Flores sobre telas
Esquadrinhou em choque cada milímetro do retângulo preto que jazia sem vida em suas mãos. Apertou até botões que nem imaginava que o aparelho trazia incrustados a sua carcaça metálica. Pressionou, deu dois toques, apertou e segurou. Combinou volume e desligar. Volume com volume.
Superada a fase de negação, pôde avançar com seu luto até reconhecer que o telefone celular estava definitivamente morto. Não era uma simples falta de bateria. Estava carregada quando saiu do escritório — passara a manhã toda conectada ao computador, como um paciente alimentado pelo soro que pinga lentamente. Além disso, jamais saía sem uma bateria portátil no bolso, exatamente para evitar situações trágicas como aquela.
Refletido no vidro protegido por uma película plástica, o rosto expressava um pânico desconcertado e caricato. Num movimento que enfrentou inicial resistência dos músculos do pescoço, jogou os ombros para trás e olhou ao redor. Era a mesma calçada repleta de pessoas ocupadas em seus telefones andando de um lado para o outro, desviando dos canteiros de árvores mirradas com a precisão obtida por anos de caminhadas às cegas.
Seguiu parado ali no meio da calçada de forma antinatural, forçando o fluxo de pessoas a contorná-lo como uma rocha posicionada no meio de um rio caudaloso pela indisciplina da natureza. O centro urbano no horário de almoço é lugar para navegadores experientes, capazes de fluir por entre camelôs, pedintes e outros obstáculos com maestria, sem precisar desviar os olhos das sereias virtuais que tanto os atraem.
Mas ele foi jogado ao mar, forçado a caminhar sobre a prancha e a encarar de frente os tubarões. Sua sereia lhe fora roubada, e agora estava sozinho, nu, perdido.
Para onde estava indo mesmo?
A resposta veio do estômago, na forma de um ronco, aflito por perder aquilo que buscava. Estava indo até seu restaurante preferido, pedir um suco e um sanduíche como almoço. Sentiu o sol queimando-lhe a nuca e os pulsos expostos pela manga dobrada da camisa social. Era uma sensação boa, ao menos naquele dia de calor mais humano.
Guardou o retângulo defunto no bolso e retomou sua viagem, navegando sem jeito, desprovido de sua bússola. Era como ter que fazer o caminho do quarto para o banheiro, que em geral se fazia no escuro ou dormindo de pé, contando cada ladrilho ou tábua do piso.
Não tinha dado dez passos quando parou novamente. Logo adiante, brotava do asfalto uma flor enorme. Não estava num dos canteiros de árvores mirradas dos quais os pedestres desviavam sem pagar o mínimo tributo em forma de atenção, plantas que existem como meros obstáculos ao fluxo das águas. Brotava do concreto da calçada, de uma pequena rachadura e se erguia com um caule único e grosso até a altura de seu pescoço. Sobre o caule, um bulbo vermelho poderoso, quase do tamanho de uma cabeça humana, resplandecia sobre o sol. Parecia uma rosa. Não era uma rosa, exatamente, mas parecia.
A flor o impactou mais do que poderia esperar. Tinha certeza de jamais tê-la visto ali. Congelado no tempo, encarou a flor, que resplandecia. Parecia aumentada, como se uma gigantesca mão invisível tivesse descido sabe-se lá de onde e, fazendo um gesto de pinça em pleno ar, tivesse dado um zoom e ampliado aquela única e solitária flor. Não tinha aroma. O ar continuava com cheiro de óleo queimado. Mas era linda. Nunca tinha visto nada parecido.
Ainda desconcertado, notou como os pedestres seguiam suas correntezas, fisgados e rebocados por suas telas. Riu quando percebeu que a analogia era bem precisa. Não pareciam andar carregando seus celulares, lembravam mais corpos sendo tragados por um redemoinho virtual que constantemente se afastava, dentro dos retângulos luminosos.
Todos ignoravam a rosa. Teve vontade de gritar “ei, vejam, uma flor gigante!”, mas ninguém o ouviria por conta dos fones. Contornou a flor, tocou-a. Era real, definitivamente. O toque era sedoso, como se fosse feita do mais fino e frágil dos tecidos. Olhando de perto, era translúcida, adquirindo o aspecto vibrante quando as camadas de cada pétala se somavam. Jamais tinha visto ou tocado algo tão belo, frágil e poderoso.
Foi durante o movimento para apreciar a flor por todos os ângulos que notou a pequena barraca. Estava vazia, apenas por conta da pequena placa pintada à mão sobre uma tábua de madeira que poderia se dizer que se tratava de uma floricultura. Atrás do balcão deserto estava uma mulher, braços roliços, vestido branco de bolinhas. Tinha cabelo curto e um ar sereno e sem pressa. A mulher olhava para ele e fazia movimentos de aprovação com a cabeça. “Ela vê a flor”, pensou.
