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Os corpos perfeitos de Dre. Inebre

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Corpos humanos suspensos em tubos.

Inebre é uma referência mundial em construção de corpos, com bilhões de seguidores. Sua habilidade lhe rende fortunas e um grande número de clientes satisfeitos, cujas mentes são transplantadas para corpos perfeitos, que vão desde réplicas de personalidades até criações semi-humanas. Gorezza, Lin e Xiam procuram o famoso consultório em busca de suas próprias jornadas de transformação, motivados por uma luta a favor do tempo, um desejo de vingança e um sonho de transcendência.


Este conto, disponível na forma de E-book na Amazon, é minha primeira história de ficção científica 18+ (temas adultos), onde exploro temáticas sensíveis como morte, etarismo, gênero e identidade. Também é o conto que teve mais apoio externo até agora. É preciso agradecer a Roney Belhassof pela leitura-beta, a minha amada Ruth Nobrega pela revisão e a Theo Araújo pela leitura sensível.

Aviso: Há uso de neologismos e/ou formas de linguagem que podem ser diferentes ou até exóticas para alguns (embora cada vez mais corriqueiras para outras pessoas), uso esse justificado pelo próprio desenrolar da narrativa. Novas realidades demandam novas palavras, e a ficção científica é o melhor terreno para exercitarmos nossa capacidade de prever as mudanças tecnológicas e na sociedade.

O grande Bang

Arte conceitual do Big Bang criada pelo Bing Image Creator

BANG

— Isso que eu ouvi… é o que eu acho que é?

— Hm, rmmm

— Ah não, cara. De novo? Sério isso?

— Eu gosto. Vai que dessa vez eles acertam?

— Véio, quantas vezes você já tentou?

— Muitas, eu sei. Mas não todas.

— Não existe um “todas”, você sabe.

— Sim. Por isso mesmo não posso desistir. Tenho todo o tempo do mundo.

— Bom, também não temos tempo, quer dizer, o tempo não existe pra, ah, você entendeu.

— Veja pelo lado positivo, é mais um universo de possibilidades que se abre.

— Tá bem, você que sabe. Quando perceber que esse cosmos deu ruim também é só me chamar que eu acabo com a brincadeira.

— Dessa vez eles vão acertar.

— Mas se não…

— Eu te chamo. Daí tento de novo.

— O grande Bang.

— Sim. Quantos forem necessários.

De volta para o futuro: chegou a newsletter do Brogue

Já são 15 anos trabalhando diretamente com redes sociais, um tanto mais lidando indiretamente com elas. Foram as redes sociais que me fizeram dar uma guinada de carreira, por volta de 2008, quando vi que a disciplina que chamávamos de branded content precisava se reinventar para incorporar a voz do público-consumidor-criador, dividir a bola com as pessoas na hora de se criar histórias. Era o fim de um monopólio dos discursos, e isso valia tanto para marcas quanto para os grupos de mídia.

Era um mundo novo a ser desbravado, com inúmeras possibilidades, ferramentas e uma deliciosa miríade de novos atores – e autores – e pautas, temas, memes, linguagens. Tudo seria melhor, mais democrático, mais aberto e acessível, cada voz teria como encontrar ouvidos atentos e os pássaros cantariam pousados nas redes digitais como em musicais da Disney. Tudo era revolucionário, lindo e promissor.

Cena do Choque de Cultura em que Renan defende que crianças bonitas viram adultos esquisitos.

Os sábios gurus do Choque de Cultura já nos alertaram: quase sempre as crianças bonitas viram adultos esquisitos. Não é caso perdido, tampouco motivo de abandonarmos o barco que ajudamos a construir, mas é inegável que as redes sociais se tornaram adultos esquisitos frequentando quebradas estranhas. Aquela voz que seria conquistada hoje é limitada por algoritmos ou por um balcão de negócios onde aparece mais quem paga mais. As marcas também sofrem e sofreram ao longo de vários movimentos. Lembro de uma época em que várias abandonaram seus sites institucionais para mudar suas sedes virtuais para plataformas sociais.

É claro que há muito o que extrairmos das plataformas sociais, muitas pessoas e marcas ainda constroem suas identidades, carreiras e resultados nelas. Seguimos nos empenhando em construir conteúdos relevantes para marcas (corporativas e pessoais) nas diversas ferramentas. Mais parecido com o branded content de 2008 do que se poderia imaginar à época, mas ainda firme e forte.

Mas é preciso olharmos para o macro, entendermos um mundo que acolha e utilize as plataformas sociais sem se restringir a elas. A dinâmica de redes em que se baseiam todas as ferramentas sempre tende ao monopólio, os “ricos ficam mais ricos”, e o final não é saudável para ninguém. Esse olhar macro precisa contemplar o futuro, sempre, mas também resgatar e revisitar o passado.

Antes de me encantar com as redes sociais, já trabalhava com digital. Há 27 anos, em meu primeiro emprego, o desafio era criar informativos por e-mail para pesquisadores de Ciências Sociais e Arquivologia. Newsletters, como essa que acabo de criar para os poucos e bons leitores do Brogue.

Soluções como as newsletters e plataformas como o Substack são importantes porque permitem uma relação direta, filtrada pelo interesse do público e não por um algoritmo externo. Ela se completa e se integra às redes sociais, aos sites, aplicativos, metaversos e o que mais se queira explorar. É por isso que, recentemente, adotei o Mastodon, que resgata a lógica de rede social (e não de mídia social) lá daqueles primórdios.

Que tal você também der uma chance a esta ferramenta do passado para seguirmos sonhando e imaginando o futuro? Assine o The Brogue Mail pelo formulário abaixo ou clicando/tocando aqui.

A Voyager foi mais longe que você. E daí?

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Sonda Voyager. NASA/JPL

As sondas Voyager são um ano mais novas que eu, mais ou menos. Nesse tempo, editei revistas, escrevi alguns textos, comandei campanhas e projetos para marcas e tive um filho. Elas, por outro lado, visitaram planetas e se tornaram as primeiras terráqueas a deixar o sistema solar, rumo ao imenso vazio interestelar.

Comparar as duas trajetórias não é muito justo e pode ser tão irritante quanto as comparações com os primos que fizeram concurso público, ou fazer aquela busca pelo nome de alguém de enorme sucesso, talento e conquistas para descobrir que a pessoa é mais jovem que você e fez 5453454 vezes mais coisas.

