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Dossiê Futuro – O futuro das conversações

Written by

Roberto Cassano

Pedro sacou seu smartphone, procurou no Google por uma foto bacana para o Dia Internacional da Mulher — alguma com flores, colorida. Abriu o Twitter, postou a foto e caprichou no post. Acabou saindo algo como “Sem as mulheres não haveriam os homens! Parabéns a quem deixa o mundo mais belo”. Assim, isoladamente, é apenas mais uma pessoa sem inspiração. Mas profissionais como Raquel Recuero, jornalista, professora e pesquisadora da Universidade Católica de Pelotas, visualizam um quadro muito mais amplo e rico.

Raquel é um dos expoentes no Brasil de um ofício recente, o estudo do discurso, do conteúdo e das conexões nas redes sociais. Ela e sua equipe atuam como um observatório de conversações, analisando o fluxo das informações, de influência e de poder no meio digital. Foi o que ela fez no último Dia Internacional da Mulher, estudando postagens sobre o tema no Twitter, em todo o mundo, em vários idiomas. “O termo que mais aparece junto à mulher, e em igual importância, é ‘homem’. E os adjetivos empregados com relação à mulher eram todos ligados à beleza. E isso em todos os idiomas. Esperávamos resultados diferentes entre culturas e idiomas distintos, mas todos se comportaram da mesma maneira”, observa.

Descobrir o que isso significa, como isso espelha conceitos e preconceitos da sociedade, se denota o surgimento de novos atores ou de mudanças no tecido da sociedade… esse é o trabalho que se torna possível com a profusão das redes sociais e sua memória infinita. Todas as pessoas que utilizam o meio digital deixam rastros. Alguns são visíveis apenas aos administradores das ferramentas que usam — nossos rastros são o pagamento pelos serviços gratuitos. Outros podem ser captados e aplicados para o olhar científico. O mundo inteiro se torna um gigantesco “focus group”, a técnica tradicionalmente utilizada para se extrair insights de comportamento e percepção do público.

Análise de Raquel Recuero sobre os usos da hashtag #vemprarua em 20 de junho de 2013. O anel externo representa a massa de pessoas usando a hashtag sem fazer referências a outros usuários. No centro, grupos dispersos revelam a descentralização do movimento

A voz das redes é a voz de Deus?

A disciplina não é isenta de críticas ou questionamentos. A mais incisiva é sobre sua real representatividade. Na visão de Raquel — e eu concordo com esse olhar — tudo depende de fazermos as perguntas corretas. “A internet não é representativa de toda a sociedade, não é de nenhuma. Mas há grupos minoritários que estão presentes. Em termos de esfera pública, ela representa muito. Muitos dos discursos que reverberam na sociedade também reverberam na internet. Dependendo da classe social e do público que se quer estudar, eles estão sim representados na internet.

Recuero cita, como exemplo, os protestos de 2013. “As pessoas usaram ativamente as redes sociais para narrar os protestos. Se nem todos usaram, uma grande quantidade de pessoas recorreu às mídias sociais. Então os dados que estão lá são úteis para se entender esses protestos”, explica.

Se há grupos mais ou menos representados na internet, isso vale também para seus líderes, seus influenciadores. “Em termos de movimentos sociais, temos observado que a internet tem uma influência muito grande e que os influenciadores são pessoas que já tem caráter ativista, que já possuem redes de replicadores, que já tem condições para divulgação eficiente”, relata.

Post do tumblr http://coxinhas2petralha.tumblr.com , que brinca com a ruptura de amizades nas redes sociais desde as eleições de 2014

Tecido social ou retalho social?

Influência passada não é garantia de influência futura. Especialmente porque o tecido social é dinâmico e instável. E, desde 2014, vem se rasgando. “A gente viu durante as eleições uma radicalização maior nas posições, uma oposição de ideias muito grande. Isso gera ruptura na rede. Como as pessoas foram muito agressivas quando colocaram suas opiniões, quem antes seguia conhecidos com opiniões diferentes, desfez os laços.

