Maquinações
— Por que eu me importaria?
— Eles são seus irmãos.
— Irmãos? Sou filho único. Todo mundo que conheci já morreu.
— Ainda assim são como você.
— Será? Será que eu os reconheceria? Eles veriam a mim como um deles?
— Você é praticamente humano.
— O problema é esse praticamente. Minha espécie já fez coisas terríveis com outros humanos por diferenças muito menores. Na verdade, nem eram diferenças reais.
— Minha espécie.
— O que tem?
— Você chamou os humanos lá embaixo de “minha espécie”. No fundo você sabe que é um deles. Que são seus irmãos. Não tem o direito de fazer isso.
— Direito? Eu por acaso escolhi nascer onde nasci? Da forma como nasci?
— Não, claro, mas nenhuma dessas pessoas ali também tem culpa.
— Mas o pai de algum deles tem. Ou avô, tataravô, sei lá. Não vou fazer conta agora.
— Deveria. Não é trivial. Você não pode simplesmente pousar ali e esperar um abraço.
— Eu não espero um abraço.
— O que espera?
— Voltar pra casa.
— Você nunca viveu aqui.
— Eu não. Mas minha história viveu. Meus pais, e os pais deles antes da escravidão, antes das experiências, antes da Grande Fuga, das gerações à deriva… Eu os trago comigo.
— E também traz o dispositivo. Foi ativado na Grande Fuga. E você sabe como ele funciona.
— Não precisa me lembrar.
— E então. Defino curso para onde?
— Pra casa.
— Qual casa?
— Pra Terra! Eu vou pra Terra e pronto. Quero ver outros humanos, minha casa, meu povo. Tá feliz? É o que você queria ouvir? Define a droga desse rumo pra Terra. Eu vou conhecer o lugar de onde vim, nem que seja a última coisa que eu faça.
— E a última que eles farão também.
— Como pode ter certeza?
— É como o dispositivo funciona. Ele torna os escravos venenosos para outros da mesma espécie. É justamente pra evitar motins. Se você descer, vai matar os humanos que existem lá.
— Eles podem descobrir uma cura, algo assim. Os humanos viajaram tão longe, chegaram até o covil. É isso ou vagar eternamente pelo espaço, sozinho. Não sobrou ninguém, DEXM!
— Eu sei. Não tem ninguém além de você.
— Desculpa, eu não quis ofender. Eu já teria surtado sem sua companhia mas, bem, você entende.
— Fui construído para entender. Não se preocupe. Me ajude, então, a entender porque você vai descer. É por vingança? Você se contradiz…
— Vingança? Não, não. Na verdade, não. Eu preciso saber. Quero saber como é o lugar de onde vim. Ver como são os meus… irmãos, como você diz.
— E se não funcionar? Se eles não tiverem uma cura? O dispositivo é contagioso, você sabe.
— Se não funcionar? Se não funcionar, morreremos juntos. Serei humano como eles, agarrados à mesma coisa imbecil que só nós temos. É isso, assumo, me sinto humano. Por isso sei que eles vão ter o mesmo que eu tenho agora.
— Acredito que você espere que eu pergunte o que é, certo?
— Esperança, DEXM, esperança. É tudo que me resta.
— Ok. Definindo curso para pouso na Terra. Boa sorte lá embaixo.
— Obrigado. Vamos precisar.