Acontece. E acontece, em geral, pelas órbitas escolhidas. Tem quem faça o estilo “foguete não dá ré” e seja profunda e eternamente apaixonada, fissurada por uma coisa. Por uma única coisa a vida toda. Sabe a bailarina premiada que calçou a primeira sapatilha aos 6 anos e só pensa em ballet desde então? Essas histórias se repetem aos montes, ícones de enorme sucesso. Quem vê close não vê corre, como dizem as redes sociais. Vemos o quão longe aquela trajetória levou a pessoa, mas o que não vemos é tudo aquilo que ficou para trás, todas as coisas que atravessou como um trem-bala. Ou como uma sonda catapultada ao infinito e além.

Podemos chamar essas pessoas de “órbita caule”. Sabe o caule da flor que aprendemos a desenhar quando criança? Um “(” comprido, que normalmente adereçamos com uma ou duas folhas? É a órbita de uma Voyager, de uma primeira bailarina de uma grande companhia de dança. De um Pós-Doutor em um assunto super específico. É uma conquista incrível, louvável e cheia de corre, dores e experiências que ficaram pelas estações em que o trem não parou.

Mas tem as pessoas “pétala”, que são como os modernos foguetes reaproveitáveis, ou como satélites, que não vão muito longe da terra, mas percorrem toda ela. Como o telescópio espacial Hubble, que orbita o planeta a 535 Km de altitude (pouco mais que a Rodovia Presidente Dutra, a BR-116, que tem 402 Km de extensão) mas, mesmo não indo tão longe, nos revelou as imagens mais incríveis já captadas do universo.

Na vida em pétala, no lugar do foguete sem ré temos uma série de “vou lá e já volto”. Cada ida e vinda forma uma pétala, e sempre retornamos para um ponto de partida, como a casa, a profissão, a família, a vontade de recomeçar… A pessoa-pétala não vai tão longe, mas vê mais coisas. Vive diferentes vidas. Tem mais interfaces e conexões.

É melhor? Pior? Não tem isso. São escolhas, e escolher algo é sempre desescolher outros muitos algos. É a vida. A mesma que a Voyager tenta entender lá dos confins do sistema solar, e que muitos tentam entender daqui mesmo, explorando o planeta ou a igualmente vasta mente humana.

Todos temos nossos momentos mesquinhos e invejosos. Nessas horas, quando me pego comparando minha vida com gente-foguete, o que acontece com mais e mais frequência na medida em que a maior parte das pessoas ficam mais jovens do que você, eu recorro à Voyager e penso. “Essa pessoa conseguiu três Oscars, talvez vinte milhões de dólares ou emplacou cinco best-sellers aos 46 anos. Ela trilhou muito bem alguns caminhos, e merece todos os louros, mas não trilhou os meus passos. Só eu andei pelos meus caminhos, só eu pude apreciar a minha viagem. E, longe por longe, a Voyager percorreu distância maior que qualquer um de nós. E tudo bem.” E assim afasto a comparação tacanha da mente e me debruço sobre a pétala da vez.

É como o Neil Gaiman disse uma vez sobre o (natural) desespero de todo aspirante a escritor quando vê os textos brilhantes que ele tece: “Sempre haverá pessoas que são muito melhores fazendo isso ou aquilo – mas só você é você. (…) ninguém escreve Tarantino como o Tarantino (…) ninguém é capaz de escrever uma história de Neil Gaiman melhor que eu” (o resgate desse depoimento foi do Crisdias). E bora traçar nossos caminhos porque esses caules e essas pétalas não vão se desenhar sozinhos pelo espaço.


As comparações são tolas. Fazer concurso ou empreender? Emendar mestrado na faculdade ou mochilar pelo mundo? Ter cinco filhos ou curtir a eterna solteirice? Felizmente, não tem receita de bolo, que fatalmente achataria o mundo como uma harmonização facial de almas. Veja a Voyager, com seu Disco de Ouro carregando amostras do que é a humanidade. Ninguém chegou tão longe quanto ela, e sua bagagem inclui Chuck Berry e desenhos de gente pelada. Qualquer caminho te leva longe, é só seguir por ele. Ou não, você pode preferir voltar ao ponto de partida, sabendo que nem você, nem o ponto, serão os mesmos ao retornar.


Reprodução do jornal O GLOBO de 1976 com a chamada "Viking-2 comprova existência de água em Marte"

A Voyager não é minha única contemporânea espacial. Decolando um ano antes de eu ser lançado pra fora de minha mãe, a Viking-2 descobriu gelo em Marte na semana em que nasci. A notícia foi destaque nos jornais e acabou imortalizada em”Eu Também Vou Reclamar“, de Raul Seixas. Olha a pétala aí: Uma sonda da NASA, um jornal brasileiro, um maluco beleza e, agora, um post de blog provocados pelo mesmo miolo.

A vingança de Zé, o humano, contra a máquina inteligente

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Zé era o mais velho dos cinco irmãos, nascido num tempo em que a vida ainda não tinha afrouxado as mãos que garguelavam o pescoço da mãe. Não teve muita chance de estudar, e a mão cheia de calos não encaixava bem nos lápis e canetas. Ajudava a mãe a criar os outros filhos, tudo homem, depois que o pai se mandou pro Sul prometendo voltar logo mas nunca mais apareceu de novo. Zé já era grandinho mas magro feito um palito quando a família diminuiu, a mãe tinha que cuidar da casa e dos filhos dos outros para ganhar um dinheiro tão esquálido quanto ele.

Mas vez em quando, bem vez em quando, as coisas melhoram ao invés de piorarem e a vida foi se acertando. Colocaram reboco nas paredes da casa, Zé ajudou a subir as paredes pra fazer mais dois quartos e os irmãos foram pra escola.

Imagina a alegria quando, um a um, chegavam em casa dizendo que tinham conseguido entrar para a faculdade. Zé ia ter quatro irmãos-filhos dotôres, que alegria. Todos estudaram e, pra bancar a passagem de ônibus e a comida, trabalhavam também. Trabalho de estudante de dotô se chama estágio, é mais chique mas paga mal do mesmo jeito.

Quando a empresona chegou na cidade, todo mundo passou água de colônia e colocou a “roupa de arrumar emprego” da família. Era uma só, então só tinha como ter uma entrevista de emprego por dia. Tivesse mais de uma, lascou-se.

E não é que a roupa era porreta? Todos os quatro conseguiram trabalho na empresona. Zé nem tentou, seu recheio não ornava com o terno. Mas ele fazia bicos de limpeza pra ajudar a mãe, que já não dava conta.

Até que a matriarca não aguentou mais. “Tô véia”, percebeu, e tinha razão. O tempo passa em dobro pra nem não orna com terno de entrevista. Então ela foi morar na casa do irmão do meio, num bairro da cidade com calçada, pracinha e até TV com uns cem canais.

