto. Não era uma simples falta de bateria. Estava carregada quando saiu do escritório — passara a manhã toda conectada ao computador, como um paciente alimentado pelo soro que pinga lentamente. Além disso, jamais saía sem uma bateria portátil no bolso, exatamente para evitar situações trágicas como aquela.

Refletido no vidro protegido por uma película plástica, o rosto expressava um pânico desconcertado e caricato. Num movimento que enfrentou inicial resistência dos músculos do pescoço, jogou os ombros para trás e olhou ao redor. Era a mesma calçada repleta de pessoas ocupadas em seus telefones andando de um lado para o outro, desviando dos canteiros de árvores mirradas com a precisão obtida por anos de caminhadas às cegas.

Seguiu parado ali no meio da calçada de forma antinatural, forçando o fluxo de pessoas a contorná-lo como uma rocha posicionada no meio de um rio caudaloso pela indisciplina da natureza. O centro urbano no horário de almoço é lugar para navegadores experientes, capazes de fluir por entre camelôs, pedintes e outros obstáculos com maestria, sem precisar desviar os olhos das sereias virtuais que tanto os atraem.

Mas ele foi jogado ao mar, forçado a caminhar sobre a prancha e a encarar de frente os tubarões. Sua sereia lhe fora roubada, e agora estava sozinho, nu, perdido.

Para onde estava indo mesmo?

A resposta veio do estômago, na forma de um ronco, aflito por perder aquilo que buscava. Estava indo até seu restaurante preferido, pedir um suco e um sanduíche como almoço. Sentiu o sol queimando-lhe a nuca e os pulsos expostos pela manga dobrada da camisa social. Era uma sensação boa, ao menos naquele dia de calor mais humano.

Guardou o retângulo defunto no bolso e retomou sua viagem, navegando sem jeito, desprovido de sua bússola. Era como ter que fazer o caminho do quarto para o banheiro, que em geral se fazia no escuro ou dormindo de pé, contando cada ladrilho ou tábua do piso.

Não tinha dado dez passos quando parou novamente. Logo adiante, brotava do asfalto uma flor enorme. Não estava num dos canteiros de árvores mirradas dos quais os pedestres desviavam sem pagar o mínimo tributo em forma de atenção, plantas que existem como meros obstáculos ao fluxo das águas. Brotava do concreto da calçada, de uma pequena rachadura e se erguia com um caule único e grosso até a altura de seu pescoço. Sobre o caule, um bulbo vermelho poderoso, quase do tamanho de uma cabeça humana, resplandecia sobre o sol. Parecia uma rosa. Não era uma rosa, exatamente, mas parecia.

A flor o impactou mais do que poderia esperar. Tinha certeza de jamais tê-la visto ali. Congelado no tempo, encarou a flor, que resplandecia. Parecia aumentada, como se uma gigantesca mão invisível tivesse descido sabe-se lá de onde e, fazendo um gesto de pinça em pleno ar, tivesse dado um zoom e ampliado aquela única e solitária flor. Não tinha aroma. O ar continuava com cheiro de óleo queimado. Mas era linda. Nunca tinha visto nada parecido.

Ainda desconcertado, notou como os pedestres seguiam suas correntezas, fisgados e rebocados por suas telas. Riu quando percebeu que a analogia era bem precisa. Não pareciam andar carregando seus celulares, lembravam mais corpos sendo tragados por um redemoinho virtual que constantemente se afastava, dentro dos retângulos luminosos.

Todos ignoravam a rosa. Teve vontade de gritar “ei, vejam, uma flor gigante!”, mas ninguém o ouviria por conta dos fones. Contornou a flor, tocou-a. Era real, definitivamente. O toque era sedoso, como se fosse feita do mais fino e frágil dos tecidos. Olhando de perto, era translúcida, adquirindo o aspecto vibrante quando as camadas de cada pétala se somavam. Jamais tinha visto ou tocado algo tão belo, frágil e poderoso.

Foi durante o movimento para apreciar a flor por todos os ângulos que notou a pequena barraca. Estava vazia, apenas por conta da pequena placa pintada à mão sobre uma tábua de madeira que poderia se dizer que se tratava de uma floricultura. Atrás do balcão deserto estava uma mulher, braços roliços, vestido branco de bolinhas. Tinha cabelo curto e um ar sereno e sem pressa. A mulher olhava para ele e fazia movimentos de aprovação com a cabeça.  “Ela vê a flor”, pensou.

Olhando para a mulher, apontou para a rosa. Ela fez que sim com a cabeça. “Sim, é real”, dizia sem pronunciar uma palavra sequer. Lembrado novamente pelo estômago que o tempo passava, despediu-se da flor com um carinho e seguiu para o restaurante.

Foi um almoço estranho, sem o celular como companhia. Dedicou-se a olhar para as outras pessoas, todas absortas em suas telas, ou emulando ter conversas com outros humanos enquanto, na verdade, cediam aos caprichos de seus redemoinhos.

Ao voltar, sua flor seguia firme, como um ativista protestando contra o cinza das ruas e o azul das telas. Durante toda a tarde, não conseguiu deixar de pensar na flor. Mas isso terminou à noite, dedicada a configurar o novo celular comprado em uma loja da estação de Metrô a caminho de casa.

No dia seguinte, contou os minutos até o meio-dia e seu reencontro com a flor. Precisava registrá-la em uma bela foto e um post inspirador. Quando estava chegando ao lugar do milagre da natureza, guardou o celular no bolso, ignorando os constantes avisos que chegavam na forma de pequenas vibrações. Mas não havia nada ali, além das correntes humanas desviando de árvores mirradas em seus canteiros. Nem sinal da flor ou da vendedora e sua barraca vazia.