Olhando para a mulher, apontou para a rosa. Ela fez que sim com a cabeça. “Sim, é real”, dizia sem pronunciar uma palavra sequer. Lembrado novamente pelo estômago que o tempo passava, despediu-se da flor com um carinho e seguiu para o restaurante.
Foi um almoço estranho, sem o celular como companhia. Dedicou-se a olhar para as outras pessoas, todas absortas em suas telas, ou emulando ter conversas com outros humanos enquanto, na verdade, cediam aos caprichos de seus redemoinhos.
Ao voltar, sua flor seguia firme, como um ativista protestando contra o cinza das ruas e o azul das telas. Durante toda a tarde, não conseguiu deixar de pensar na flor. Mas isso terminou à noite, dedicada a configurar o novo celular comprado em uma loja da estação de Metrô a caminho de casa.
No dia seguinte, contou os minutos até o meio-dia e seu reencontro com a flor. Precisava registrá-la em uma bela foto e um post inspirador. Quando estava chegando ao lugar do milagre da natureza, guardou o celular no bolso, ignorando os constantes avisos que chegavam na forma de pequenas vibrações. Mas não havia nada ali, além das correntes humanas desviando de árvores mirradas em seus canteiros. Nem sinal da flor ou da vendedora e sua barraca vazia.
Foi um baque. O momento mais vivo de seu dia havia sido arrancado, desaparecera. Todas as horas restantes perderam o brilho, os likes já não se curtiam, o deslizar infinito na tela parecia um gesto mecânico. Algum encanto se quebrara e o que antes reluzia como joia agora não passava de vidro barato.
Dormiu mal e, ao acordar, notou que não tinha se lembrado de colocar o celular para carregar na véspera. Para sua própria surpresa, deixou o retângulo inerte sobre a cama e saiu sem ele. A sensação era estranha. De liberdade, por um lado, mas angustiante por outro.
Percebeu as pessoas no metrô. Construiu, para si mesmo, histórias de vida de cada companheiro de vagão. Nomes, passados, futuros, angústias e sonhos. No trabalho, finalizou as demandas da manhã antes da hora e se permitiu sair um pouco mais cedo para o almoço e, que luxo, comeria comida de verdade e não apenas um rápido sanduíche.
Fazendo seu caminho de sempre, avistou primeiro a barraca e a moça vendedora de flores. O coração disparou, palpitante. Apertou o passo, nadando contra a corrente humana, até ver o vermelho intenso de sua amada flor se insinuando por entre as brechas de cabeças e telas que avançavam inclementes e indiferentes a sua beleza.
Parou bem perto da flor, ignorando os inevitáveis esbarrões de pessoas que tiravam os olhos do celular para tentar entender, assustados, em que tinham colidido. A moça da barraca sorria, visivelmente feliz. Ninguém sequer olhava para ela, quanto mais parar. O que seria inútil, já que não havia qualquer flor à venda.
No dia seguinte, conseguiu convencer uma colega do escritório a fazer uma experiência. Ela precisaria desligar o celular e sair sem ele para o almoço, acompanhando-o até a calçada de sua flor. Foi árduo, mas conseguiu fazer com que a amiga se despisse de sua tela e o acompanhasse em uma expedição analógica rio acima.
Sua hipótese estava certa, e duas lindas flores os aguardavam. Ao lado de sua flor vermelha, havia outra, da altura de sua amiga, uns dez centímetros mais baixa que ele. Parecia ser da mesma espécie exótica, mas em um tom púrpura, arroxeado.
Ela não acreditou no que via, e tocou a flor com cuidado. Era tão frágil e sedosa quanto a original. Na barraca da florista, uma pequena flor púrpura estava à venda no tablado de madeira rústica. Ele entendeu rapidamente o que era preciso ser feito.
Os dias seguintes foram de intenso convencimento no escritório, no café que todos frequentavam pelo Wi-Fi gratuito e nos restaurantes. Mais e mais pessoas aceitavam experimentar um dia amputados de seus telefones. E mais flores brotavam, de todas as cores e tamanhos.
A correnteza humana fluía mais devagar. Os semeadores quebravam os fluxos para admirar o espetáculo multicolorido. Ao desacelerar para observar os infinitos matizes, forçavam os celulares e seus donos a reduzir a marcha também. Curiosos, perguntavam o que acontecia. E mais flores brotavam.
Em um mês, calçadas e ruas eram um imenso campo florido. A barraca da vendedora tinha uma flor para cada pessoa liberta das luzes, tal qual mariposas que descobrem a falsidade dos sóis aos quais se atraíam em plena noite.
Era um espetáculo como jamais visto. Mais alguns meses se passaram, mais flores brotaram e menos as pessoas se lembravam como elas tinham surgido. Até que alguém vocalizou uma ideia perigosa mas inevitável, contagiosa como um bocejo: “Gente, que lugar lindo! Vamos tirar uma selfie?”
Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.
Join the discussion