O caçula, que não se chamava Júnior porque a mãe não queria nem ouvir o nome do pai, foi o primeiro a ganhar um cargo Sênior na empresona, tinha sala particular e tudo. Foi ele que arrumou o emprego pro Zé na limpeza. “Vou acionar meus contatos”, falou o caçula depois de um almoço de família na casa do irmão do meio, tomando um energético enquanto Zé palitava os dentes e a mãe lavava a louça.

Então Zé ganhou um crachá com a foto dele sorrindo muito feliz, os buracos entre os dentes deixando ver o foguinho de esperança que tinha lá dentro. Ele havia conquistado um lugar na empresona sem precisar ornar com o terno, então ainda tinha chance de virar dotô sem ter que passar pela faculdade e o estágio que é chique mas paga pouco.

Limpava com muito esmero, até ficar tudo brilhando e sem um fio de cabelo no chão. Assim, depois de alguns anos tirando pó de mesas e aceitando caronas dos irmãos até a rodoviária onde pegaria duas conduções pra casa (a tal que ele ajudou a rebocar e onde hoje vive sozinho), uma caixona começou a mudar tudo.

O caçula explicou que era uma caixa inteligente, com uma inteligência muito sábia e esperta, só que artificial. Não servia pra coisas de inteligência assim do mundão, tipo cravar o número que vai dar no jogo do bicho, mas resolvia um monte de problema que Zé nem sabia que existiam.

A caixa ia ficar dentro da empresa porque o dono não confia nesse negócio de nuvem, computação em nuvem. Zé achou certíssima a implicância do dono. Imagina só, pegar os documento tudo da empresa e colocar na nuvem. Aí, quando o céu fecha, preto, aquelas nuvenzonas pesadas do fim de tarde de verão, no primeiro raio que pipocar vai chover documento pra tudo quanto é lado. Cabum!, e lá vai um contrato. Bum!, e se pirulita o manual pra fazer algum treco secreto lá deles.

Zé achou ruim essa ideia de guardar as coisas importantes na nuvem e fez um sorriso de “o dotô tá mais que certíssimo” quando cruzou com o dono no corredor, o funcionário tirando a vassoura do caminho pra, bate na madeira paidocéu, não varrer o dotô pra longe.

A caixona era preta, com uns vidros escuros e muitas luzes piscantes. Era tipo uma geladeira, mas esquentava muito, então ficava numa sala só dela, igual o irmão caçula que não se chama Júnior porque o pai não presta, e num frio que só. O dono mandou instalar um ar-condicionado só pra caixona que era inteligente e pensava sozinha num monte de coisas, menos no jogo do bicho.

Deu umas três semanas e o primeiro irmão mandou mensagem no grupo da família informando que “estava no mercado e buscava oportunidades de recolocação”. Zé pensou em pedir pra ele não esquecer de comprar no mercado algumas coisas que a mãe gostava, mas pelos áudios dos irmãos viu que não era isso. Tinha sido mandado embora.

A cada semana era outro irmão que perdia o emprego. A caixona estava fazendo o trabalho deles, então os funcionários não eram mais necessários. O último a levar o pé na bunda foi o caçula, porque deve dar mais trabalho se livrar de gente que tem uma sala só pra ela. A caixona roubou o emprego dos quatro irmãos do Zé.

Na escala de trabalho, cabia justamente ao Zé limpar a sala da caixona. Ele olhava pra ela, cara de zangado. “Você fez uma coisa muito feia”, dizia pra safada da máquina. A caixona nunca respondia, seguia piscando suas luzes. Olhou bem pra caixa. Notou que ela jamais havia saído do lugar. Não tinha braços nem buraco onde encaixar uma vassoura. Pelo menos o emprego dele parecia seguro, mas não era justo o que ela fez com os quatro irmãos que Zé prometeu cuidar pra mãe poder cuidar do filho dos outros depois que o pai se mandou.

Zé precisava fazer alguma coisa.

Foi quando tomou coragem e se aproximou da caixona. Esperou a câmera que fica girando de um lado pro outro igual vizinho fofoqueiro que não tem mais o que fazer ficar fofocando o outro lado da sala e cutucou a ponta do fio que liga a caixona à tomada. Deu aquele totozinho sutil, suficiente para apagar todas as luzes e silenciar os zumbidos. Mas, para qualquer um que olhasse, a tomada estaria encaixada certinha no lugar.

Saiu da sala se sentindo vingado, deixando para trás uma grande caixa preta de metal e vidro, silenciosa, apagada e incapaz de demonstrar qualquer inteligência. Cedo ou tarde alguém ia descobrir e recolocar a tomada no lugar, mas o importante é que agora a tal inteligência ia ter que pensar duas vezes antes de bulir com alguém com uma vassoura na mão e que já acertou uma pá de números no jogo do bicho.

Inteligência Artificial: reflexões inspiradas por Movimento 78

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Capa do livro Movimento 78, de Flávio Izhaki

No fundo, a gente morre de medo das IAs, as Inteligências Artificiais. Mas o lance é que a gente também ama as pessoinhas virtuais e confia nelas. Principalmente porque “algoritmo não erra”. Nossa relação dúbia com a cria de Ada Lovelace, que inventou os algoritmos láááá atrás, é uma conclusão lógica e racional. Que, assim como as decisões das máquinas, que sempre são lógicas e racionais, também podem estar logicamente erradas.

A base é uma observação do mundo. Tudo que não é natural nesse planeta, foi a gente que fez. Ou seja, tirando sol, terra, ar, bicho e planta, o humano é o grande Criador. E, tirando bicho, planta, etc, a gente consegue ver uma pá de coisa errada por onde quer que olhemos. A conclusão mais óbvia de qualquer um que coloca a cabeça pra fora da janela é “deu ruim, deveríamos ter virado para um lado diferente em alguma bifurcação evolutiva lá atrás. Vacilamos, foi mal”. Daí o famoso “errar é humano”. Como diz Douglas Adams, “descer das árvores foi um grande erro”.

Por conclusão lógica, se o humano é inevitavelmente errado, o não-humano tá certo. Aí entra o Divino, que jamais erra, mesmo quando a gente acha que não tinha nada a ver, sei lá, três raios caírem sobre um orfanato, ou alguém ficar doente muito cedo. “Deus sabe o que faz”. O tal do inefável, tão presente em Belas Maldições, do Gaiman.

Mas o Divino, que não erra, não ajuda muito a fazer carros andarem sozinhos, a otimizar triagem em hospitais, a criar textos, imagens e linhas de código, derrotar campeões de jogos de tabuleiro etc. Então inventamos nossa própria divindade, que não erra, invisível, onipresente e cada vez mais onisciente: a IA.

