Algoritmo do fim do mundo
Além de muitos contos, destaco duas leituras de dezembro/2023: o livro de ficção científica Algoritmo, de Maikel Rosa (Saifers) e o romance histórico apocalíptico 999, de Wilson Jr. (Escambau). Narrativas distintas que envolvem nosso medo (e/ou fascínio) pelo desconhecido.
Algoritmo
Algoritmo, de Maikel Rosa (Saifers) é uma história que desafia rótulos e nossos anseios de tentar prever os acontecimentos seguintes. Ao acompanharmos a trajetória de Hélio, que adquire habilidades super-humanas após ser atingido por raios cósmicos, em muitas vezes nos enganamos com o rumo da prosa, que poderia ser uma clássica história da gênese de um super-herói, uma fábula moralista em cima do efeito borboleta ou dos perigos do toque de Midas, ou uma trama SciFi conspiracional.
Temos tudo isso, mas codificado num código mais complexo, e também mais amplo e profundo. Um importante ponto positivo é que acompanhamos esse elemento gigantesco – teria a Humanidade evoluído? Seriam poderes excepcionais de cura e transformação um presente Divino ou do acaso? – pelo ponto de vista de uma pessoa comum e seu cotidiano, com problemas no casamento, com a Justiça, com filhas, com a mãe e outras questões íntimas que o protagonista sequer cogitava.
Fórmulas narrativas não deixam de ser algoritmos que os autores exploram. Trazem certa familiaridade e conforto a quem lê, além de antecipar expectativas. Nesse caso, o código foi quebrado com sucesso.
999
Foi difícil me desapegar das personagens de 999 (Ed. Escambau) após o término da leitura. E olha que romances históricos não estão entre os gêneros que mais leio. Mesmo assim, fui capturado por 999 desde a primeira página. A história, que narra a crescente tensão em um forte no que hoje é Portugal na virada do ano 999 para o ano 1.000, acompanha a contagem regressiva para o temido fim do mundo com a chegada do novo milênio.
Guerra, peste, intolerância, fanatismo religioso e preconceitos se misturam num caldeirão explosivo quando um grupo heterogêneo se vê sitiado dentro da fortaleza dos Alvarez, precisando trabalhar em conjunto pela sobrevivência, ainda que o conceito de sobreviver seja tênue e sujeito às interpretações religiosas. A ignorância, sobretudo de viés religioso/ supersticioso fazem com que a comunidade torne tudo muitíssimo mais difícil, ainda que os perigos enfrentados sejam reais e bastante graves por si só.
A narrativa alterna entre os protagonistas, em linguagem ágil e capítulos curtos e, por vezes, melancólicos. Há um claro rigor histórico – e todas as liberdades criativas estão pontuadas e explicadas em nota após o fim da história. Wilson Jr. é um escritor atento aos detalhes históricos. Ao editar um de meus contos, para a revista Escambanáutica, da qual é editor, me sugeriu uma correção. Eu tinha feito uma personagem dar dois tiros com uma espingarda em minha história fantástica. Wilson notou que, pelo contexto geral das cenas, provavelmente minha aventura se passava em uma época em que ainda só existiam as espingardas de cano (e tiro) único.
Benta, uma jovem que sonha em se tornar uma guerreira, e Ana, uma nórdica pagã de cabelos ruivos, são minhas personagens favoritas deste que é um dos melhores livros que li no ano. Embora não haja uma relação explícita, não pude deixar de fazer um paralelo com a pandemia de Covid-19, em que a ignorância (e sua irmã mais perigosa, a ignorância convicta) tornaram o flagelo do vírus ainda pior do que já seria.
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