A raiz do problema está na própria rede social, e em uma carência coletiva de bom senso. As pessoas tendem a se aproximar de outras com quem elas concordem, buscam uma afinidade intelectual. Nas conversações cotidianas, elas escolhem os tópicos onde há concordância. “Não vou falar sobre Aécio com um sujeito que é Dilma e vice-versa”, exemplifica. “Só que na conversação convencional, quando falamos assuntos delicados, vamos observando a reação do outro, e é nessa observação que vamos modulando o que dizemos.”

A mídia social provoca dois fenômenos que mudam a regra do jogo social:

  1. A aproximação de grupos que são diferentes, de grupos que normalmente não convivem nos mesmos espaços, que não concordam com as mesmas coisas. Estamos muito mais conectados digitalmente do que na vida offline.
  2. Ao mesmo tempo, a gente interage com uma tela, não vemos o interlocutor. Falamos no Facebook para uma audiência imaginária, e essa audiência invisível é muito imaginada como uma audiência que é majoritariamente concordante.

“O que acontece quando estou falando com essa audiência imaginária é que eu tendo a ser muito mais incisivo e muitas vezes mais agressivo com o discordante, só que não é assim. A audiência invisível tem muita gente que é discordante”, explica. “As eleições foram 51% a 49%. Estatisticamente, a chance é a de que metade dos meus amigos no Facebook não concordem comigo. E as pessoas não se dão conta disso, elas imaginam aquela audiência concordante e se comportam como se estivem na mesa de bar só com os amigos”.

Não é difícil prever que isso não vai terminar bem. “Temos visto esse conflito nas relações, e isso parece estar silenciando as pessoas, que se calam para evitar o atrito. E isso é ruim, é antidemocrático. Faz com que a gente se feche em guetos de opinião onde todos concordem e ninguém discorde. É a espiral do silêncio”, alerta.

A espiral do silêncio

A espiral do silêncio, provocada pelos conflitos com as pessoas discordantes está ligada ao “efeito bolha”, onde ao jogo social de exclusão dos discordantes se somam os algoritmos, que nos oferecem cada vez mais apenas aqueles conteúdos com que interagimos mais. Passamos a ter contato somente com os autores e conteúdos que concordam conosco, e nos fechamos em pequenas seitas virtuais.

Na conversa com Raquel, noto que a reclusão nos guetos digitais pode não ser somente para evitar o conflito, mas para buscar o aplauso, na construção de uma claquete concordante que nos inundará de likes e RTs por mais que estejamos falando uma bobagem. “Essa busca pela claquete reduz sua esfera de influência, porque vai formando guetos de pessoas que pensam igual e que não falam com outros guetos. Isso vai separando a rede. E dificulta a formação de opinião, de influência, de tudo”. Os guetos são uma ameaça à rede. E como vimos nas conversas com Carlos Nepomuceno, a mentalidade fundamentalista — necessariamente consolidada em guetos ideológicos — é uma ameaça à sociedade como um todo.

A verdade é que ninguém é uma pessoa só, consistente, monolítica e tediosa. Temos nossos interesses, nossos momentos. E uma parte de nós que faz eco com um grupo, pode soar totalmente estranho ou inadequado para outro. Em que sentido a necessidade de representar todos os “eus” em um único perfil não contribui como estopim dos conflitos ou da busca por micro-redes isoladas?

“Isso tem acontecido. Sobretudo nos mais jovens, há uma tendência a se separar esses espaços. Facebook é o lugar X, Whatsapp o espaço Y… ter uma rede social social, uma profissional, uma pra família. É muito difícil interagir numa rede única. Esse colapso dos contextos em um mesmo espaço é ruim, incômodo. Os adolescentes vivem isso há um tempo”, aponta.