Não tem como não amar e querer mais e mais de algo que não erra* e vai deixar tudo perfeito. Vai encontrar nossas potencialidades ainda na escolinha, vai curar as doenças que ainda nem temos, vai incrementar a análise dos esportes vai… tudo.

Tudo? Aí deu ruim, dá pra voltar atrás e dobrar diferente alguma esquina do passado? Agora é tarde. Quando a coisa que não erra e faz tudo, começa a fazer tudo, onde fica a gente? Pelo menos, a IA parece ser de fato democrática e não elitista: ameaça tirar o emprego de todo mundo, do motorista de caminhão ao Washington Olivetto, do Romero Britto ao oncologista. Se vai conseguir, não sei. Até porque IA só apita enquanto o humano deixar, é ele quem, pelo menos, ainda paga a conta de luz que alimenta o servidor.

Tudo isso é pra dizer que Movimento 78, de Flávio Izhaki, é um livro sensível, antenado, divertido e muitíssimo bem escrito. Vamos oscilando entre presente e futuro para ver como um inocente “olha, fiz uma foto minha em IA” pode virar uma grande caca em algumas décadas. O que começa em triunfos de IAs-celebridades como AlphaGo e DeepBlue degringola para erros fatais por excesso de confiança (e ganância) nesses sistemas e, por fim, à submissão da sociedade aos algoritmos, às probabilidades e às invisíveis máquinas que sabem que são melhores e mais consistentes que nós.

Como toda ótima ficção científica, provoca reflexões. Consegue ser crítica sem ser ludita. A IA, em si, não é má, não é algo a se combater: ela pode ser uma aliada poderosíssima nossa, pode de fato nos libertar de uma série de de problemas ou erros. Ou pode ser o pior movimento de peças que já fizemos no tabuleiro da história. Pensei em ilustrar esse post no Midjourney, mas além de já não ter mais créditos, tive medo de essa ser justamente a jogada que degringola o espaço-tempo. Igualmente cogitei pedir pro ChatGPT fazer uma resenha do livro, mas também tive medo do texto ficar melhor que o meu.

P.S. Concordo 100% que a melhor parte da recém-paternidade são os momentos de intensa conversa entre pai e bebê à espera de um arroto. Duvido que o ChatGPT dissesse isso no texto dele.

P.S. 2 Profissionalmente, sigo estudando e explorando cada vez mais as IAs. São ferramentas muitíssimo poderosas para inúmeras atividades. Mas precisam ser isso, ferramentas valiosas e incríveis, não divindades. Lugar de martelo é na mão, não sobre nossas cabeças. Na questão do roubar ou não os empregos, prefiro ter a visão otimista de que elas têm potencial para nos livrar de nossos trabalhos, nos libertando para viver e não cumprir tabela de 9 às 5 por toda a existência.

* Importante fazer justiça aos vários pesquisadores que fazem trabalhos sérios sobre ajustes fundamentais em nossa forma de aprimorar e usar algoritmos, denunciando questões como o “racismo algorítimico”. Esquecemos que eles são programados por humanos, respondem a objetivos empresariais e são alimentados por dados também produzidos por nós.

The Terraformers: um futuro sustentável e com ratos-toupeiras falantes, mas infelizmente familiar

Capa do livro The Terraformers, de Annalee Newitz

Nem toda história com vacas mecânicas defensoras da Justiça, ratos-toupeiras engenheiros genéticos e alces voadores que conversam por mensagens de texto são de humor ou contos de fadas. E nem toda utopia ambientalista de sinergia total entre animais, plantas e ecossistemas é uma história feliz de cabo a rabo.

Annalee Newitz faz um excelente trabalho ao amarrar tudo isso numa trama que a gente pode enquadrar no movimento SolarPunk: a luta de personagens conectados a redes digitais contra sistemas opressores, que já conhecemos do gênero Cyberpunk, só que ao invés da trama se passar numa Tóquio escura e cheia de neon, ela se passa em meio à natureza e edifícios que brotam e respiram como plantas.

O texto é uma SciFi de primeira, assumindo o desafio de imaginar a vida em um planeta distante, Sask-E, por volta do ano 59 mil. Animais falam, robôs são pessoas, drones se casam com portas. Os Homo Sapiens (e seus descendentes) fizeram um pacto com animais, que já não servem de alimentos e são tratados (quase) com respeito. Ninguém mais come ninguém, nem no sentido bíblico da coisa, uma vez que as criaturas vivas são decantadas e raramente nascem da maneira que a gente conhece. Mas temos pegação, em modo queer galático (o que será um desafio à tradução, para tropicalizar os pronomes he, she, they).

Poderia ser uma utopia total, mas nem toda a tecnologia e as inovações incríveis, que deram a nossa espécie a capacidade de terraformar planetas distantes, viajar por meio de buracos de minhoca, trocar de corpos para viver por séculos anularam características muito contemporâneas e familiares, como a mesquinharia, o desprezo pelas classes operárias, a ganância e o poder do dinheiro.

Esse é o papel da ficção científica. Não é prever o futuro, mas projetar, imaginar cenários. Transpor elementos do hoje para cenários distantes (no tempo ou no espaço) e ver se ali, desplugados do cotidiano que camufla defeitos e vícios, eles nos gritam. Precisamos sair do nosso lugar para perceber nosso caminho tortuoso. Precisamos nos colocar na pele de uma vaca justiceira ou de um alce voador para perceber como doem preconceitos, tabus e limitações impostas por um sistema injusto.

The Terraformers é um livraço.


[ATUALIZAÇÃO MARÇO/2024]: O livro The Terraformers é um dos finalistas do NEBULA AWARDS 2024, com boas chances de levar o prêmio. Seria merecido.

Controlvê – conto completo

Uma taça de Martini e o texto Controlvê

A

bri a porta do apartamento e fui recebido pelo aroma de orégano e pelo alarme estridente do timer da cozinha. A pizza estava pronta. Celebrei comigo mesmo o sincronismo. Assim que deixei o escritório de arquitetura, compartilhei a localização com minha esposa. Coube a ela rastrear meus passos e colocar a pizza no forno do tempo exato. Tanto cuidado se justificava: não é toda hora que celebramos nosso primeiro aniversário de casamento.

Eram bodas de papel. O primeiro ano juntos, em que o calor da paixão pode esfriar mais rápido que a consolidação da cumplicidade, é simbolizado por esse material que se julgava frágil, efêmero. Lembro do celular no bolso, penso no outro aparelho usado para seguir meus passos e rio com a inversão de valores. Em tempos de redes sociais e vidas construídas virtualmente, o papel passou a ser eterno, raro, valioso. Um viva à boda de papel, então.

