O ronco
O colchão conhecia bem o casal, a pressão exata do corpo de cada um, ainda que fosse preciso considerar uns quilos a mais adquiridos recentemente. Ao contrário de Marta, nem o colchão, nem José, nem as prateleiras repletas de livros científicos marcados e anotados à exaustão, nem a maquete de um navio porta-contêineres, presente do filho, se queixavam do peso adicional que o tempo deixa de pedágio ao passar pela gente.
Marta e José viviam a fase serena da vida. Longas décadas dividindo o colchão, os filhos crescidos e encaminhados. A mais velha seguiu a paixão da mãe pelas ciências exatas e faz doutorado no Exterior. O caçula, mais interessado em negócios e tecnologias, antecipou a compra de seu próprio colchão de casal depois que a esposa, então namorada, engravidou. Hoje empreende, como pai, guru digital e marido.
Dividiam as tarefas, como manda o manual do bom casal. Cabia a José o asseio da casa, visto que Marta ainda dedicava longas horas a suas turmas de pós-graduação e trabalhos no laboratório da universidade. “Ela pensa diferente”, diziam amigos e adversários invejosos. José tentava remontar o tempo, de súbito transformado em um quebra-cabeça cujas peças se espalharam pelo chão. Não era fácil reinventar a rotina, não depois de tantos anos de trabalho no porto. Começou estivador, depois operou os enormes e complexos guindastes, até a aposentadoria como coordenador. Buscava encontrar formas de ocupar seus dias. Cada pessoa responde à passagem do tempo à sua maneira. Ele queria se redescobrir útil. Marta, ainda indispensável na Academia e, aos olhos de José, linda como sempre fora, há tempos vinha falando em mudar algo no próprio corpo.
Em seu trabalho no porto, José conheceu gente de tudo quanto é lugar, idiomas e sotaques, embarcando e desembarcando nos enormes navios. Foi entre embarcações, gruas e contêineres que aprendeu inglês, espanhol, chinês e até um pouco de filipino. Com as conversas e com as revistas que recebia dos visitantes recorrentes. E foi essa convivência com histórias em múltiplos idiomas que o fez perceber algo curioso no ronco de Marta.
Marta roncava. E muito. Não tinha culpa, a coitada. Uma rinite alérgica que a perseguia desde a infância, um desvio de septo e uma carga de trabalho que a fazia chegar exausta em casa. Jantavam, dividiam a lavagem da louça, debatiam entre si as manchetes do telejornal e dormiam. Ou melhor, Marta Dormia. José desenvolveu, ao longo de décadas, uma técnica de ir repondo em cochilos ao longo do dia o sono perdido nas noites em que o ronco atacava. Um ronco alto, irregular, que evocava monstros marinhos e trazia notas de engasgo, de tosse, de uma voz canalizada do além, um arrastar de móveis pesados, a freada brusca de um caminhão.
Numa dessas noites, enquanto recontava, à luz da lua crescente, os pontos do teto que pediam um retoque na tinta — tarefa pro caçula; ele já não se arriscaria a subir na escada — imaginou ter “entendido” o ronco de Marta. Logo pensou que ela falava dormindo, então prestou atenção. Não falava.
Ele tampouco compreendia o que o ronco dizia. Mas tinha certeza de que havia um ritmo, uma sequência, um punhado de sons mais comuns que outros. Pausas estratégicas. O ronco de Marta dizia algo, em uma língua até então desconhecida.
Passou a prestar atenção, noite após noite, nas frases que o ronco provocava. Sequências e mais sequências de monstros marinhos, tosses, vozes do além, rugidos selvagens, engasgos, mais tosses, arrastar de móveis, freadas de caminhão, bexigas de aniversário esvaziando e silvos uivantes. Sem qualquer margem para dúvida, o ronco dizia coisas. E José havia encontrado um novo propósito. Seria seu, secreto. Não desejava ser chamado de louco nem gostaria que Marta, tardia e infelizmente, desse fim ao ronco de décadas, que finalmente viera lhe acordar para uma nova ocupação. Durante os finais de semana ou nos jantares, falavam amenidades, debatiam as notícias, ela voltava ao velho assunto de puxar um peito aqui, tirar uma gordura ali. Ele dizia que a esposa seguia linda e beliscava as gordurinhas.
Depois de algumas semanas de roncos, decifrou parte do código. Já conseguia extrair significado da sequência de sons. Veio tudo em sua mente que, de certo, passava as horas de cochilos diurnos confrontando os roncos com suas lembranças de inglês, chinês, espanhol e filipino.