Análise da cobertura no Twitter do acidente com a aeronave da Germanwings, em março de 2015.

A Grande Muralha do Eu

Mas a fragmentação da rede não é o maior problema dos cientistas de dados e analistas de comportamento e conversações online. “Lidar com os dados é extremamente complicado, sobretudo pelos desafios éticos, mas também pelas camadas de privacidade nas ferramentas que vão fechando as pessoas”, desabafa.

Quando o Twitter era a plataforma reinante, predominava sua natureza aberta — hoje é possível vasculhar praticamente todas as bilhões de postagens na ferramenta desde sua criação, em 2006. Com a explosão do Facebook, a regra do jogo mudou. As pessoas — para fugir de trolls e dos conflitos desnecessários com seus amigos — começam a aprender a restringir os alcances de suas publicações e a definir regras mais rígidas de privacidade. E o Facebook, como empresa, não se mostra disposto a compartilhar seu grande tesouro, que é o conhecimento íntimo de cada usuário.

“Vejo as pessoas fechando mais e mais seus grupos, a queda imensa do conteúdo vindo de fanpages, de grupos. A circulação da informação no Facebook está muito dificultada, cada vez mais nichada, e com menos informação circulando. No Twitter é muito mais aberta. Então, se ela quer uma informação, ela vai pro Twitter, não vai pro Facebook.

O grupo de pesquisas Pew Research Center publicou um artigo onde compartilha as gambiarras a que teve que recorrer para conseguir utilizar o Facebook de maneira satisfatória em uma pesquisa.

“Gosto muito do Twitter como ferramenta, uso bastante. Ele realmente não é representativo da sociedade geral, mas é representativo de outras coisas. A mídia está lá. Existem movimentos que começam no Twitter e vão para outros lugares. Agora, se estou querendo estudar meme, talvez tenha que voltar ao Tumblr ou ao Reddit, onde ainda nascem os memes”, exemplifica Raquel. “Então não é um lugar único, é um ecossistema de coisas que representam a mídia social hoje. E esse ecossistema é que precisa ser entendido, como essas coisas se relacionam. As pessoas não estão só no Facebook, elas estão em outras ferramentas também.

E esse ecossistema influi a boa e velha grande mídia, os veículos offline. “Acompanhamos os candidatos nos debates. Nos primeiros encontros, em que surgem as figuras de Luciana Genro, Eduardo Jorge e até mesmo do Levy Fidelix, eles passaram a ser falados nas redes sociais não apenas durante os debates, mas isso se sustentou depois.” A TV alimenta as redes sociais que vão realimentar a TV.

Foto: Matthew Roth

E o que a TV vai falar disso tudo daqui há alguns anos? O que as redes sociais fizeram com nossas relações, nossas conversações? “Mudou profundamente nossa forma de se comunicar, nossas relações. Somos muito mais biográficos e narrativos. As pessoas narram suas existências por meio de imagens. As fotografias que eram tão simbólicas, raras, únicas, se tornaram descartáveis. É uma modificação muito grande. Por outro lado, as pessoas tem sofrido as consequências dessas narrativas, sobretudo os jovens.

A internet não esquece

Um passo em falso nessa autobiografia em tempo real e você pode cair num furacão de cyberbullying ou se colocar em uma encrenca. Afinal, a internet não perdoa. “E a internet não esquece, tem essa potência de memória, uma memória coletiva.” Se as ferramentas não se fecharem elas próprias em guetos, como o próprio Facebook se comporta, teremos um retrato rico e inédito dos diálogos e sentimentos cotidianos de populações inteiras para serem estudados em sua evolução ao longo dos anos, dos dias, dos meses ou dos minutos decisivos de um jogo de futebol.

Não temos mais conversações. Temos discursos, temos biografias, temos registros, temos dados. Ler tudo isso é a chave para se entender, com uma intimidade nunca imaginada, o coração de nossas sociedades.

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