Trouxe uma garrafa de vinho de qualidade duvidosa, comprada na loja de conveniência do posto da esquina. Sentados à mesa, abastecemos nossas taças e nos deliciamos com a pizza, que estava ótima. Uma notificação de celular interrompeu uma disputa pela última fatia, em que os garfos viraram sabres, e éramos esgrimistas lutando pelo espólio.

Ela desbloqueou a tela, leu algo no aplicativo de mensagens e ia retornando à celebração (prestes a descobrir que eu tinha comido a tal fatia), quando percebeu que a localização compartilhada há um bom tempo seguia ativa. E o mais estranho: o pontinho com minha localização não tinha parado em casa. Seguiu rua abaixo, avançando até outro ponto da cidade. No momento, estava ziguezagueando por um trecho de serra, em um bairro de luxo à beira-mar, com grandes casarões incrustados nas encostas rochosas de frente para o oceano.

Como arquiteto, já tinha participado do projeto de algumas casas ali, para atores, atletas, gente com grana e prestígio. Mas jamais visitei os lugares depois de terminadas as obras, coisa que a bolinha que me simbolizava no celular estava estar prestes a fazer.

Nos entreolhamos, confusos. “Será que meu celular foi clonado?”, pensei. O efeito do vinho passou de súbito com a adrenalina. Saquei o celular, abri os aplicativos de bancos, e-mail e cartão de crédito, alterando as senhas. Cancelar a linha telefônica naquela hora da noite seria uma baita dor de cabeça, então optamos em monitorar o clone, para ver até onde ele iria.

Até seguir caminho rumo ao bairro dos casarões, o trajeto assinalado no aplicativo era exatamente o feito entre o escritório e nossa casa. “Será que foi quando entrei na loja de conveniência?” Teria sido obra do sujeito estranho tomando guaraná natural com um laptop sobre a mesinha circular? Ou foi a atendente simpática a quem paguei pelo vinho?

Não tínhamos quaisquer pistas. Fui à janela da sala em busca de alguma van suspeita, com antenas no topo, como as dos filmes de espionagem. Nada fora do comum, noite normal lá fora.

Voltei ao sofá onde minha esposa acompanhava os passos do clone depois de abandonar a mesa do jantar de bodas de papel. O impostor era, sem dúvida, a atração principal da noite.

Depois de alguns minutos piscando sobre uma casa específica, o compartilhamento de localização foi interrompido. Saquei meu computador da mochila e, com ele, procurei pela casa em um mapa online e, depois, por notícias sobre o local. Era a residência de um famoso estilista. Por coincidência, haveria um grande evento ali, para lançamento de uma coleção exclusiva, com presença de fotógrafos renomados e top models internacionais. “O picareta tem bom gosto”, reconhecemos.

Defunta qualquer possibilidade de retomarmos o roteiro romântico do jantar com vinho, pizza caseira e luz de velas (que esquecemos de acender), o item seguinte na programação foi vasculhar os perfis em redes sociais do anfitrião e dos convidados ilustres destacados pelos perfis de fofoca.

A festa tinha vários ambientes e uma decoração inspirada em um mashup entre o Brasil tropical e o oriente tecnológico. Muito raio laser, garçons performáticos e música eletrônica. Alguns convidados faziam selfies ao lado de emas adornadas com tiaras cravejadas de brilhantes. Acrobatas desafiavam a gravidade presos a largas faixas de tecido que pendiam do alto de grandes palmeiras.

Um participante fez uma transmissão ao vivo mostrando detalhes do estacionamento, um pequeno congresso de Ferraris, Mercedes e afins. Já uma jovem, influenciadora digital especializada em comida, fez questão de perseguir os garçons, mostrando um a um os quitutes para seus seguidores. Eu desconhecia todos e, acredito, não provaria nenhum, limitado por meu paladar infantil.

“Espera, volta uns segundos aí.”

“Por quê? Quer anotar a receita?”

“Não, não, só volta uns segundos. Olha o cara que vai passar atrás do garçom.”

Arrastando o dedo, retrocedi a saga dos canapés, atento à minutagem que chamou a atenção de minha companheira de sofá. Tremi. Meus lábios ressecaram. Afundei no sofá, a sala girava ao meu redor. Algo apertava meu coração, levando-o para longe, para fora do tórax.

Naquele vídeo, passando por trás de um garçom que era atacado pela influenciadora dos canapés, estava um homem, feliz e confiante, segurando um martini. Ele parou por uns segundos, deu um gole na bebida, abriu um grande sorriso e acenou para alguém fora da cena, andando em seguida em direção a esta pessoa, enquanto a influenciadora seguia para outro lado atrás de mais um garçom. O homem do martini, totalmente à vontade naquela recepção glamurosa, sem dúvida alguma era eu.

A noite terminou naquele momento. Embalada pelo vinho, ela pegou no sono mesmo após a descoberta chocante. Eu fiquei ali, perplexo, sem coragem para monitorar os passos do clone, mas sem condições de deixar o assunto de lado. Com receio de mais uma surpresa ingrata, desliguei o telefone.

De manhã, ainda sem religar o celular, verifiquei pelo computador a conta bancária e o site do cartão de crédito antes de sair de casa: nada estranho ou irregular. Fui trabalhar em modo analógico, mantendo o aparelho móvel desligado, como forma de manter meu clone aprisionado no retângulo inerte em meu bolso.

O dia começou estranho. Não me sentia bem e os efeitos da noite passada em claro e do vinho barato encharcavam o cérebro com um piche espesso e pesado. Ainda seguia empacado no projeto de um potencial cliente. Era uma concorrência, e o escritório vencedor levaria um excelente contrato. Patinava há duas semanas e aquele não tinha pinta de ser um dia produtivo.

Levantei e fui tomar café, sonolento. Um grupo no corredor alternava os olhares entre mim e seus celulares. Uma jovem profissional que mal me dirigia a palavra me cumprimentou efusivamente. Na pequena copa, senti o braço trêmulo e cansado quando fui desencaixar um único copinho plástico do recipiente em que eles ficam empilhados uns nos outros. Acabei com um bolo de cinco copos na mão. Ainda estava tentando desfazer o desperdício ecológico quando senti dois tapinhas em meu ombro.

Agradeci por ainda não ter me servido do café, pois teria me molhado todo quando me virei e vi que o autor dos tapinhas era o dono do escritório, arquiteto experiente e renomado.