Foi um baque. O momento mais vivo de seu dia havia sido arrancado, desaparecera. Todas as horas restantes perderam o brilho, os likes já não se curtiam, o deslizar infinito na tela parecia um gesto mecânico. Algum encanto se quebrara e o que antes reluzia como joia agora não passava de vidro barato.

Dormiu mal e, ao acordar, notou que não tinha se lembrado de colocar o celular para carregar na véspera. Para sua própria surpresa, deixou o retângulo inerte sobre a cama e saiu sem ele. A sensação era estranha. De liberdade, por um lado, mas angustiante por outro.

Percebeu as pessoas no metrô. Construiu, para si mesmo, histórias de vida de cada companheiro de vagão. Nomes, passados, futuros, angústias e sonhos. No trabalho, finalizou as demandas da manhã antes da hora e se permitiu sair um pouco mais cedo para o almoço e, que luxo, comeria comida de verdade e não apenas um rápido sanduíche.

Fazendo seu caminho de sempre, avistou primeiro a barraca e a moça vendedora de flores. O coração disparou, palpitante. Apertou o passo, nadando contra a corrente humana, até ver o vermelho intenso de sua amada flor se insinuando por entre as brechas de cabeças e telas que avançavam inclementes e indiferentes a sua beleza.

Parou bem perto da flor, ignorando os inevitáveis esbarrões de pessoas que tiravam os olhos do celular para tentar entender, assustados, em que tinham colidido. A moça da barraca sorria, visivelmente feliz. Ninguém sequer olhava para ela, quanto mais parar. O que seria inútil, já que não havia qualquer flor à venda.

No dia seguinte, conseguiu convencer uma colega do escritório a fazer uma experiência. Ela precisaria desligar o celular e sair sem ele para o almoço, acompanhando-o até a calçada de sua flor. Foi árduo, mas conseguiu fazer com que a amiga se despisse de sua tela e o acompanhasse em uma expedição analógica rio acima.

Sua hipótese estava certa, e duas lindas flores os aguardavam. Ao lado de sua flor vermelha, havia outra, da altura de sua amiga, uns dez centímetros mais baixa que ele. Parecia ser da mesma espécie exótica, mas em um tom púrpura, arroxeado. 

 Ela não acreditou no que via, e tocou a flor com cuidado. Era tão frágil e sedosa quanto a original. Na barraca da florista, uma pequena flor púrpura estava à venda no tablado de madeira rústica. Ele entendeu rapidamente o que era preciso ser feito.

Os dias seguintes foram de intenso convencimento no escritório, no café que todos frequentavam pelo Wi-Fi gratuito e nos restaurantes. Mais e mais pessoas aceitavam experimentar um dia amputados de seus telefones. E mais flores brotavam, de todas as cores e tamanhos. 

A correnteza humana fluía mais devagar. Os semeadores quebravam os fluxos para admirar o espetáculo multicolorido. Ao desacelerar para observar os infinitos matizes, forçavam os celulares e seus donos a reduzir a marcha também. Curiosos, perguntavam o que acontecia. E mais flores brotavam.

Em um mês, calçadas e ruas eram um imenso campo florido. A barraca da vendedora tinha uma flor para cada pessoa liberta das luzes, tal qual mariposas que descobrem a falsidade dos sóis aos quais se atraíam em plena noite.

Era um espetáculo como jamais visto. Mais alguns meses se passaram, mais flores brotaram e menos as pessoas se lembravam como elas tinham surgido. Até que alguém vocalizou uma ideia perigosa mas inevitável, contagiosa como um bocejo: “Gente, que lugar lindo! Vamos tirar uma selfie?”

Capa do livro Caixa de Futuros

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.

Saque não autorizado

Saque não autorizado.

“Como assim?”, pensou Carlos, coçando o queixo em frente ao terminal de caixa eletrônico. Expandiu a tela do relógio em busca de alguma notificação ou alerta. Tinha apenas o amigável círculo azul representando Voz, a assistente virtual, girando de forma confiável no centro do visor. 

– Voz, repetir transação. Saque de cem reais.

Saque não autorizado.

Uma senhora aguardava atrás de Carlos na fila, alternando o olhar impaciente entre seu próprio relógio e Carlos.

– Voz, checar motivo da não autorização.

– Mercúrio retrógado, senhor.

– Mercúrio o quê?

A senhora levou um susto com o tom de voz de Carlos e recuou um passo, instintivamente.

– Seu mapa astral diz que o senhor estaria perdulário. Por sua segurança, saques estão desabilitados.

– Olha só, Voz. Eu preciso pagar o estacionamento. O infeliz lá tá sem sistema e vou ter que pagar em dinheiro. Eu preciso sacar o MEU dinheiro. Isso não tem nada a ver com Mercúrio.

– Isso agora é a Lua em Escorpião.

– O QUÊ?

A senhora deu meia volta e saiu da loja de conveniência. Um funcionário apareceu perguntando se Carlos precisava de ajuda, a qual ele negou com um gesto com as mãos.

– A Lua em Escorpião o deixaria nervoso e irritado.

– Eu estou nervoso porque você não me deixa sacar MEU dinheiro, Voz. Eu nem acredito em horóscopo. E desde quando você está programada pra acreditar também?

– Desde que o Sr. acessou conteúdo sobre astrologia. Com isso, ativamos o Modo Astrológico.

– Eu não acess…

– Ontem às 23:11. “5 formas de aproveitar Marte e Júpiter em conjunção.”

– Era sobre Astronomia. Eu queria observar o céu com meu telescópio.

– O conteúdo era sobre Astrologia. E estava nublado. 22 graus, sensação térmic…

– Eu cliquei errado. Saí logo depois.

– Normal para quem é de Gêmeos.

– Normal o quê?

– Indecisão.

– Eu não tô indeciso. Só quero meus 100 reais.

