A longa viagem a um universo adorável
Para vermos com clareza certas questões, precisamos mudar nossas perspectivas. De fora, muitos traços de nossos comportamentos ou socidade se tornam estranhos. Esse é o desafio do antropólogo e do etnógrafo, por exemplo. Colocar-se como estrangeiro em sua própria terra.
Há um atalho, acessível mesmo a quem não se dedica às importantes ciências sociais: a ficção científica. Em Star Trek, a SciFi nos mostra que há razões para acreditar que, sim, superaremos nossas diferenças e vamos explorar a galáxia como desbravadores que somos. Star Wars nos chama a atenção para o mal travestido de herói, para a vilania dos impérios, mesmo quando se autodenominam guerreiros da democracia. E que não há como se exterminar o mal, nem o bem.
Becky Chambers, em “A longa viagem a um pequeno planeta hostil“, livro de estreia da autora e primeiro da série Wayfarers, constroi um universo fascinante, divertido e adorável, que traz comparações e reflexões profundas sobre nossa vida contemporânea, sem descabar em momento algum para pieguice ou palestrinhas.
Não é uma saga sobre guerras, ganância e nossa eterna vocação para a autodestruição (tem isso tudo, mas não como foco), mas uma história pessoal. O mais incrível não é o enredo nem o desenrolar da história em si, mas o que acontece entre cada acontecimento envolvendo a tripulação da Andarilha, uma nave perfuradora de túneis no espaço-tempo, toda remendada, mas cuidada e amada por cada integrante do time.
É na relação entre a tripulação diversa e nos mergulhos em seus sonhos e dores pessoais que a história brilha como uma supernova. A narrativa acontece no espaço, envolve conceitos científicos, apresenta a política e as normais sociais de espécies sentientes e planetas completamente diferentes entre si, tentando construir uma existência harmônica em uma grande Comunidade Galáctica, a CG, mas se destaca na sensibilidade incrível de Becky para mergulhar na alma de cada criaturinha.
Todos os personagens tem papéis relevantes, suas próprias dores e buscas e seus momentos de foco, ápice, redenção ou perda. Não são soldados rasos (em todos os sentidos), numa busca obcecada por uma missão (salvar a galáxia! Encontrar a joia X! etc). São pessoas. De tudo quando é tipo. Humanos, lagartas, répteis com penas, calados, ranzinzas, promísculos, sem noção, apaixonados. Impossível não traçar paralelos com colegas de trabalho.
Chama também atenção o ritmo, que destoa do frenesi do SciFi moderno (sobretudo do cinema). É uma história que dá o tempo que cada personagem pede. E é nesses detalhes, da ambientação, do lar improvável, de uma família improvável, que vamos viajando, cruzando meia galáxia rumo a um planeta perto do núcleo galáctico. Muitos talvez considerem a narrativa lenta, arrastada. Achei na medida, como um chá agradável numa estufa cheia de plantas e insetos no meio de uma nave supostamente industrial.
Que planeta é esse que procuram? Como é? O que tem nele? Pouco importa. “A longa viagem” é um road movie. Só que sem estrada e sem movie. É um Pequena Miss Sunshine sem uma Kombi. É divertido também, respeitando a trilha aberta por Douglas Adams em “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (trilha que eu respeitosamente tento seguir em meu IVUC – A Iniciativa C’ach’atcha). É uma viagem ao coração de cada adorável personagem e, por tabela, ao nosso próprio, nossos preconceitos, nossa predisposição a julgar os outros por nossos filtros culturais. Nossas relações familiares. É um exercício etnográfico.
Pena que demorei tanto para descobrir essa história, daquelas que você termina a leitura marejado, com saudade de Rosemary, Dr.Chef, Kizzy, Jenks, Sissix, Lovey, do capitão Ashby Santoso, Ohan e até de Corby.
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