“Parabéns, jovem. Os contatos que você fez ontem podem dar muito mais retorno para nosso escritório do que horas debruçado sobre uma prancheta. Você deve estar cansado, talvez queira ir para casa depois do almoço, trabalhar de lá e descansar um pouco.”

Fez o pequeno discurso e foi embora, sem esperar uma réplica. “Mas o que eu fiz ontem além de ter o celular clonado?”

Larguei os copos vazios de café e fui buscar refúgio e isolamento no banheiro. Tranquei a porta e, trêmulo, tirei o celular do bolso. Assim que ligou, ele vibrou continuamente por vários minutos. Eram centenas de notificações de uma rede social de fotos. Eu tinha ganho mais de 10 mil seguidores e uma imagem em particular tinha outras milhares de curtidas. Era uma foto minha, confiante e sorridente, ao lado do estilista dono da festa chique de ontem, de um jogador de futebol campeão do mundo e de uma das mais famosas supermodelos da atualidade.

Entre os comentários, o jogador de futebol agradecia por eu “ter sido a alma da festa. Grande sacada do anfitrião ter convidado essa pessoa tão especial e profissional de enorme talento e sensibilidade”.

Olhei para mim mesmo na foto. Eu tinha um brilho no olhar que desconhecia. O eu da foto parecia mais vivo do que a pessoa sonolenta e de pernas bambas no banheiro de um escritório.

Aceitei a folga pelos serviços prestados na véspera e fui para casa. Minha esposa também tinha visto a postagem e não sabia se jogava panelas em mim em uma crise de ciúmes ou se ligava para a polícia.

Concluímos que era impossível eu estar ali com ela e assediando supermodelos ao mesmo tempo. E que era esteticamente inviável que qualquer supermodelo me desse atenção. Fui absolvido por incapacidade física e sensual de cometer o delito. Quanto à polícia, não chegamos a um consenso. A história era doida demais, talvez fosse mais provável sermos presos por desacato, suspeitos de tentar aplicar um trote.

Terminei de mudar as senhas de todas as outras aplicações e troquei o número do telefone. Adicionei novas camadas de autenticação, inclusive biométricas. Por fim, formatei o aparelho e reinstalei tudo. Não tinha mais como o clonador usar minha localização ou minhas redes sociais.

Por alguns dias, pareceu ter funcionado e a vida voltou ao normal. Apenas os colegas e o chefe seguiam mais simpáticos comigo do que de costume. Ainda que não tivesse avançado uma parede sequer em meu projeto, o dono do escritório me chamou em sua sala para dizer que eu tinha sido escolhido para defender a proposta da concorrência, dentro de mais três dias.

Pânico. Trouxe o grande computador do trabalho para casa, para me concentrar e trabalhar sem trégua. Praticamente não saía da frente da tela, comendo sanduíches que minha esposa preparava para mim.

Na véspera da apresentação, recebi um e-mail inusitado: a cópia, assinada por mim, de um contrato de gravação de uma campanha publicitária. Alguns minutos depois, uma notificação no celular registrava uma movimentação atípica na conta do banco: um depósito, com vários zeros depois do algarismo inicial, vindo da mesma empresa com quem o outro eu assinara contrato.

Não tinha nem tempo para me desesperar, precisava me concentrar. No fim da noite, cansado, repousei a cabeça sobre a mesa de trabalho, empurrando o teclado do computador um pouco para o lado. Adormeci. Não sei quanto tempo se passou até que despertei com uma metralhadora vibratória em meu celular. Era uma nova onda frenética de notificações da rede social de fotos. Para aqueles milhares de seguidores eu não estava cheio de olheiras tentando fazer um projeto de arquitetura. Na imagem que o outro eu acabara de postar, eu estava no interior de um jatinho particular. Era um carrossel, com os bastidores de meu ensaio fotográfico ao lado de uma estrela da música pop. Eu estava sem camisa e tinha gominhos no abdômen que definitivamente não reconhecia. Ainda assim, era eu, com certeza.

O coração palpitou, a visão ficou turva. Cambaleante, caminhei aos tropeções em direção ao banheiro. Uma queimação subia pelo esôfago. Precisava colocar para fora o que estava sentindo. Talvez pudesse expelir o falso eu que me eclipsava, que me afrontava com a pequenez e futilidade de minha vida real. Odiava aquele eu. O outro eu era um escárnio. Não tinha o direito de roubar minha existência, mesmo que soubesse tirar muito mais proveito dela.

Não cheguei ao banheiro. Em minha confusão mental devo ter tropeçado no fio que ligava o computador a uma tomada e caí. Quando abri os olhos, ela segurava minhas mãos. Em meu pulso, um esparadrapo mantinha no lugar a agulha por onde gotas de soro pingavam lentamente. Estava em uma enfermaria.

“Você bateu com a cabeça e desmaiou. Os médicos disseram que precisa ficar em observação por 24 horas”, me explicou, falando pausadamente para eu acompanhar mesmo em meu desnorteio.

Demorei a fazer as contas. Era de noite quando eu caí. A reunião com o potencial cliente seria na manhã do dia seguinte. “Que horas são?”, perguntei. Talvez ainda dê tempo, precisa dar. Só falta eu perder o emprego por causa do impostor passageiro de jatinhos.

Eram quatro da tarde.

Fechei os olhos e soltei um longo suspiro. As mãos crispadas queriam socar a maca, mas as horas deitado me deixaram sem forças até para isso. Pedi para ela ligar meu celular e olhar as mensagens, a esperada sequência de vários “cadê você?” que se concluiriam com um “está demitido”. Mas só tinha um áudio do meu chefe. Ela colocou para tocar e aproximou o celular de minha cabeça, para que eu pudesse ouvir.

“Você saiu tão rápido da reunião que nem deu tempo de conversarmos… olha, o cliente acabou de me ligar, disse que adorou você e sua energia. Que é disparado o melhor projeto de todos. Ainda temos que ver a parte de preço e tal, mas tecnicamente, a conta é nossa. Ou melhor, sua. Meus parabéns. E, sobre a ideia de sociedade que você falou, vou pensar, mas acho que pode ser um ótimo negócio para todo mundo, sócio. Parabéns. Aproveite aí com sua esposa, ela deve estar orgulhosa. Tchau!”

Sócio? O outro eu pegou um jatinho de volta de sei lá onde para apresentar um projeto em meu lugar e ganhou a conta? Vai-vou ser sócio do escritório?

Ainda com meu celular na mão, ela viu a notificação do banco.

“Que dinheirama é essa?”

“Eu acho que fiz uma campanha publicitária. Parece que estamos ricos”, concluí enquanto observava as gotas de soro caindo lentamente.

