Grito de gol
O time avança pelo grande círculo, recua para o volante, dele para o lateral, que penetra no campo ofensivo. Fatia a bola para o ponta direita que invade a área, ataque perigoso, pedala, toca para trás na chegada do camisa 9 que manda um tiro de perna direita… para fora!
Jorge está sentado em sua poltrona preferida, olhos vidrados, de frente para a TV. O brilho verde do gramado em alta definição se reflete na prataria na estante e no copo em que Henrique bebe uma cerveja. Ele arrota. Pousa o copo sobre o tampo de jacarandá do móvel baixo. A borda úmida e gelada deixa uma pegada na madeira. Procura algo na gaveta de cima. Depois na de baixo.
O goleiro ganha tempo para a cobrança do tiro de meta. Estão confortáveis com o empate, denuncia o comentarista. Se classificaram nos pênaltis nas últimas partidas de mata-mata. O arqueiro manda o time se adiantar e dá um chutão. Atacante e zagueiro disputam a bola aérea. Melhor para a defesa, que engata um contra-ataque. Um volante adversário tenta matar a jogada, mas ela prossegue, em toques rápidos e curtos na intermediária. Faltam poucos minutos e a partida segue empatada. Um gol agora seria mortal. Quando ia armar uma enfiada de bola, o meio-campista é desarmado. Lateral.
Henrique aproveita a bola parada é dá mais um gole. Tá quente, uma merda. Abre o zíper da mochila e guarda nela o conteúdo da segunda gaveta. Ainda por cima o copo está sujo. Investiga. É pelo lado de fora do vidro, os dedos carimbados na cerveja. Passa as mãos no braço da poltrona de Jorge. Repete. Seguem sujas, pegajosas. Se levanta e vai ao lavabo. Esfrega com cuidado, deixando o sabão cobrir os dedos fortes e calejados. Arranha as palmas com as unhas roídas para remover as crostas. O sabonete é de lavanda. Cheiro bom. Estapeia de leve a bermuda para se secar.
Na saída do lavabo, Henrique passa pela cozinha e volta com outra cerveja. Deixa a geladeira aberta. Abre a lata. Vira o antigo conteúdo do copo no tapete e se serve. Bebe. Gelada. Geladinha. Com um olho na tevê, contorna a poltrona até a estante com as pratarias. A mensagem de um dos patrocinadores se reflete nas baixelas e taças. Aposte e ganhe.
O time toca a bola na altura do círculo central, esperando uma brecha para a infiltração. É aberta a votação para o craque do jogo. O time adversário joga com as linhas de defesa baixas, encurtando espaços. O ponta-esquerda corre. Narrador e comentarista divergem sobre quem foi o destaque até o momento. Henrique abre uma pequena caixa de madrepérola. Gosta do que vê. Dribla a poltrona e guarda a caixinha na mochila. Lançamento para o ponta. Ele é rápido, pernas finas e longas. Invade a área, toca para o atacante que fuzila o goleiro com um tirambaço. A bola explode no peito do arqueiro e se oferece ao meio-campista, o camisa 10, que se livra da marcação. Ele mete no cantinho e a bola morre no fundo da rede. Gooooooooooool!
É gol! É gol, porra! Na comemoração, Henrique derrama em si mesmo metade do copo de cerveja. É gol, é gol! A torcida vai ao delírio no estádio. A polícia age rápido e impede a invasão do gramado pelo público enlouquecido. É o gol do título. Henrique sorri, a bocarra dos campeões, a camisa enxarcada. A taça está garantida. Na poltrona, a boca escancarada do cadáver de Jorge permanece em silêncio.
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