O Incrível Checklist de Desenruinzamento de Texto
Que lindo, beleza, você teclou o ponto final em sua história, deixou descansar, voltou a ela e… “quem foi que escreveu esse parágrafo todo estranho?”. Foi você, sinto informar. O calor da emoção faz a gente dizer coisas que não gostaria e escrever coisas que gostaria da forma que não gostaríamos. Acontece. Aceita, que dói menos.
Quando eu volto ao texto e encontro uma redação de quinta série no lugar do vencedor do Hugo Awards que tinha deixado descansando, é hora de colocar em ação meu “Incrível Checklist de Desenruinzamento de Texto“. Como o nome indica, é uma (enorme) sequência de procedimentos simples para deixar seu livro, conto ou novela menos ruim.
Vamos a eles:
Ortografia e fluidez do texto
Minha formação e os anos atuando em jornalismo me conduzem a uma visão de que texto bom é texto objetivo. Não é sempre assim, nem há qualquer relação direta entre uma coisa ou outra. Mas, na forma como enxergo um texto, gosto mais dele se passar a mesma mensagem com menos palavras. Por isso, muitos ajustes nessa parte visam retirar essas gorduras. Reforço, essa abordagem não é uma verdade absoluta. Selecione o que fizer sentido para você.
- Checar toda a revisão ortográfica e gramatical usando a ferramenta nativa de seu editor de textos. Não aceite tudo que a ferramenta sugerir, ela também erra. Usar Inteligência Artificial nessa hora não é pecado (mas, no fundo, não precisa).
- Fazer uma busca por todas as ocorrências de “que”. Você ficará em choque com a quantidade de “ques” que conseguimos colocar num parágrafo. Eu tento limar pelo menos 1/3 dos “que”s, ou deixar um por parágrafo, no máximo (Em IVUC, eram 1.889 “que”s no primeiro rascunho, que viraram menos de 1.300 na versão final);
- Procurar e rever os verbos dicendi (diz, falou, respondeu etc). Será que você não consegue trocar por outros mais informativos? Resmungou? Protestou? Sussurrou? Ou, simplesmente, eliminar?
- Outros termos que se multiplicam como gremlins: “Sentia”, “sabia”, “temia”, “senti”. Idem para emoções/sentimentos (feliz, triste, alegre, com raiva etc). busque e veja como DEMONSTRAR o que a personagem sente ou sabe ou teme. Melhor mostrar que dizer. Não diga que uma personagem é [qualidade, defeito ou característica]. Demonstre isso por seus atos e palavras. Se precisar dizer com todas as letras, coloque na boca de algum personagem, ou em algum documento na narrativa, não na voz do narrador;
- Também procure e elimine os verbos no particípio/ voz passiva desnecessários: “havia XXX, tinha XXX”. Quase todos viram pretérito simples, sem prejuízo;
- Procurar pelos advérbios em “-mente”. A maioria pode ser limada sem fazer falta para a história. O Haruki Murakami adora usar esses advérbios, mas ele é o Murakami, pode fazer o que quiser.
- Seu texto é em primeira pessoa? Procure por todos os “eu” e veja como remover ou tornar implícito nos verbos (Eu subi… >>> Subi…);
- Procurar e rever verbos comuns (entrou, abriu, pulou, sentou, disparou, explodiu etc) para confirmar se estão todos no mesmo tempo verbal (às vezes, na empolgação, misturamos pretérito e presente);
- Seus personagens têm nomes estranhos? Cheque se a grafia está correta e se você não confundiu as bolas em algum momento com nomes mais comuns (Luizas virando Lúcias, Hssshuas com quatro “esses” etc).
- Travessão – é uma praga, eu sei. Veja se alguns travessões não viraram bullets no editor. O Word tem uns quinze tipos de travessão. Todos quase iguais. Só um é o travessão de verdade. É tipo uma gincana.
Consistência e coerência
- O tamanho dos capítulos segue uma lógica? Estão coerentes entre si?
- Tem parágrafos grandes demais sem um motivo para isso? Divida em dois.
- A numeração está certa?
- Sua história é dividida em atos? Eles possuem tamanhos adequados?
- Mudou capítulos de lugar? Certifique-se de que as apresentações e descrições estejam na ordem correta.
- Escolha uma personagem de cada vez e releia somente suas falas/diálogos. Leia a história inteira somente pelos diálogos. Estão coerentes e consistentes às personagens? O “tom de voz” de cada uma está consistente e marcado para que o leitor perceba quem está falando só pela forma de falar? (na briga entre diálogos com aspas ou travessões, o uso dos travessões facilita pacas essa revisão.)
- Sua história tem lugares complexos? Revise sentidos e direções. O alto tá sempre no alto, o Leste sempre à Leste? O mesmo vale para rever as horas e datas (as tardes vêm depois das manhãs?).
- Suas personagens têm características físicas marcantes? Elas são respeitadas em toda a narrativa? Ex: o detetive levou um tiro na perna. Se ele correr atrás do vilão em algum ponto, é preciso explicar como ele faz isso com a perna ferida.
- Você tem um gênero, estilo e públicos mais ou menos definidos, certo? Espero que tenha. Releia diagonalmente a história, checando se está coerente com esses elementos. Não dá pra ter uma cena super hot num texto infantojuvenil.
- Releia a história, com calma, em busca de plots esquecidos no meio do caminho, ou de “deus ex-machina”s. Lembre-se da Arma de Chekhov: “Se no primeiro ato você colocar uma pistola na parede, no seguinte ela deve ser disparada. Em outro caso, não coloque ela lá“. Outro ensinamento clássico: se alguém morre de tuberculose ao fim da narrativa, deve começar a tossir bem antes.
- Ninguém é 100% desprovido de preconceitos. O que precisamos é ser 100% conscientes de nossos vieses (in)conscientes e dispostos a rever e melhorar nossa forma de pensar e agir. Reveja seu texto em busca de deslizes. Você foi racista, misógino, capacitista ou qualquer outra forma de preconceito em alguma parte? Às vezes é um adjetivo solto aqui, outras é um diálogo, uma expressão infeliz ao descrever uma cena…
- Uma coisa que demanda tempo mas pode trazer um olhar diferente sobre o próprio texto é lê-lo em voz alta, ou colocar o editor de texto para ler (mais uma tarefa em que as IAs podem ser úteis). Sinta a sonoridade, identifique os parágrafos muito longos ou confusos, cacofonias etc.
Teste final: as perguntas de 1 milhão de dólares
Feito tudo isso (ou antes da revisão, se já estiver bastante confiante na estrutura da história), eu me faço algumas perguntas sobre o texto, e como exercício, sugiro que você se faça também:
- Você está feliz com o texto como um todo?
- Ele entrega aquilo a que se propõe? Se for uma comédia, faz rir? Se for um drama, emociona? Se for hot, ele… esquenta?
- Como leitor, você leria seu próprio texto?
- Seu texto é original? É “seu” texto? Ou soa como outra pessoa escrevendo?
- Olhe para seu livro. Você está disposto a passar os próximos meses contando pro motorista do Uber, para os parentes, a dentista, amigos, seguidores e seguidos que você escreveu essa história e ela precisa ser lida pelas razões A, B, C, D…?
Pronto. Não disse que era fácil? (Não, jamais disse isso.)
Quais seus truques para melhorar os rascunhos de seus livros, contos, noveletas, novelas e afins?
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