Passei os trinta dias seguintes sem sair de casa. Acompanhava as movimentações do meu outro eu pela conta bancária, os constantes e crescentes depósitos e pelas mensagens do escritório de arquitetura (eu fazia excelentes projetos e os defendia muito bem, com paixão). Estava cada vez mais famoso nas redes sociais. Me chamavam de o Arquiteto das Estrelas. O jatinho foi realmente uma boa aquisição. Seria impossível acomodar minha agenda atribulada se eu dependesse de voos comerciais.

Não posso dizer que não usufruía. Trocamos a TV e a geladeira. Assinei todos os serviços de streaming. Quando não estava assistindo meu próprio sucesso pelo celular, comia pratos de chefs renomados disponíveis nos serviços de entregaenquanto maratonava séries e filmes. Meu clone trabalhava por mim. Engordei três quilos desde que me duplicara.

Recebi uma foto de minha mãe, contente por eu ter finalmente feito-lhe uma visita e, além de elogiar o bolo de laranja, ainda consertei o varal que estava quebrado há anos. A imagem mostrava o tal varal, repleto de roupas penduradas ao sol. Muito bom, a não ser pelo detalhe de que, no dia da referida visita, eu estava em casa, assistindo à refilmagem de Além da Imaginação na TV.

Tempos depois, já não me reconheci no espelho ao escovar os dentes, um dos poucos hábitos de higiene preservados. Os olhos fundos e opacos, a pele translúcida, a barba por fazer com tufos emaranhados. Estava mais gordo do que jamais imaginei. Mas não importava. Para todos os efeitos, eu não estava me desfazendo no sofá. Era um sucesso profissional e pessoal, com milhares de seguidores, amigos influentes e mãe orgulhosa. Eu tinha vencido na vida.

O que via no espelho era uma lembrança incômoda, um daqueles deslizes do passado que rezamos para que jamais venham à tona. Não saía de casa. Temia encontrar comigo mesmo e desfazer a magia de nossa duplicação, colocando tudo a perder. Tudo… tudo o quê?

Segui fazendo compras online, gastando parte da conta bancária conjunta comigo mesmo, que não parava de acumular mais e mais dinheiro. Eu tratava como uma justa remuneração, o pagamento do aluguel para o inquilino que arrendou minha vida.

Confesso, constrangido, que não sei ao certo quando ela me deixou. Um dia, enquanto me arrastava pela sala para buscar um copo de água na cozinha, ouvi o silêncio que reinava na casa. Um silêncio vazio, doído. Caminhei pelos cômodos sem nada falar, não chamei por seu nome. Apenas procurei. Abri as portas de seu lado de armário, e confirmei que ali jaziam cabides vazios. Procurei por uma mensagem, bilhete e nada achei. Quando ela havia me deixado?

Abri o celular e olhei as redes sociais. Procurei por minhas últimas fotos. Algumas eram um tanto quanto clichês, com plano fechado de mãos brindando taças de champagne, ou a foto de mim mesmo caminhando sobre uma praia da França dando as mãos para a pessoa que tira a foto. Olhei as mãos. A da taça, as que eram puxadas em direção ao poente na Cote d’Azur. Eram as mãos de minha mulher. De minha ex-mulher.

Havia me trocado por eu mesmo.

Considerei pôr fim à nossa vida, mas não tinha certeza de que meus infortúnios o atingiriam de alguma forma. Ele continua esbelto e barbeado nas fotos, mesmo com todos os ataques que tenho feito ao meu corpo físico. Voltei para o sofá e recomecei a maratona de séries.

Mais uns dias se passaram, e estava cada vez mais pálido, translúcido. Eu desaparecia. A cada dia, ele se tornava a mim. E eu rumava para ser uma ideia, uma vaga lembrança, um sonho que ficamos em dúvida se já foi real ou não.

Decidi aguardar o pleno desaparecimento. Foi quando recebi um e-mail de mim mesmo. Agradecia pelo corpo, pela vida, pela profissão. Elogiava minha esposa e dizia para eu ficar tranquilo, pois eu continuava cuidando, amando e a respeitando. Por fim, pedia desculpas antecipadamente por transferir todos os nossos recursos financeiros para uma outra conta bancária, a qual eu não teria mais acesso. Terminava com link para um site e uma sugestão para que eu o acessasse em até cinco dias.

Cliquei no link. Tinha fotos de pessoas de todo o mundo. Embaixo de cada retrato, um nome, a idade e a profissão de cada indivíduo. Sob as imagens e textos, para cada homem e mulher, um botão laranja com texto “COPIAR”.

Cinco dias depois, a polícia bateu à porta, procurando por meu antigo eu. Diziam que eu estava sendo procurado por falsidade ideológica, que me passei por um arquiteto famoso. Acariciando o queixo barbeado e bronzeado com meu braço musculoso, disse aos oficiais que desconhecia o caso e a pessoa em questão. Entreguei a eles meu cartão profissional da multinacional automotiva e o de presidente da Federação de Triatlo. Chegaram tarde. Eu já era outra pessoa.

O conto “Controlvê” está disponível em formato Ebook na Amazon. Dá para ler no computador, tablet, celular ou no Kindle. Assinantes Kindle Unlimited podem ler de graça!

E se seu telefone celular for clonado? Pior ainda: e se sua vida for clonada? E se o falso “eu” souber viver melhor do que você, alcançando em seu nome sucesso que jamais imaginou conquistar?

O texto faz parte da série de ebooks 1ContoEPouco, que trazem uma história cada (às vezes com algum bônus) e custam 1 conto e pouco.

Pão de Ontem

Futuro com gostinho de passado

O atendente da padaria iluminou o rosto quadrado com um sorriso forçado, indicando sua mentirosa satisfação em seguir atendendo aos caprichos daquela cliente irritante. Era a terceira vez que a mulher pedia para voltar com sua baguete para a impressora.

— Um pouco mais queimadinha, por favor.

Eu era o terceiro de uma fila que já demonstrava sinais de impaciência. Não os culpo. O processo é bem simples e qualquer pessoa que viveu nesse planeta nos últimos 50 anos sabe como se compra pão. Você olha para o vidro do balcão onde estão projetados todos os tipos disponíveis e fixa o olhar no que você deseja. Depois, é só olhar para o grau de cozimento desejado, do mais branquinho ao tostado. Daí é aguardar o androide tirar o pão quentinho da impressora. Não era pra ser tão complicado. Se fosse para ter tanta dor-de-cabeça, teríamos impresso o pão em casa mesmo, como fazemos com quase todos os itens de consumo diário.

