Um dia de trabalho (conto)
Beijou a criança na testa e fechou as cortinas para manter a penumbra do quarto. Quase tropeçou em um pato de pelúcia. Pôs a ave vestida de marinheiro de volta à prateleira e saiu, encostando a porta. O cheiro de torradas o guiou até a cozinha. Comeu, despediu-se do hálito de hortelã da esposa, tomou um último gole de café quente enquanto se levantava. Pegou os óculos escuros, o boné de abas largas e, com um segundo beijo, saiu apressado.
Esticou a coluna ao sentar-se na cabine e colocou o boné sobre o banco do carona. Abriu o porta-luvas e sacou de lá um mapa de papel dobrado, com cuidado para não derrubar a pistola prateada. Fechou a portinhola, e desdobrando o mapa sobre o volante, reviu o ponto em que precisaria buscar a mercadoria e até onde deveria seguir. Numa das margens, um número de telefone à caneta e nomes que ele precisaria reconhecer no momento certo.
Virou a chave e o caminhão avançou pelo terreno arenoso por quase quinhentos metros até dobrar em uma igualmente árida estrada de terra. Dirigiu por mais quinze quilômetros até o posto de fiscalização na fronteira. Apoiou os óculos na testa e confirmou atentamente a identificação do oficial. Batia com a anotação no mapa. Do quebra sol no alto da cabine, retirou seu passaporte. Encartados no documento, a papelada da carga que buscaria e um bolo dobrado de dinheiro, amarrado com um elástico.
O oficial conferiu o passaporte, a papelada, guardou as notas e liberou a passagem. Quando já tinha avançado por duas horas no outro país, o telefone tocou. Atendeu. Era a criança, perguntando se o pai chegaria tarde do trabalho. Não, voltaria a tempo de jantarem e de ajudar no trabalho de casa. Beijo, beijo, eu te amo, papai te ama, desligaram. Dirigiu mais meia hora até encostar em frente a um galpão com portões enferrujados.
Pegou a arma e a alojou entre a cintura da calça e a barriga suada do dia quente. Digitou no telefone os números anotados no mapa. Cheguei. Ok. Esperou uns cinco minutos até que o portão velho se abriu em um lamento agudo, puxado por dois homens. Um deles veio até o caminhão e entregou ao motorista um envelope com dinheiro. O restante só do outro lado. Anota o número aí. Anotou. Guardou o dinheiro no porta-luvas, desceu e abriu as portas traseiras da carreta. Tirou do interior um caixote de madeira para servir de escada e saiu do caminho para a pequena multidão que saía cabisbaixa do galpão, evitando encarar os homens. Agarravam-se uns aos outros, às mochilas pesadas, às trouxas de lençóis, ao pó fervente do solo que abandonavam. Deu uma última olhada no breu quente e pegajoso no interior do veículo antes de trancar a porta.
Acenou para os homens, voltou à cabine e acelerou. Precisava descarregar a carga no deserto do outro lado da fronteira a tempo de chegar para o jantar com a família.
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