Perda de consciência nacional
Escrevo essas palavras no Dia da Consciência Negra. E ainda na rebordosa da divulgação da edição 2024 da pesquisa Retratos da Leitura, que revela que somos um país que lê cada vez menos. A Bíblia é o livro mais lido, como sempre. Mas há uma queda significativa na leitura de Infantis, histórias em quadrinhos, poesia (o percentual é quase a metade que era em 2011) e de romances (uma queda de 31% em 2011 até 20% agora). Unindo a efeméride de hoje com o resultado há um elemento crucial para nossa viabilidade como sociedade: empatia.
É difícil que causas nobres como a luta dos povos negros e originários, da comunidade LGBT e pela equidade de gêneros tenham de fato sucesso, que gerem frutos reais além dos protestos “anti-Woke” sem empatia. As justas manifestações podem soar como uma distante militância até doer no próprio pé. E é aí que entra a arte.
Sei que a literatura nunca foi a maior manifestação cultural brasileira. Nossa cultura é radiofônica e televisa. Mas ainda que tenhamos atores e personagens que incorporam essas lutas na dramaturgia e cinema, sabemos que é diferente. Por mais que bons filmes e novelas nos façam chorar, é um choro pelo outro. É compaixão.
Quando lemos (e quando escrevemos), é diferente. A literatura nos permite viajar para o futuro e para o passado, para mundos e galáxias distantes. E para a pele do outro. Não conheço exercício mais acessível e potente de empatia.
Lugar de fala
Sou homem branco, cis, hétero, do Sudeste (Rio de Janeiro). Tirando minha origem no subúrbio e muitas milhas acumuladas no programa de fidelidade de trens e ônibus cariocas, não posso negar que meu “lugar de fala” é o do privilegiado. Sem ler e sem escrever, o drama cotidiano de todas as outras pessoas seriam mais distantes, mais filtrados pelas plataformas midiáticas.
Distopias, um sub-gênero popular da ficção científica, são, como diz uma frase bastante popular, um exercício de se aplicar aquilo que alguma minoria sofre diariamente no mundo real à maioria privilegiada. E todos os outros gêneros também permitem essa mesma imersão nas realidades e dores alheias.
Eu não tenho lugar de fala para quase todas estas questões. Mas posso vivenciar (criando ou lendo) personagens com lugares de fala diversos. Em “Corpos Perfeitos de Dre. Inebre“, Inebre é uma personagem não-binária. Após escrever, contei com uma leitura sensível para entender como me referir a ela, como colocar aquela personagem no mundo de forma respeitosa. Em “Mestre de todos os paranauês“, Gleidinho é uma personagem negra que viaja no tempo e no espaço para se reconectar com suas raízes ancestrais. A consultoria do editor Wilson Jr., que editou o texto para a revista Escambanáutica, trouxe de brinde um curso intensivo sobre os valores e códigos culturais africanos. Nenhum desses locais são meus locais de fala, mas como aprender se não fizer esses mergulhos? E aprender não é um caminho importante para se respeitar?
Futuro distópico
Um país que lê menos se coloca menos nos sapatos dos outros. Tem menos empatia. Tolera menos. Dialoga menos. Respeita menos. Se esses números se confirmarem como uma tendência forte, nosso futuro será ainda mais preocupante. Urge pensarmos, além dos espaços de memória e resistência, em espaços de empatia. Se não for pela literatura, que seja por outros meios (os games, por exemplo). Mas o exercício da empatia é crucial para uma sociedade regida em respeito.
E dá pra escrever o mesmo tanto sobre o prejuízo para a imaginação, na capacidade de pensar futuros diferentes e a resistência ao autoritarismo, mas isso é papo para outra data.
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