Um “plim” avisou que a fornada da cliente chata estava pronta. O androide retirou a baguete, colocou em uma sacola biodegradável e a entregou à chatonilda, que saiu evitando cruzar o olhar com os fregueses irritados na fila.

O conto “Pão de Ontem” está disponível em formato Ebook na Amazon. Dá para ler no computador, tablet, celular ou no Kindle. Assinantes Kindle Unlimited podem ler de graça!

Esta história nos transporta para o subúrbio do Rio de Janeiro em um futuro quase utópico: renda mínima universal, realidade aumentada, implantes cibernéticos, máquinas de imprimir alimentos, trens de alta velocidade e, resistindo bravamente, democracia. Se muitas coisas podem ser novas e bem-vindas, outros elementos bastante conhecidos dos cariocas seguem infelizmente presentes. Será que a tecnologia, por mais avançada que seja, jamais nos livrará de certas cicatrizes em nosso tecido social?

O texto faz parte da série de ebooks 1ContoEPouco, que trazem uma história cada (às vezes com algum bônus) e custam 1 conto e pouco.

Anticlímax

Me vi pensando no quão frustrante é essa situação. Em trinta anos como astrônomo amador e ufólogo, jamais poderia sequer imaginar uma forma tão anticlimática para nosso Primeiro Contato. É de querer abandonar a profissão, embora soe estranho chamar de profissão algo que nunca tenha me dado um real em todo esse tempo de trabalho duro.

Quanto foi imaginado, sonhado, esperado! Naves gigantes, ordens de “levem-me a vosso líder”, parasitas que explodem em nossos peitos, caçadores com roupas invisíveis, seres mutantes, objetos flutuantes querendo se comunicar conosco, aliens fofinhos de dedos luminosos, pequenos homens verdes, cubos ciborgues assimiladores de gente,  discos voadores abduzindo vacas, sondas inseridas em locais estranhos.

Fox Mulder abandonaria a profissão. H. G. Wells jamais escreveria uma só palavra. Arthur C. Clarke diria que o melhor seria nunca termos tirado os olhos do chão. Kirk preferiria ser pastor de ovelhas.

Tem uns meses que começou, ninguém sabe ao certo. Só isso já é uma catástrofe. Não existe um “Dia D”, um Dia da Chegada para comemorarmos, um marco que simbolize nossa futura adesão à Federação de Planetas. Não teve. Apenas a percepção, pelos números do sistema de saúde, pelos telefonemas para os RHs das empresas e pelas faltas nas chamadas escolares, de que os casos de diarréia estavam ficando bem mais comuns.

E só aumentaram, contaminando mais e mais pessoas. Entre todas as possibilidades elencadas, ninguém suspeitou de origem extraterrestre. Outra blasfêmia, pois sempre foi o contrário. Algo estranho no radar? OVNI! Marcas no milharal? UFO! Criatura misteriosa em Varginha? ET! Caganeira generalizada? Virose.

Mas não era virose. Nem contaminação na água, nem bactérias.

Médicos sanitaristas ficaram empolgados. Talvez os únicos, além dos fabricantes de papel higiênico e de medicamentos para reposição da flora intestinal. Relembrando os anos de pandemia, escolas e empresas optaram por continuar com suas atividades remotamente, mais por uma questão de insuficiência de banheiros em suas instalações.

Não eram diarréias fatais, tampouco um ebola ou um fungo transformador de pessoas em zumbis, essas coisas que também poderiam tornar o caso mais relevante. Você se esvaía por uma semana mais ou menos, depois ficava bem. Não me lembro de ter lido nada sobre mortes.

Só se considerou que a verdade poderia estar lá fora quando rastrearam os casos até o cagão zero, digo, paciente zero. As primeiras corridas ao banheiro batiam com alguns epicentros da corrida espacial, próximo de armazéns onde foguetes reutilizáveis eram armazenados depois de pousos bem-sucedidos.

Coincidentemente, todos tinham participado de missões para a nova Estação Espacial. E, também coincidentemente, a Estação tinha sido atingida dias antes por uma intensa chuva de estranhos meteoros de baixa densidade, que não danificaram a estrutura. Apenas forçaram astronautas a executar caminhadas espaciais para limpar as janelas que estariam mais “no clima” se fossem o pára-brisa de um Jeep 4×4 depois de um rally.

A causa de tudo poderia ser o estranho meteoro fofo e marrom-esverdeado.

Depois de semanas de análises clínicas em todo o mundo, descobriram um elemento esquisito nas fezes estudadas, que definitivamente era orgânico mas cujo DNA não se assemelhava em nada ao de qualquer outro vírus, bactéria ou ser vivo conhecido na Terra. 

Nosso primeiro contato foi batizado como FZ-1. O visitante extraterrestre era algum tipo de bactéria ou microorganismo que veio na roupa suja da Estação Espacial e provocou diarréia em meio mundo.

Muito frustrante.

Eu posso mostrar para vocês todos os recortes, fotos e evidências que reuni ao longo das últimas décadas, como tudo apontava para um momento mágico para a humanidade. Mas só depois, pois agora estou no banheiro, expulsando alienígenas de meu corpo, como outros milhões de terráqueos mundo afora.

A televisão na sala está passando desenhos animados. Aliens por todo planeta e a situação é tão constrangedora que nem se dão ao trabalho de cobrir. Cobrir o que? Pessoas com cólica?

Quero sair do banheiro, mas a sensação é de que ainda há serviço a fazer. Sigo por aqui mais um pouco, refém deste xenomorfo intestinal. Sinto vontade de chorar. Nem um pulso eletromagnético, nada explodindo a Casa Branca. Nenhum monolito nos ensinando a arte de criar e de destruir. Frustrante.

Ouço a vinheta do alerta do noticiário interrompendo o Scooby-Doo. Me estico para tentar ver o que aparece na tela pela porta aberta do banheiro, sem me arriscar a abandonar o posto. Vejo a imagem de uma repórter. Deve estar de plantão, pois já tinha entrado ao vivo mais cedo para falar de um engarrafamento.

Ela fala algo sobre uma estação de esgoto que fica aqui perto. A tela mostra um objeto que parece uma nuvem gigantesca flutuando sobre a estação. É marrom. E realmente enorme. Do meu ângulo nada favorável, tentando espiar a televisão sentado no trono, parece-me que tem uma espécie de chuva ao contrário ligando a estação de tratamento à nuvem, com gotas escuras subindo ao invés de descerem. Quando a jornalista ia dar alguma outra informação, uma voz retumbante quase estourou o alto-falante da TV, vinda da tal nuvem marrom:

— Levem-me a vosso líder.

Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros.