A vingança de Zé, o humano, contra a máquina inteligente
Zé era o mais velho dos cinco irmãos, nascido num tempo em que a vida ainda não tinha afrouxado as mãos que garguelavam o pescoço da mãe. Não teve muita chance de estudar, e a mão cheia de calos não encaixava bem nos lápis e canetas. Ajudava a mãe a criar os outros filhos, tudo homem, depois que o pai se mandou pro Sul prometendo voltar logo mas nunca mais apareceu de novo. Zé já era grandinho mas magro feito um palito quando a família diminuiu, a mãe tinha que cuidar da casa e dos filhos dos outros para ganhar um dinheiro tão esquálido quanto ele.
Mas vez em quando, bem vez em quando, as coisas melhoram ao invés de piorarem e a vida foi se acertando. Colocaram reboco nas paredes da casa, Zé ajudou a subir as paredes pra fazer mais dois quartos e os irmãos foram pra escola.
Imagina a alegria quando, um a um, chegavam em casa dizendo que tinham conseguido entrar para a faculdade. Zé ia ter quatro irmãos-filhos dotôres, que alegria. Todos estudaram e, pra bancar a passagem de ônibus e a comida, trabalhavam também. Trabalho de estudante de dotô se chama estágio, é mais chique mas paga mal do mesmo jeito.
Quando a empresona chegou na cidade, todo mundo passou água de colônia e colocou a “roupa de arrumar emprego” da família. Era uma só, então só tinha como ter uma entrevista de emprego por dia. Tivesse mais de uma, lascou-se.
E não é que a roupa era porreta? Todos os quatro conseguiram trabalho na empresona. Zé nem tentou, seu recheio não ornava com o terno. Mas ele fazia bicos de limpeza pra ajudar a mãe, que já não dava conta.
Até que a matriarca não aguentou mais. “Tô véia”, percebeu, e tinha razão. O tempo passa em dobro pra nem não orna com terno de entrevista. Então ela foi morar na casa do irmão do meio, num bairro da cidade com calçada, pracinha e até TV com uns cem canais.
O caçula, que não se chamava Júnior porque a mãe não queria nem ouvir o nome do pai, foi o primeiro a ganhar um cargo Sênior na empresona, tinha sala particular e tudo. Foi ele que arrumou o emprego pro Zé na limpeza. “Vou acionar meus contatos”, falou o caçula depois de um almoço de família na casa do irmão do meio, tomando um energético enquanto Zé palitava os dentes e a mãe lavava a louça.
Então Zé ganhou um crachá com a foto dele sorrindo muito feliz, os buracos entre os dentes deixando ver o foguinho de esperança que tinha lá dentro. Ele havia conquistado um lugar na empresona sem precisar ornar com o terno, então ainda tinha chance de virar dotô sem ter que passar pela faculdade e o estágio que é chique mas paga pouco.
Limpava com muito esmero, até ficar tudo brilhando e sem um fio de cabelo no chão. Assim, depois de alguns anos tirando pó de mesas e aceitando caronas dos irmãos até a rodoviária onde pegaria duas conduções pra casa (a tal que ele ajudou a rebocar e onde hoje vive sozinho), uma caixona começou a mudar tudo.
O caçula explicou que era uma caixa inteligente, com uma inteligência muito sábia e esperta, só que artificial. Não servia pra coisas de inteligência assim do mundão, tipo cravar o número que vai dar no jogo do bicho, mas resolvia um monte de problema que Zé nem sabia que existiam.
A caixa ia ficar dentro da empresa porque o dono não confia nesse negócio de nuvem, computação em nuvem. Zé achou certíssima a implicância do dono. Imagina só, pegar os documento tudo da empresa e colocar na nuvem. Aí, quando o céu fecha, preto, aquelas nuvenzonas pesadas do fim de tarde de verão, no primeiro raio que pipocar vai chover documento pra tudo quanto é lado. Cabum!, e lá vai um contrato. Bum!, e se pirulita o manual pra fazer algum treco secreto lá deles.
Zé achou ruim essa ideia de guardar as coisas importantes na nuvem e fez um sorriso de “o dotô tá mais que certíssimo” quando cruzou com o dono no corredor, o funcionário tirando a vassoura do caminho pra, bate na madeira paidocéu, não varrer o dotô pra longe.
A caixona era preta, com uns vidros escuros e muitas luzes piscantes. Era tipo uma geladeira, mas esquentava muito, então ficava numa sala só dela, igual o irmão caçula que não se chama Júnior porque o pai não presta, e num frio que só. O dono mandou instalar um ar-condicionado só pra caixona que era inteligente e pensava sozinha num monte de coisas, menos no jogo do bicho.
Deu umas três semanas e o primeiro irmão mandou mensagem no grupo da família informando que “estava no mercado e buscava oportunidades de recolocação”. Zé pensou em pedir pra ele não esquecer de comprar no mercado algumas coisas que a mãe gostava, mas pelos áudios dos irmãos viu que não era isso. Tinha sido mandado embora.
A cada semana era outro irmão que perdia o emprego. A caixona estava fazendo o trabalho deles, então os funcionários não eram mais necessários. O último a levar o pé na bunda foi o caçula, porque deve dar mais trabalho se livrar de gente que tem uma sala só pra ela. A caixona roubou o emprego dos quatro irmãos do Zé.
Na escala de trabalho, cabia justamente ao Zé limpar a sala da caixona. Ele olhava pra ela, cara de zangado. “Você fez uma coisa muito feia”, dizia pra safada da máquina. A caixona nunca respondia, seguia piscando suas luzes. Olhou bem pra caixa. Notou que ela jamais havia saído do lugar. Não tinha braços nem buraco onde encaixar uma vassoura. Pelo menos o emprego dele parecia seguro, mas não era justo o que ela fez com os quatro irmãos que Zé prometeu cuidar pra mãe poder cuidar do filho dos outros depois que o pai se mandou.
Zé precisava fazer alguma coisa.
Foi quando tomou coragem e se aproximou da caixona. Esperou a câmera que fica girando de um lado pro outro igual vizinho fofoqueiro que não tem mais o que fazer ficar fofocando o outro lado da sala e cutucou a ponta do fio que liga a caixona à tomada. Deu aquele totozinho sutil, suficiente para apagar todas as luzes e silenciar os zumbidos. Mas, para qualquer um que olhasse, a tomada estaria encaixada certinha no lugar.
Saiu da sala se sentindo vingado, deixando para trás uma grande caixa preta de metal e vidro, silenciosa, apagada e incapaz de demonstrar qualquer inteligência. Cedo ou tarde alguém ia descobrir e recolocar a tomada no lugar, mas o importante é que agora a tal inteligência ia ter que pensar duas vezes antes de bulir com alguém com uma vassoura na mão e que já acertou uma pá de números no jogo do bicho.
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