Inteligência Artificial: todo upgrade tem seu preço
Lá no século passado, além de internautas, nós, humanos que usávamos a internet, também éramos conhecidos como websurfers… as pessoas “surfavam na internet”, numa analogia ao fato de irmos deslizando de um site para o outro seguindo ondas de hyperlinks. Levou uns 5 a 6 anos para que o oceano digital que estava se formando se caracterizasse como uma grande onda, com o hype contaminando imprensa, investidores e, sempre, os “espertalhões”. Foi a bolha pontocom que estourou em 2001.
A vida é em ciclos, os hypes também. A coisa de fato promete, suas expectativas são super-uber-exageradas, muita gente ganha dinheiro, mais gente ainda coloca dinheiro no negócio, ele implode, os malandros pulam do barco e os demais ficam a ver navios. É o jogo, infelizmente (mas não inevitavelmente, papo pra outro post).
Como no mar, às vezes as ondas se embaralham, o mar fica mexido, e aquela formação que prometia se esculhamba em espuma. O Metaverso foi uma dessas ondas atropeladas. Ele ainda pode retomar, com menos hype e mais conteúdo (no famoso “platô da produtividade” do Hype Cycle do Gartner Group). O atropelador? Ela, claro, a Inteligência Artificial, tema de 13 em cada 10 palestras, reuniões e conversas sobre negócios e/ou tecnologia.
O Hype é altíssimo, não sem total razão. Ao contrário do Metaverso, o impacto da IA será avassalador e disseminado, pro bem e pro mal. A razão? É claro que desconheço todas, bem como ignoro o que de fato vai acontecer no futuro, mas uma causa é clara: as pessoas.
Regra de ouro: não tire as pessoas da equação. Elas que pagam as contas e ligam os supercomputadores nas tomadas, em última instância. As pessoas, em geral, não estão sedentas por experiências virtuais em outro mundo. Mas quase ninguém vai desperdiçar a chance de poupar energia, ganhar uma dopamina extra, ficar mais inteligente e sagaz e fazer as coisas que faz melhor e mais rápido neste bom e velho planetinha mesmo. É biológico.
Some-se outro fator, esse recente e cultural: A gente olha para o mundo e, ignorando nossos incríveis avanços, vemos as coisas terríveis que o Ser Humano fez com o planeta. Errar é Humano. E o que não é humano? É perfeito, como as máquinas. Elas são as novas divindades, oráculos, a quem fazemos perguntas e de onde surgem respostas. Quem não quer falar com Deus (e continuar vivo)?
Caminhamos para a era conversacional, em que migraremos de nosso modelo caçador-coletor de informações (ou mesmo dos papéis de agricultores, semeando e gerando conhecimento), para um modelo dialógico. É a vitória do storytelling, se quiser ser otimista. Em teoria, não é mais preciso organizar conhecimento, construir teses, narrativas, elaborar modelos de leitura e interpretação do mundo. Basta saber perguntar e uma voz virá (do além, da Alexa, do Google, do chatGPT, do microondas, do carro, de algum lugar).
Ah, mas que papo pessimista e determinista! Sim, essa é uma conjectura, não uma profecia. A gente pode não querer. Não imagino uma IA com uma arma apontada para nossa cabeça nos proibindo de pensar ou escrever. Mas a gente fez isso antes. Desistimos de dominar a arte do cálculo para usar calculadoras e afins. Desistimos de memorizar caminhos para usar o Google Maps. Abrimos mão de memorizar telefones e números. Como, antes, desistimos de andar para usar carros, de plantar para comprar pronto, de decorar as fábulas para lê-las em livros.
Nossa história tem sido uma constante terceirização do ato de viver para nossas ferramentas. Tecnologia é isso. Ampliar o homem por meio de recursos externos. Uma ampliação bidirecional. Alcançamos mais longe com as ferramentas, mas elas também invadem o que antes poderia ser definido como o “eu”.
Sobrevivemos até aqui. Ganhamos e conquistamos muito. As tecnologias não são parasitas, somos um ecossistema ciborgue. Mas há preços. Cientistas investigam como nosso estilo de vida – sobretudo ligado ao sedentarismo e consumo exagerado de calorias – acelera o envelhecimento cerebral e causa doenças cardiovasculares. Povos indígenas padecem de males mais facilmente evitáveis num centro urbano, mas suas mentes e corpos envelhecem com mais qualidade que os nossos.
Nossa terceirização do físico gerou benefícios e males também. Tudo tem dois lados. Não advogo uma postura ludita. Assim como o carro permite a nosso corpo chegar muito mais longe e mais rápido (a de se questionar pra quê tanta pressa), a IA permitirá que nossa mente vá mais longe e mais rápido, como uma copilota, como uma expansão cognitiva, como uma nova forma de interagir com o mundo, com a avassaladora massa de dados e informações (que a gente mesmo criou) e que nos oprimem e sufocam.
A IA vem resolver vários problemas que nós mesmos criamos. E outros que sempre existiram. E criar mais um tanto deles. Como todo presente da divindade humana, não é gratuito. Os preços virão em diferentes embrulhos, flutuando no mar: extinção de empregos, explosão de conteúdos falsos, errados (hoje, as IAs são especialistas em falar coisas erradas com propriedade, o que é um perigo) ou de baixa qualidade tornando cada vez mais inóspita a relação sinal-ruído no mundo digital, novos crimes e golpes como os utilizando deep fakes, impactos cognitivos profundos, empobrecimento de nossa capacidade analítica, agravamento das desigualdades econômicas e sociais.
Já se fala bastante das soft skills como as disciplinas do futuro. As hard skills, o conhecimento técnico em si, cedo ou tarde será emulado. Mas o sentir, a empatia, a liderança, o trabalho em grupo, esse ainda é um bastião humano. Como na Casa Tomada de Cortázar, vamos recuando cômodo por cômodo.
Mas, como diriam os Borgs, resistir é inútil (regular é fundamental). O presente está dado, e aceito. Precisamos controlar o deslumbre que vem com o hype, deixar claro quem manda em quem e explorar esse mundo novo. Se eu estou empolgado com IA? Claro. Sou humano. E ciborgue. Quem não gosta de um upgrade? As possibilidades são inúmeras. Um carro superou o humano em velocidade. Um guindaste superou o humano em erguer pesos. A IA vai superar o humano em processar dados, em compilar informações, em criar tediosos PPTs corporativos, em fazer atas de reuniões, em criar imagens de qualidade fotográfica, em analisar padrões? Sim. Da mesma forma que sobrevivemos ao carro e ao guindaste, sobreviveremos à IA. Inalterados? Duvido muito. O que seremos? Só indo além de surfar a onda e mergulhando pra descobrir.