A primeira descoberta, que o deixou um tanto quanto frustrado, é que o ronco não tentava falar com ele nem fazer contato. Era mais como uma estação de rádio em que sintonizamos, pegando o locutor dizendo algo pela metade. Como percebeu isso? Fácil, não havia, na sonoridade dos roncos, nada que se assemelhasse a uma mensagem de uma pessoa para outra, como vocativos, saudações, despedidas ao final. Também percebeu que não era uma possessão demoníaca nem algo do gênero. Essa conclusão veio fácil. A Mente de Marta era analítica demais para dar espaço a esse tipo de criatura imaginária.
Eliminando hipóteses, José ponderou que a frequência cerebral que Marta produzia ao dormir profundamente, alfa, delta, uma dessas, devia sintonizar a comunicação distante. Ele já entendia o suficiente das línguas terrestres para perceber que aqueles sons captados por Marta tal qual uma antena boquiaberta eram trechos de uma comunicação alienígena, que se propagava pelo universo justamente usando a frequência, única e diferenciada, do cérebro da esposa.
Outra constatação foi a que uma coisa era rolar na cama sem conseguir dormir, olhando para as falhas na pintura do teto. Outra, bastante diferente, era virar a noite prestando atenção em roncos, em todos os graves e agudos, pausas e resmungos, engasgos e silvos. Isso ficou claro quando se flagrou, tomado pelo torpor do sono, tentando esquentar a janta do casal no congelador. Fez, então, dois investimentos que pagariam bons dividendos: um protetor auricular e um gravador de áudio.
Dormia bem durante a noite e, às tardes, depois de arrumar a casa e adiantar a comida, estudava com calma e afinco as gravações na garagem, onde tinha uma organizada oficina caseira. Fez grandes avanços comparando transmissões de noites diferentes. Identificou temas das mensagens alienígenas. Algumas falavam sobre os esportes e a culinária locais — seja onde for o tal local. Outras, compartilhavam novidades importantes sobre a matéria escura, o agitado conteúdo dos buracos negros, aplicações e detalhes sobre antimatéria e meios de propulsão que permitiram cruzar a galáxia num piscar de olhos. Anotava tudo à caneta, noite após noite, ronco após ronco, caderno após caderno.
Foi quando chegou o verão, o polem da primavera já virara fruto e Marta melhorou da rinite. Dormia como um anjo, prejudicando toda a missão de José de levar a humanidade a novo patamar científico. Em desespero, o marido tomou iniciativas compatíveis com seu estado de espírito. Num jantar, colocou calmante no suco de maracujá de Marta. Tudo que conseguiu foi fazê-la perder o trabalho na manhã seguinte. Só pôde retomar os trabalhos quando foi diligente em adotar certa displicência no asseio da alcova do casal. A fina camada de poeira entupiu Marta, que demorou a dormir pesquisando no celular sobre lipoaspiração. Mas dormiu, e roncou.
Assim José, sem falar para ninguém, cursou a graduação, à distância, e começou o doutorado. Sua tese traria contribuições cruciais para o futuro da humanidade, tudo psicografado do ronco de Marta. Ainda mantinha seus passos em segredo. Apenas o orientador, na universidade, sabia de seus avanços e não continha os risos nervosos quando olhava os cálculos e premissas e percebia que, sim, sim, é claro, como ninguém tinha pensado nisso antes!?
Ao tomar notas das mensagens captadas nos roncos, José sentia em cada pelo arrepiado de seu braço que faltava pouco para se tornar um dos mais importantes cientistas de humanidade. Logo ele, o menos estudado e acadêmico dos membros da família.
Naquela manhã, Marta saiu cedo de casa, e não usava o terninho elegante que normalmente vestia para dar aulas. Disse que faria uma surpresa para José e que talvez pernoitasse na casa do filho. Ele perderia uma noite de roncos, mas tudo bem, retomaria os trabalhos depois.
Marta voltou no dia seguinte, com o nariz envolto em bandagens e o rosto um pouco inchado. Feliz, mas falando com certa dificuldade, revelou o segredo: tomara coragem e fizera uma rinoplastia. O nariz sempre fora meio inclinado para um dos lados, não que isso incomodasse a José. Mas incomodava a Marta. De quebra, celebrou a esposa, o cirurgião tinha corrigido o desvio de septo. Ela ganharia autoestima, e José finalmente poderia dormir em paz: com a cirurgia, Marta nunca mais voltaria a roncar.
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