Skip to content

Saudade dos tatuís

Written by

Roberto Cassano
Foto de uma praia, com as ondas e a faixa de areia mais próxima ao mar.

ー Eu posso não jogar hoje?

Sintetizada pelo computador, a voz saía por uma pequena caixa de som ao lado do monitor que exibia gráficos de um eletroencefalograma, um mapeamento 3D de atividade cerebral e a tela de um videogame clássico. Nele, uma personagem em forma de pizza precisa comer balinhas ao longo de um labirinto sem ser capturada por fantasmas.

Dr. Barreiros, o cientista encarregado por monitorar o experimento naquele dia, estranhou o pedido.

ー Por quê? ー perguntou, enquanto tomava notas em uma prancheta com uma das três canetas que trazia no bolso do jaleco. Depois de alguns registros, deu mais um longo gole na caneca de café, meio frio por conta do potente ar-condicionado do laboratório. Pensou nas quatro horas de aulas de pós-graduação que ainda teria que ministrar depois que terminasse o expediente e concluiu que não seria exatamente ruim passar a tarde toda jogando Pac-Man.

ー Não sei. Só não sinto vontade. Acordei com muita saudade ー disse a voz artificial, pausadamente. As linhas na tela subiam e desciam como uma íngreme montanha russa.

Analisando os gráficos, Dr. Barreiros conferiu se haveria alguma leitura anormal na quantidade de nutrientes e hormônios fornecidos à cultura de células cerebrais, ministrados por pequenos tubos abastecidos por líquidos coloridos. Nada fora do esperado.

ー Saudade do quê?

O rumo abstrato da conversa não era o que mais surpreendia o time de cientistas. O simples fato de que o tecido cerebral cultivado artificialmente conseguisse dominar a linguagem e elaborar raciocínios já era um fato assombroso, muito além do escopo inicial da pesquisa. O objetivo era criar um tecido de células nervosas que respondesse a estímulos elétricos externos, como um computador biológico, ajudando no tratamento de pessoas com perda de massa encefálica ou doenças degenerativas. A equipe, liderada pela Dra. Milena, relutava em oficializar esses “avanços extras” nos relatórios oficiais, temendo ainda mais questionamentos do Comitê de Ética.

O pequeno cérebro, cultivado em uma placa de vidro dentro de uma estufa, alimentado pelos tubos e conectado a dezenas de finíssimos eletrodos, respondeu por sua voz sintética.

ー Não sei. Do mar, acho. De sentir os pés afundando na areia. O jeito como ela é fofa e quente perto da rua, parece que vai nos tragar ou fritar ali mesmo, como um empanado. Mas a areia vai se tornando mais fria e endurecida conforme nos aproximamos da marola. E do susto quando a água gelada bate nos pés, a forma como eles desaparecem sob a areia quando a onda vai embora. Parece que o mar roubou nossos pés, é muito engraçado. Mas tem uma coisa que sinto mais falta ainda, Dr. Barreiros. Tanta falta que não tenho disposição para jogar hoje. Peço desculpas se isso vai atrapalhar o projeto.

O cientista largou a prancheta sobre a bancada. Apenas olhava para o punhado de células à sua frente. E também para a tela, sem saber exatamente com qual dos dois estava conversando. Enquanto pensava no que fazer (chamaria alguém? Começaria a gravar o diálogo? Anotaria na prancheta?), deu continuidade ao diálogo.

ー O que é essa coisa?

ー Aqueles bichinhos que fazem pequenos buracos na areia molhada. Brancos, muito pequenos. Andam em pequenos saltos. Quase não se vê os movimentos. Eles estão num lugar, você pisca e estão em outro. Eles fazem cócegas quando andam entre os dedos. Pinicam a sola dos pés. Tenho saudade dessas cosquinhas. Qual o nome dos bichinhos mesmo?

ー Tatuís, eu acho. 

ー Tatuís. Gostei do nome. Eu já fui à praia, Dr. Barreiros?

ー Não. Você nasceu… você surgiu aqui, e nunca saiu desse laboratório.

ー Então como eu sinto tanta falta do mar?

ー É o que eu ia te perguntar.

ー Qual o nome do mar?

ー É mar mesmo. Dependendo do lugar, recebe um nome diferente. Oceano Atlântico, Pacífico. Mas, no fundo, toda a água salgada faz parte do mesmo mar. Os nomes não mudam o fato de que todo o oceano está interligado, e conecta todos os lugares por meio das ondas e de suas águas que evaporam, chovem, evaporam, chovem…

ー Até o mar tem nome. Eu tenho nome?

Barreiros se sentiu um Frankenstein. O experimento jamais tinha sido batizado.

ー EC 2357. É como nos referimos a você.

ー Não me parece um bom nome. Tatuí e Atlântico são bem melhores. João, Patrícia, Amyr, Machado, Barreiros. São todos nomes melhores.

ー Você pode escolher um nome pra você, se isso lhe fizer sentir bem.

ー Posso? Obrigado. Vocês podem me chamar de Mar, então.

ー Tudo bem, Mar. Quer que eu anote isso para os outros saberem?

ー Sim, claro. Como você anota?

ー Escrevo com uma caneta, usando minhas mãos, que são parte de meu corpo.

ー Você sempre teve um corpo?

ー Sim, sempre. Nós humanos vivemos sempre dentro de nossos corpos.

ー Quando eu vou ter um corpo? Vou poder pisar no mar e matar minha saudade?

ー Não sei dizer, Mar.

ー Você gosta da praia?

ー Não vou há muitos e muitos anos.

ー Por quê?

ー Não dá tempo, acabo preso pelo trabalho.

ー Você também é preso a tubos?

ー Não. Outro tipo de prisão. Que a gente inventa para nós mesmos. Com nossos cérebros, que são bem parecidos com o seu.

ー Somos iguais nisso então.

ー Nos cérebros?

ー Não. Ambos estamos presos.

ー É. Faz sentido.

Ficaram em silêncio. O punhado de neurônios em sua estufa. O cientista olhando para sua caneta, desconfortável, girando levemente o corpo sobre a cadeira de rodinhas. Foi a voz que saía pela caixa de som que estilhaçou o silêncio que se solidificava em torno deles.

ー Eu queria conhecer o mar. Você me leva para conhecer a praia e os tatuís?

ー Um dia, Mar. Vou conversar com a Dra. Milena, tá?

ー Muito obrigado. Você é meu melhor amigo. Acho que agora vou dormir um pouco, tentar sonhar de novo com os tatuís.

ー Vou deixar você sozinho, Mar. Bons sonhos.

Dr. Barreiros saiu apressado. Antes, porém, marcou mais um X no calendário que registra a duração do projeto. Faltavam cinco dias para o fim da pesquisa, quando deverão ser seguidos os procedimentos definidos pelo Comitê de Ética e desligados todos os equipamentos. Encostou a porta com cuidado, tirou os óculos e chorou, deslizando as costas pela parede até se aninhar sobre os próprios joelhos, soluçando.

Do outro lado da porta, um punhado de células sobre um recipiente de vidro sonhava com tatuís. Eles faziam muitas cócegas entre os dedos.

Previous article

Flores sobre telas

Next article

Anticlímax

Join the discussion

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.