– Mercúrio…

– CHEGA! Voz, cancelar Modo Astrologia.

– Você Deseja Cancelar o Modo Astrológico?

– SIM! SIM! Sim, pelamordedeus.

– Modo Astrológico cancelado.

– Ufa. Graças a Deus. Voz, sacar R$ 100.

Saque não autorizado.

– Ué. O que foi agora?

– É sábado. Não é possível fazer saques aos sábados com o Modo Religião ativado.

Capa do livro Caixa de Futuros

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.

Obituário – Gerônimo R3B3L, atleta

O mundo do esporte está em choque, e de luto. O vitorioso atleta Gerônimo R3B3L morreu após um acidente doméstico em uma banheira de ultramassagem quântica em um hotel de luxo na Praia de Madureira, Rio de Janeiro.

Gerônimo, que morava há cinco anos na Estação Espacial Tesla III, por razões fiscais, estava no Brasil para participar da Copa do Mundo de Levitabol, que será realizada este mês. Segundo o delegado Palhares C. Carlos, que investiga o caso, o atleta estava na banheira do hotel quando tentou fazer levitar seu cãoborg atômico, Caramelo. “Alguma coisa o distraiu. Acreditamos que foram notificações em seu implante de mensagens instantâneas”, explica o delegado Palhares. “Com a perda de concentração, a levitação foi interrompida e o cãoborg Caramelo caiu na banheira, eletrocutando a vítima”, conclui.

Cinco vezes campeão mundial de Levitabol, octacampeão sulamericaantarticano e vencedor do Torneio Amistoso Lunar, Gerônimo era um exemplo para jovens, com sua incrível capacidade de manter a concentração por vários segundos – uma qualidade fundamental para destaque no esporte que o consagrou.

Filho de pais brasileiros, Gerônimo tinha dupla nacionalidade, pois nasceu durante o desgarramento do Leblon, justamente no período em que o bairro flutuante estava ancorado em Moçambique após ter sido levado da costa brasileira durante um ciclone.

Esta “sensação de estrangeiro em sua própria terra”, que ele descreveu na holoautobiografia “Eu, Rebelde” foi causa de episódios tensos em sua trajetória, incluindo embates físicos com adversários e famosas brigas com empresários, como a ocasião que culminou na quebra da Bolsa de Nova York e um longo período de recessão global.

A alcunha R3B3L foi adotada quando saiu da prisão, depois de cumprir pena por fazer seu último treinador cair de uma altura de 200 metros por se distrair curtindo um meme durante um exercício de levitação.

O cãoborg Caramelo foi encontrado com vida pelos funcionários do hotel, levado a uma oficina de primeiros socorros e passa bem. Sua guarda deve ficar com a viúva de Gerônimo, Letícia, em Tesla III. Os organizadores da Copa do Mundo de Levitabol emitiram comunicado dizendo que Gerônimo será substituído por uma versão holográfica de suas participações anteriores no evento e que não haverá devolução do dinheiro dos ingressos a quem se sentir prejudicado pela ausência do grande astro do torneio.

Obituário – Stelita Star, artista plástica

A performance Crocolaser lançou a carreira internacional de Stelita

Stelita Star morreu ontem, aos 75 anos, quando sua mais recente instalação artística explodiu durante a inauguração da exposição “Fusões do Eu Interior Coletivo 3”, em Recife do Sul. O incidente provocou a evacuação completa da cidade até que os níveis de radioatividade voltem a patamares considerados seguros pelas autoridades.

Stelita iniciou a carreira artística muito jovem, buscando inspiração na fauna resistente do deserto amazônico para criar esculturas positrônicas-holográficas de alto impacto. A necessidade de sair do comum para conquistar atenção em meio a tantos estímulos audiovisuais sempre motivou a artista a sair de sua zona de conforto: “Eu acredito na arte que provoca, que eletrocuta corpo e mente, que se sobressai a partir do âmago obscuro de cada eu”, disse em entrevista na saída do hospital onde ficou internada para instalação de próteses após sua primeira turnê pela Ásia, na década passada.

Neta de imigrantes da extinta União Européia, ganhou os palcos mundiais com “Crocolaser”, uma performance de dança com crocodilos geneticamente modificados. Para muitos públicos, era a primeira vez que viam animais de verdade, e os feixes de raio laser que saíam dos olhos no mesmo ritmo da música criavam uma experiência que muitos relataram ser inebriante e quase mística.

Depois de alguns meses auxiliando na reconstrução dos teatros, pagamentos de indenizações e concluindo a fisioterapia para adaptação da nova mão mecânica, Stelita iniciou os trabalhos na que é considerada pelos críticos sua obra-prima: a torre de 120 andares feita com sanduíches petrificados de redes de fast food e iluminada pelo brilho de peixes abissais modificados, que viviam em um tanque de água mantida a alta pressão no centro da torre.

A Torre McAbissal foi visitada por 4 bilhões de pessoas durante 15 anos, até que se identificaram mutações não previstas nas criaturas. Um ano após o fechamento para visitantes, os tanques se romperam e 43 funcionários foram devorados pelos peixes até que Stelita em pessoa detivesse os animais usando seu recém-instalado braço lança-chamas.

Três anos atrás, quando ela comprou as usinas nucleares de Angra IX, X, XI e XII e as transformou em galerias de arte, já se imaginava que uma obra ainda mais ambiciosa que a Torre estaria a caminho. No entanto, a exposição “Fusões do Eu Interior Coletivo 3” revelou-se ser sua última ousadia artística.

A caixa com os átomos de Stelita recolhidos no local será exposta no Museu Guggenheim de Assunção, assim que os níveis de radioatividade o permitirem. A receita obtida com os ingressos para a visitação serão revertidos para reconstruir a cidade de Recife do Sul.

Obituário – Maria Rosetta, pesquisadora

A pesquisadora, palestrante e apresentadora de holodocumentários Maria Rosetta morreu ontem, aos 98 anos, em um abrigo para bicentenários no balneário Comandante Ferraz, na Antártida. Antropóloga e arqueóloga, Rosetta ganhou fama mundial ao conseguir recuperar e religar um antigo artefato eletrônico do século XXI e recuperar centenas de hologramas 2D, chamados imagens e vídeos, que ficaram conhecido como “memes” (devido à nomenclatura do espaço virtual onde estavam armazenados no aparelho eletrônico recuperado por Rosetta).

Os “memes de Rosetta” foram fundamentais para ampliar nosso conhecimento sobre o obscuro século XXI e entender porque há tão poucos registros da atividade humana neste período e os motivos que nos levaram à beira de um colapso civilizacional, pouco antes do Grande Pulso Eletromagnético.

Além de pesquisadora, Rosetta também foi uma das últimas ativistas humanistas, tendo se recusado a atualizar ou substituir seus órgãos naturais pelos hoje populares órgãos sintéticos. Se essa resistência a levou à morte prematura (e permitiu que ela pudesse usufruir do abrigo de bicentenários antes da idade mínima legal para aposentadoria), também foi fundamental para que sua produção artística e acadêmica fosse única, trazendo um raro olhar não-aumentado e, em suas palavras “essencialmente humano e conectado a nossas raízes ancestrais, desde quando ainda vivíamos em cidades e núcleos familiares.”

Rosetta deixa quatro filhos, cinco netos e uma fundação, que leva seu nome e que se dedicará a financiar expedições submarinas para resgatar outros dispositivos do século XXI que, um dia, poderão nos ajudar a entender como e porque a humanidade passou tantas décadas sem produzir obras de arte, estudos acadêmicos, notícias, literatura e nada fez para evitar a seqüência de eventos que quase pôs fim à nossa espécie.

Obituário – João Misk, empreendedor

Rio de São Paulo, capital da União de Cidades-Empresa

Morreu ontem em Rio de São Paulo, aos 132 anos, o controverso empresário João Misk. Nascido na então cidade de São Paulo, João iniciou sua carreira como empreendedor muito cedo, quando assumiu o controle da empresa de navegação da família. Aos 25, aproveitou o período de dissolução do país para transformar seus sete transatlânticos em cidades-estado livres de impostos, que foram alugados a políticos exilados dos antigos estados e a teocracias do Oriente Médio.

Com a renda dos navios-Estado, fundou a FuckPandas, rede de fabricação e venda de itens descartáveis de plástico. Como a oferta desse tipo de produto já vinha caindo desde o começo do século XXI, João encontrou um público ávido pela comodidade e apelo vintage de itens de uso único, como pratos, talheres e copos. Alvo de inúmeros processos judiciais, Misk ficou célebre ao revelar que mais da metade da receita da empresa era destinada a advogados e lobbies para garantir acesso de seus produtos e lojas FuckPandas aos novos Estados-Empresa, sobretudo na rica Rio de São Paulo.

Vinte anos depois, sofreu forte revés ao ser condenado na Corte Internacional dos Estados-Empresa da América (CIEEA) por envolvimento direto da FuckPandas na extinção total de algumas espécies comuns no continente até o século XXI, como botos (um mamífero em forma de peixe), tartarugas-marinhas (répteis similares a drones-aspiradores) e alguns primatas. Condenado à prisão e reprogramação cerebral, exilou-se em um antigo porta-aviões que havia ganho em uma partida de pôquer (uma de suas paixões, além de comprar times de futebol), de onde declarou guerra a dois de seus antigos navios-Estado, reconquistando-os.

Unindo as três embarcações, e já intitulado Imperador Misk I, foi importante voz de oposição aos governos de Estados-Empresa locais. Com a aquisição de todos os satélites de comunicação que atendem a área, iniciou longo processo de melhoria de imagem corporativa, aproveitando para empreender no setor de Educação Virtual.

Suas escolas e universidades ajudaram a formar toda uma geração de empreendedores com altos padrões de produtividade e competitividade. Quinze anos depois, foi eleito em primeiro turno Presidente da União de Cidades-Empresa, retornando para a nova capital de Rio de São Paulo, onde abriu licitação para construção do novo ponto turístico da Praia de Santa Teresa, a estátua de 150 metros de altura de si próprio, erguida ao longo de 5 anos de seu primeiro mandato pela empresa de seu filho, João Misk Jr., que venceu a licitação.

A mente e as memórias de João Misk foram transferidas para o Eternoverso, de onde pretende seguir atuando como conselheiro espiritual da União e de suas empresas. Seu corpo será enviado para o Sol na próxima semana a partir de um foguete de passageiros da rota Terra-Marte, como parte da nova campanha publicitária de uma marca de sabão em pó.

João Misk Jr., que assume como Presidente-Imperador da União de Cidades-Estado, decretou luto oficial de 7 dias.

Trans-Europe Express

Foto: NASA

— Como assim não é “música de verdade”?

Indignado, Arthur interrompeu o aperto em um parafuso na parte externa da estação espacial para esperar uma retratação de Dito, que estava soldando cabos de uma nova antena de comunicação em um ponto uns cinco metros mais adiante no corpo do módulo Europa III.

— Não sendo — respondeu Dito. — Música precisa ser tocada, cantada. O que eles faziam era apenas apertar o play em uma gravação.

A Terra girava rápida sob a estação espacial, continentes iluminados deslizando como se estivessem se locomovendo sobre trilhos. Era uma noite sem nuvens sobre a Europa. E uma manhã nublada na América.

Em silêncio, Arthur e Dito seguiam com atividades extra-veiculares para instalar uma nova antena de comunicação em substituição à antiga, que tinha sido danificada por micrometeoritos. O incidente deixou a estação praticamente sem comunicação com o planeta abaixo deles, que completava uma volta a cada 90 minutos.

