Trans-Europe Express
— Como assim não é “música de verdade”?
Indignado, Arthur interrompeu o aperto em um parafuso na parte externa da estação espacial para esperar uma retratação de Dito, que estava soldando cabos de uma nova antena de comunicação em um ponto uns cinco metros mais adiante no corpo do módulo Europa III.
— Não sendo — respondeu Dito. — Música precisa ser tocada, cantada. O que eles faziam era apenas apertar o play em uma gravação.
A Terra girava rápida sob a estação espacial, continentes iluminados deslizando como se estivessem se locomovendo sobre trilhos. Era uma noite sem nuvens sobre a Europa. E uma manhã nublada na América.
Em silêncio, Arthur e Dito seguiam com atividades extra-veiculares para instalar uma nova antena de comunicação em substituição à antiga, que tinha sido danificada por micrometeoritos. O incidente deixou a estação praticamente sem comunicação com o planeta abaixo deles, que completava uma volta a cada 90 minutos.
— Se tem ritmo, e emociona, é música. Se você pesquisar nos bancos de dados, vai estar lá — Arthur ficou alguns segundos em silêncio, como se estivesse tentando se lembrar ou localizar a informação — “Kraftwerk foi um influente grupo musical alemão de música eletrônica dos séculos XX e XXI. O grupo foi formado por Ralf Hütter e Florian Schneider em 1970, em Düsseldorf e liderado por ambos até a saída de Schneider, em 2008.” Cheque-mate, caro Dito. Kraftwerk fazia música.
Dito terminou de soldar o terceiro de cinco fios. Usando jatos de ar, impulsionou-se, livre no espaço, em direção à outra parte da fuselagem cilíndrica, rumo à base da antena, onde faria testes para se certificar que os cabos foram conectados corretamente.
— E aí? Não vai dizer nada, nem um “Você tinha razão, Arthur, jamais duvidarei de seu conhecimento sobre a arte da Terra novamente?” — Arthur deixou escapar um dos parafusos que deveria ter afixado contra uma placa extra de captação de luz solar, dedicada a fornecer energia à nova antena. Com os jatos, afastou-se alguns metros da estação, até capturar a pequena porca que sobrevoava velozmente a Andaluzia.
Dito finalmente respondeu, depois de concluir os testes no primeiro dos fios.
— Sim. Tenho algo a dizer. Vou dizer que você está me atrasando. E podemos voltar a conversar no dia em que o Kraftwerk conseguir improvisar novos arranjos ao vivo. Sua comparação de Kraftwerk a músicos como Tom Jobim, Paul McCartney ou Beethoven é uma ofensa à arte humana, caro Arthur.
Dito usou novamente os jatos para voltar à outra ponta dos cabos. Ao chegar lá, notou que não registrou no log da missão qual dos fios havia verificado na base da antena.
— Arthur, você tem aí o registro de qual fio eu testei?
— Não, por que teria? Sem a antena principal eu não tenho como ver seu log pelo Computador Central.
— Não falei que esse papo de Kraftwerk estava me atrasando? Vou ter que refazer o teste — Dito fez um ruído irritado que forçou Arthur a reduzir temporariamente a sensibilidade de seus receptores. Então religou seu jato de navegação e flutuou novamente até a base da antena, que nesse momento atravessava rápida e suavemente fazendas e florestas do Leste europeu.
— Arthur terminou de fixar o parafuso que tinha escapado para o espaço. Consultou seus bancos de memória e colocou Die Roboter, sua favorita, para tocar. Em solidariedade ao irritado companheiro de trabalho espacial, não compartilhou o som pelo comunicador.
Enquanto isso, dentro da estação, os três astronautas que tripulavam a estrutura discutiam, intrigados, por que raios os dois robôs estavam demorando tanto para concluir o trabalho do lado de fora do módulo.
Este conto faz parte da coletânea Caixa de Futuros, disponível na Amazon.
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