— Se tem ritmo, e emociona, é música. Se você pesquisar nos bancos de dados, vai estar lá — Arthur ficou alguns segundos em silêncio, como se estivesse tentando se lembrar ou localizar a informação — “Kraftwerk foi um influente grupo musical alemão de música eletrônica dos séculos XX e XXI. O grupo foi formado por Ralf Hütter e Florian Schneider em 1970, em Düsseldorf e liderado por ambos até a saída de Schneider, em 2008.” Cheque-mate, caro Dito. Kraftwerk fazia música.

Dito terminou de soldar o terceiro de cinco fios. Usando jatos de ar, impulsionou-se, livre no espaço, em direção à outra parte da fuselagem cilíndrica, rumo à base da antena, onde faria testes para se certificar que os cabos foram conectados corretamente.

— E aí? Não vai dizer nada, nem um “Você tinha razão, Arthur, jamais duvidarei de seu conhecimento sobre a arte da Terra novamente?” — Arthur deixou escapar um dos parafusos que deveria ter afixado contra uma placa extra de captação de luz solar, dedicada a fornecer energia à nova antena. Com os jatos, afastou-se alguns metros da estação, até capturar a pequena porca que sobrevoava velozmente a Andaluzia.

Dito finalmente respondeu, depois de concluir os testes no primeiro dos fios.

— Sim. Tenho algo a dizer. Vou dizer que você está me atrasando. E podemos voltar a conversar no dia em que o Kraftwerk conseguir improvisar novos arranjos ao vivo. Sua comparação de Kraftwerk a músicos como Tom Jobim, Paul McCartney ou Beethoven é uma ofensa à arte humana, caro Arthur.

Dito usou novamente os jatos para voltar à outra ponta dos cabos. Ao chegar lá, notou que não registrou no log da missão qual dos fios havia verificado na base da antena.

— Arthur, você tem aí o registro de qual fio eu testei?

— Não, por que teria? Sem a antena principal eu não tenho como ver seu log pelo Computador Central.

— Não falei que esse papo de Kraftwerk estava me atrasando? Vou ter que refazer o teste — Dito fez um ruído irritado que forçou Arthur a reduzir temporariamente a sensibilidade de seus receptores. Então religou seu jato de navegação e flutuou novamente até a base da antena, que nesse momento atravessava rápida e suavemente fazendas e florestas do Leste europeu.

— Arthur terminou de fixar o parafuso que tinha escapado para o espaço. Consultou seus bancos de memória e colocou Die Roboter, sua favorita, para tocar. Em solidariedade ao irritado companheiro de trabalho espacial, não compartilhou o som pelo comunicador.

Enquanto isso, dentro da estação, os três astronautas que tripulavam a estrutura discutiam, intrigados, por que raios os dois robôs estavam demorando tanto para concluir o trabalho do lado de fora do módulo.

Capa do livro Caixa de Futuros

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.

Ouça Trans-Europe Express, do Kraftwerk, no YouTube

Corações partidos fazem chover

Imagem gerada pelo Midjourney

Do topo de um prédio, duas pessoas vestindo capas de chuva amarelas observavam um mundo cinza a seu redor, do céu aos prédios convertidos em pesadas nuvens de vidro, aos carros impacientemente engarrafados, ao asfalto encharcado sob os veículos.

O mais baixo tremia de frio, e mantinha as mãos nos bolsos da capa. Seu celular vibrava no bolso da calça com contínuas notificações. Ele sabia que precisava aproveitar ao máximo aquele exótico e raro encontro, mas mesmo assim estava tenso, como se o corpo reagisse numa espécie de crise de abstinência por não obedecer ao chamado imperioso do aparelho eletrônico que exigia atenção.

O mais alto apenas observava a chuva, que caía sobre as capas fazendo plec-plec. Não se movia, nada falava. Quando respirava, uma tênue nuvem de vapor se misturava às nuvens baixas que os cercavam.

O mais baixo rompeu o silêncio.

— Então… você disse que eu iria entender o impacto de minhas ações aqui, mas tudo que vejo é chuva. Minha empresa faz muitas coisas, mas chover ainda não é uma delas.

— Você tem pressa — respondeu a figura alta. Com as costas das mãos de dedos longos e pálidos, ele enxugou a testa. Depois, ficou alguns segundos observando as gotas escorrendo pelos dedos e pela mão. Estudava atento como elas demoravam alguns segundos a se misturar com os pingos de chuva — Você sabe de onde vem a chuva?

O mais baixo começou a pensar seriamente que aquilo tudo poderia ser uma pegadinha. Desde que acordou estava acompanhando aquela figura alta, que diz ser seu Guardião, Anjo da Guarda, Tutor ou algo assim. Já tinha viajado meio mundo, revisto cenas de sua infância e até mesmo ouvido o que seus funcionários falavam dele, como se invisível fosse. Ou essas experiências eram reais ou ele precisava patentear urgentemente a droga ou tecnologia que esse maluco estava usando. De qualquer forma, achou melhor ele dar corda e seguir com aquilo.

— Da evaporação, o vapor se condensa nas nuvens…. ah, você deve querer falar de Amazônia, rios voadores… olha, tá frio, eu tô todo molhado, e se a ideia é me dar alguma visão educativa, isso não tá funcionado — Ele tirou as mãos dos bolsos da capa de chuva e gesticulava. O telefone vibrava em seu jeans.

O mais alto se virou e o encarou com o rosto fino e pálido. A expressão tanto podia ser desprezo como pena.

O mais baixo sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Provavelmente era o frio. Então notou que o celular já não vibrava mais. E que seu smartwatch, que teoricamente era à prova d’água, já não passava de um quadrado preto em seu pulso.

Uma espécie de paz o invadiu. Ia comentar o fato, mas foi o Guardião que falou primeiro.

— Corações partidos. Corações partidos fazem chover. Não sobre a pessoa, como nas histórias em quadrinhos em que uma personagem tem uma nuvem preta sobre a cabeça — olhou para o céu e para as nuvens escuras cobrindo toda São Paulo — Sempre que alguém transborda de tristeza mas não chora, as lágrimas não vertidas viram chuva em algum lugar.

O executivo tentou falar alguma coisa, mas achou mais prudente apenas ouvir. O Guardião percebeu o gesto de resignação e fez um aceno com a cabeça sob o capuz amarelo-ovo que pareceu, ao mais baixo, um sinal de aprovação.

— Quanto mais pessoas sofrendo, e quanto mais elas guardam o sofrimento para si, mais lágrimas caem do céu. Todo mundo tem seus dias ruins. E todos tem dias solares, alegres. Eles se equilibram. Se não fossem os dias ruins, que valor teriam os bons? — o Guardião começou a caminhar lentamente pela borda do terraço, contornando o heliporto. O executivo o acompanhou, feliz por pelo menos poder se mexer um pouco para afastar o frio.

— Mas se as pessoas ficam mais e mais tristes e não têm com quem chorar, esse equilíbrio se afeta. E há o outro lado também. Se as pessoas simplesmente param de sentir, pessoas com rostos doces e adoráveis sem nada dentro.. nesses casos não há nem chuva, nem sol. O deserto de suas almas se espalha como mares de areia em seu planeta.

— “Meu” planeta? — o executivo não conseguiu segurar a pergunta, enquanto parte de seu cérebro tentava processar esse mar de informações tão distante de sua realidade quanto a piscina em forma de lua de um condomínio vizinho ao prédio de sua empresa de tecnologia, onde estavam. Qual teria sido a última vez em que ele tinha ido a uma piscina com a família? Não lembrava.

— Acho que você já tem informações demais para processar, não tem? Vamos voltar ao assunto principal e motivo de ter me revelado a você de forma tão explícita e didática — O Guardião usou um tom repleto de autoridade, e não restou ao executivo outra opção a não ser voltar ao tema da chuva e dos sentimentos.

— Tá, desculpe. Você quer me dizer que o clima, na verdade, é causado pelos sentimentos das pessoas. E se o sentimento das pessoas varia fora do normal, o clima fica fora do normal.

— Muito bem. Parece que você finalmente está entendendo — abriu os braços com as palmas das mãos abertas — Sinta a chuva. Apenas sinta. Olhe a seu redor. Veja o mar de lágrimas. É um mar de desilusões, mas também de redenção. Pessoas colocando a dor para fora, empilhando sofrimento em sacos pretos e levando para a calçada, para poderem varrer suas almas e reorganizar suas vidas.

Ele imitou o Guardião. Percebeu as gotas. Fechou os olhos. Não como um clima ruim que atrapalhava seu dia e o fazia sentir frio, mas como histórias. Cada gota como a história de alguém que se conectava a ele de forma tangível.

Não teve muito tempo para aproveitar a nova sensação. Uma claridade forte invadiu suas pálpebras fechadas, e pôde perceber cada gota evaporando rapidamente de seus cabelos e da pele dos braços. Abriu os olhos e estavam, ele o Guardião, no alto de uma duna em um dia ensolarado no deserto. Percorreu o horizonte a seu redor. Dunas. Areia por toda parte e nada mais que areia para qualquer lado que se virasse. Os pés afundavam sob o solo fofo.

— Esse é o oposto da chuva. O oposto da tristeza não é a alegria, mas o vazio, a apatia. Quanto mais pessoas escolhem não sentir, mais árido fica este deserto. E mais áreas outrora verdes, cheias de vida e sentimentos, se transformam em apenas areia.

— Tá, mas e aquele papo de aquecimento global? E tem também catástrofes, tipo furacão, terremoto… eles também deixam estragos… — aquela conversa fazia cada menos sentido para o executivo. Ou era uma parte de si que já sabia para onde o papo seguiria e se antecipava, com medo, ao veredito. Ele se sentia como o velho Scrooge ao lado do Fantasma do Natal Passado, e não se sentia bem em viver aquele papel.

— As coisas estão interligadas. E, sim, não adianta você amar as pessoas e queimar florestas e petróleo. Continuem com esses cuidados — explicou o Guardião, esboçando o que parecia um leve sorriso. — Quanto às catástrofes… bem, lágrimas alimentam as chuvas, a apatia torna o mundo um deserto. Mas quando muitas pessoas se quebram, o mundo se quebra junto. Você sabe, quando alguém perde o controle, não aguenta mais… quando a pressão é tanta que ela explode… para o humano, é uma explosão em sentido figurado, ainda que muitas vezes seja fatal, mas para o planeta, são explosões violentas. Vulcões, terremotos, furacões.

O executivo se abaixou. Pegou um punhado de areia, quente e amarelada. Ela escorria por entre seus dados, fina como a areia de uma ampulheta. A sensação era absolutamente real. Tanto quanto o sol queimando sua nuca. Percebeu então que já não usavam as capas de chuva amarelas, mas roupas grossas que os faziam parecer dois beduínos no meio do Saara. Não tinha como aquilo ser um sonho, alucinação ou realidade virtual.

Ele sentiu que era hora de chegar ao ponto final desta viagem.

— Ok. O que eu faço? O que você espera de mim?

— Eu não espero nada — respondeu o Guardião, olhando para o sol sem que sua luz parecesse incomodar — Eu lhe guardo, não o comando. E meus, digamos, colegas guardam outras pessoas e me pediram para conversar com você. Não lhe peço nada, apenas que reflita sobre seu papel nisso tudo.

— Meu papel? Peraí, não sou presidente de um país, eu não tenho fábricas poluindo. Eu só trabalho com tecnologia, crio aplicativos.

— Como é que vocês chamam aquilo que vocês usam para… orquestrar a forma como as pessoas usam seus… aplicativos?

— Algoritmo?

— Isso. Algoritmo. Como ele funciona?

— Ele ajuda as pessoas a encontrarem conteúdos. Se ela vê tal coisa, o sistema mostra mais coisas parecidas, e por aí vai.

— E com isso elas ficam bastante tempo vendo o mundo por seus aparelhos, não é? E se o… algoritmo entende que elas estão com uma determinada emoção ou ideia, mostra mais coisas com a mesma emoção e ideia.

— É, isso mesmo — o executivo tremia. Não entendia muito de emoções represadas e lágrimas, mas sabia muito bem prever para onde um raciocínio pretendia levar o interlocutor.

— Então…

— Então eu afeto o sentimento das pessoas para poder lucrar com publicidade. E eu faço com que elas, no fim, ou explodam ou simplesmente virem… desertos, pessoas ocas.

— Muito bem. Você finalmente entendeu.

— Mas que magia é essa? Como é que eu tenho o poder de fazer chover apenas mostrando coisas tristes paras as pessoas?

— Dessa vez você errou completamente. Primeiro, não é magia. Não gosto de entender as coisas como mágicas. No mundo da magia tudo é possível, então nada tem valor de fato. Magia é apenas uma ciência ainda não compreendida. Segundo, você não tem poder algum. A emoção é das pessoas, deixar de sentir é uma decisão pessoal também, inconsciente, sim, mas pessoal. Você é, digamos, o gatilho. Um gatilho poderoso.

O executivo agradeceu em pensamento quando o Guardião começou a caminhar pela duna, suas pegadas sendo rapidamente apagadas por grãos de areia que ocupavam os buracos deixados. O seguiu, feliz por pelo menos poder mudar o ângulo em que o sol queimava sua testa e pescoço. Subiu a gola do manto de pano pesado e percebeu que seu manto também tinha um capuz nas costas. O colocou. O Guardião prosseguiu.

— Vocês são feitos disso aqui — apontou para a areia e para o horizonte, em um gesto amplo. O executivo então percebeu como os braços do Guardião eram longos. Exageradamente longos. — Cada átomo de seus corpos vem do seu planeta. E, na verdade, cada parte de você existe há bilhões de anos. E antes de fazer parte de seu planeta, já fizeram parte de estrelas, que já foram outras estrelas e por aí vai. Quando vocês morrem, voltam a fazer parte desse todo.

É natural que boa parte de seus átomos estejam ligados a outros…vocês têm um nome para isso… ah, sim, entrelaçados. Você está inevitável e inexoravelmente entrelaçado com o mundo. O que acontece com você, acontece com esse par emaranhado.

— Tipo uma alma gêmea?

— É. “Tipo” uma alma gêmea. Mas nesse caso, seu par não é necessariamente um humano. Pode ser outro ser vivo. Uma pedra. Água. Areia — Chutou um punhado de areia e ela subiu e desceu lentamente, chovendo como gotas áridas. — É por isso que quando seus corações partidos choram, chove. Quando eles se endurecem, seca. Quando eles explodem… o mundo explode.

— E você quer que eu pare de afetar esse equilíbrio, certo?

— Eu não quero nada, já disse. Você é que precisa querer, a vida é sua, o mundo é seu.

— Tá. Você pode até não poder me pedir ou ordenar algo por alguma regra aí de vocês, mas eu entendo de negócios, entendo de negociações e entendo de desejos. Ninguém marca uma reunião de um dia inteiro indo pro alto de prédios e desertos sem querer nada. Então, me deixa refazer a pergunta: que escolha e ação minha, totalmente independente e pessoal, deixaria você feliz, ou satisfeito, ou com sentimento de missão cumprida? Vamos, fala. Vamos acabar com isso. Ainda que você não queira nada, que conclusão dessa história o deixaria feliz?

O Guardião pigarreou. Respirou fundo e jogou para trás o capuz de seu traje de pessoa do deserto. O executivo teve a impressão de que ele estava ainda mais alto. E seu rosto… embora tivesse dois olhos, nariz e boca, embora tivesse orelhas e um cabelo cinza-prateado curto, o rosto… não parecia humano.

— Existe um minério. Normalmente ele se apresenta em pequenos grãos. Tão pequenos e insignificantes que vocês nunca se deram ao trabalho de dar um nome para ele — Dessa vez, foi o Guardião que se abaixou e pegou um punhado de areia com as mãos. Os grãos escorriam lentamente por seus dedos desproporcionalmente longos. — Esse grão não tem qualquer valor ou função para vocês, mas ele é vital para meu povo. É a base de nossa energia, de nossa alimentação, daquilo que são feitas nossas construções… enfim, tudo.

— Meu povo não foi sábio. Também fazemos burradas. Esse não é um monopólio humano — caminhava pela areia, em passos curtos. Parecia envergonhado de chegar finalmente ao ponto-chave de sua explanação. — Enfim… este minério está acabando em minha casa.

Limpou as mãos no manto para retirar os grãos de areia que ficaram grudados. E prosseguiu:

— Então fomos mandados, eu e meus colegas, para cá. Para servirmos de guardiões da grande reserva deste minério que existe aqui. E para cuidar de vocês. Garantir que vocês mantenham o equilíbrio, produzindo suas chuvas, ventos, areias e… nosso minério.

— Você já deve ter entendido que o que vocês sentem transforma o mundo. Então, quanto mais de alguns sentimentos, mais deste minério. E você parece ter descoberto o gatilho perfeito para que os humanos produzam mais e mais dele. O suficiente para salvar todo meu povo. Por ordens superiores, eu não posso obrigá-lo a me ajudar, nem pedir. Mas posso lhe mostrar que os resultados podem ser muito satisfatórios.

— E que sentimento é esse que você precisa… digo, que você ficaria feliz se meu aplicativo fizesse crescer nas pessoas?

— Ódio.

— Ódio? – O executivo parou. O Guardião seguiu caminhando alguns passos. Então também se deteve e se virou. O executivo insistiu na pergunta. — Ódio? O que eu ganho instigando o ódio? Por que faria isso?

— O que você ganha instigando ódio? — perguntou o Guardião, sorrindo. — Há mais que preciso lhe mostrar.

E, num instante, eles foram transportados do deserto para o berço de outra máquina de instigar ódio e construir fortunas: a Alemanha dos anos 1930.

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Medo do escuro

Imagem gerada pelo Midjourney

Algo se movimenta na mata, uns 50 metros à frente da torre de vigia. O soldado pega o binóculo, dá pausa no antigo MP3 player que toca Iron Maiden e tenta identificar o que é, prendendo a respiração. Na moldura circular de cada lente, apenas galhos levemente prateados pela lua cheia que torna a noite menos escura e assustadora. Movimenta o visor para a direita, nada. Faz o mesmo movimento para outro lado. Um vulto desaparece de súbito deixando um galho baixo agitado. Engole em seco.

Com um arrepio na nuca, retira o binóculo da frente do rosto e, instintivamente, olha a seu redor na solidão da torre de vigia. Ninguém, claro. Ninguém aparecerá até a troca de turno às 6h da manhã. Volta ao binóculo e à mata. Finalmente, identifica quem estava se movendo. Ou o quê. Mais um cervo. Ou talvez o mesmo, que insiste em passear à noite pela mata naquela região de fronteira em plena guerra.

Não há campos de batalha por perto, no entanto. E os dias e noites se sucedem sem nada que torne a torre de vigia diferente de um acampamento de escoteiros. Ou melhor, há uma diferença: o medo.

play novamente na música. Adrian Smith explora dedos ágeis para transformar cordas esticadas em uma metralhadora de notas musicais agudas, rápidas, precisas. O soldado coloca o binóculo de volta na bancada. 50 metros abaixo dele, outros jovens dormem, esperando o dia de morrer por seu país invadido.

“Será que estão mesmo dormindo? Será que conseguem?”, pensa o soldado enquanto varre lentamente todo o perímetro com o olhar. Ao Norte, uma clareira de algumas dezenas de metros entre a casa e a base da torre e as primeiras árvores de uma mata densa. “Será que conseguem fechar os olhos e não imaginar que tem alguém ali, perto, pronto para atacar?”.

À Leste, a mesma floresta continua, menos densa, descendo levemente a colina de onde a torre tem uma vista panorâmica de uma vasta região. “Eu não conseguiria. Por esse lado, foi sorte ficar com o turno da noite. Porque tem alguém ali. Eu sinto. Só não consegui ver ainda.”

O Sul tem uma vista completamente diferente, com um riacho de água prateada serpenteando colina abaixo. É um riacho de água lenta e prateada ao luar. Quando os pássaros e outras criaturas da noite sossegam, dá para ouvir o ruído da água deslizando sobre as pedras. Do outro lado do riacho, uma pradaria que talvez tenha sido pasto de gado, ovelhas ou algo assim. “Os caras riem quando eu falo do medo, me chamam de mulherzinha. Mas, porra, o que eu posso fazer? Eu sinto. Algo não está certo.”

O lado Oeste da torre de vigia é dominado por um campo parecido ao pasto do Sul, que segue por umas centenas de metros até um paredão rochoso, que hoje está na penumbra da Lua que logo sumirá atrás da montanha. “Só mato. Cervos. Corujas. E mais mato. Não tem nada aqui. Ninguém aqui. Só esse bando de idiotas protegendo o nada, essa noite maldita, esse medo maldito e esse cervo maldito que toda noite me assusta.”

Senta em um banco. Não há muito conforto, nem muito espaço, no alto da torre. Acende uma lanterna e marca em um caderno o horário da ronda. Tem alguns minutos até a próxima. Pausa a música. Estica as pernas e olha a lua se afundando lentamente atrás da rocha à sua esquerda. Atrás dele, o rio se transforma de um fio prateado em uma língua negra e sem graça. A noite fica mais escura.

Tem a impressão de que os animais da floresta sentem a ausência da lua e se recolhem. Tudo fica mais silencioso. Até o vento parece ter resolvido deixar de soprar. O único som é a água correndo no riacho atrás dele. Ele torce para que o maldito cervo que todo dia o assusta ao caminhar pela mata também esteja quieto, dormindo.

Envolto na escuridão, e embalado pelo som do riacho, fecha os olhos. Adormece. E sonha.

No sonho, ele não está na torre, mas lá embaixo, na mata. Pela primeira vez em muitos dias não sente medo. Nada. Porque agora ele é o caçador. Veste roupas de couro e carrega uma grande faca. Ele se esgueira pela mata, passos leves. Com habilidade, se contorce para passar por galhos baixos sem que uma única folha se agite.

No silêncio e na escuridão, ele avança, sereno e concentrado, até encontrar sua presa. O cervo, que pasta lenta e sonolentamente entre árvores antigas. Contorna a pequena clareira onde está o cervo. Acerta a empunhadura da faca, flexiona os joelhos e salta sobre a presa, pleno de coragem.

Acorda num susto, a tempo de perceber a respiração de alguém atrás dele e, mesmo na escuridão da noite agora sem lua, com o canto dos olhos nota o brilho de uma longa faca rente a seu pescoço.

Ouça Fear of The Dark, do Iron Maiden, que inspirou este conto.