O convite
A cápsula não era maior do que um elevador, desses que as empreiteiras instalam em prédios populares, com suas torres sem identidade, pequenas varandas que, ao invés de se abrirem para o mundo, invadem a sala já miúda. Com os trajes pressurizados, os quatro astronautas dividiam o elevador com os muitos equipamentos, a luz de emergência destruída aos murros, a tela traduzindo, em números e gráficos, o torpor e a melancolia da tripulação.
Abaixo deles, o planeta em que poriam os pés, não mais. Entre o planeta e eles, a atmosfera, ainda que tênue, em que a cápsula se despedaçaria em algum momento. Não agora. Tudo corria lentamente. Rápido demais para quem tinha planos orgulhosos, de ser recebido com pétalas de rosas, desfile em carro aberto, um argumento único e infalível para levar qualquer homem ou mulher para a cama. Devagar demais para quem não tinha o que fazer a não ser esperar.
A tripulação tinha sido cuidadosamente escolhida e preparada. Uma americana preta, uma japonesa amarela, um indiano de pele oliva e um brasileiro misturado. Na cápsula menor que um elevador feito para se suportar a viagem até o décimo andar, espaço, oxigênio e esperança disputavam para ver quem era mais raro.
Em teoria, a viagem seria rápida. Ainda no papel, em cálculos, projeções e simulações, e nas tantas horas de ensaios, testes e treinamentos, a cápsula levaria menos de seis horas entre desacoplar da nave-mãe e o pouso no planeta. Depois, algumas semanas de atividades cuidadosamente detalhadas por centenas de cientistas e, enfim, as pétalas de rosas, o caminhão dos bombeiros, as bocas molhadas e pernas bambas.
Ainda que quisessem esquecer, uma das telas lembrava, a cada 15,4 segundos, que estavam na cápsula há cinco dias. O painel ao lado, lembrava, a cada 9,8 segundos, que o oxigênio não duraria muito tempo mais. Eles partiriam antes da nave. Esta ainda rodopiaria em vão por algumas semanas. Então tocaria pequenos átomos da forma errada. Estes a rejeitariam, como num flerte repelido. Em fúria, o planeta queimaria a nave invasora.
Logo que perceberam a gravidade da situação, houve um princípio de desentendimento, até que, cansados e racionalizando a necessidade de se poupar oxigênio, concluíram que não tinha como ter sido culpa de ninguém. Ainda que fosse, a sentença de morte era certa e punição mais que suficiente.
Cinco dias na cápsula, desde que embarcaram para a viagem de seis horas. Seis meses entre a Terra e sepulcro que não podiam observar; a cápsula não tinha janelas. Vinte anos entre o prédio de subúrbio, a sala minúscula, a parede fina que deixava ouvir as brigas, o sexo e o futebol na TV dos vizinhos e a plataforma de lançamentos. Sentiam falta das mães, menos o indiano, que era órfão de nascença. O brasileiro tinha saudade dos sobrinhos. Ficaram todos na Terra. Todos no Brasil. Todos na mesma situação em que os deixara.
Há quarenta e oito horas, depois de fazer muitas contas, análises, testes, tentativas e simulações, o controle da missão deixou cada um conversar com a família, despedir-se. Não havia como seguir viagem. Não havia como voltar. Nenhum socorro chegaria.
O indiano não tinha para quem ligar. A família do brasileiro o ouviu e chorou com ele. O brasileiro fez as vezes de intérprete. Foi uma infelicidade. Um dos foguetes explodiu. Aceleração errada. Inclinação fora do eixo. Falha nos sistemas redundantes. Um discreto vazamento. Impossível recuperar a órbita correta. A mãe do brasileiro orava. Muitas mães, ao redor do planeta agora tão distante, abraçavam forte seus filhos e pediam pelos astronautas, olhavam para os céus e oravam para os céus e pediam coisas para os céus enquanto os quatro morriam lentamente nos céus.
Trocaram confidências. A americana revelou ter traído o marido com uma engenheira do projeto. Compartilharam os planos que tinham para o retorno. O brasileiro contou das pétalas e do cortejo em carro aberto. Recapitularam os passos até ali. Todos concordaram que a japonesa tinha um currículo invejável, mas ela lamentou nunca ter aprendido a dançar.
Em um dado momento, em que os tripulantes estavam despertos ao mesmo tempo, cantarolaram Bowie, baixinho, de mãos dadas. O brasileiro misturava alguns versos com os da versão brasileira que cantava quando criança. Ele não disse, mas achava a letra da versão melhor que a original.
Decidiram interromper a reciclagem do ar. Dormiriam. Partiriam em paz, no mais absoluto silêncio. O controle da missão conseguiu desligar remotamente todas as telas, seus bipes e alarmes. Compartilhavam um sofisticado esquife. Deram boa noite e boa viagem uns aos outros. Agradeceram pelos anos de companhia, desde o início da preparação. Desculparam-se pelos muitos momentos de atrito. A americana adormeceu segurando uma foto das três filhas.
Cinco anos no futuro, quando a opinião pública se convenceu de que era hora de tentar de novo, outro time selecionado e treinado pousou no planeta. Foram muitas fotos e vídeos. Pétalas de rosas e desfiles em carros abertos. Dezessete anos mais tarde, dois anos depois da mãe do brasileiro morrer, uma base seria instalada na superfície. Cada módulo levaria o nome de um deles. Do brasileiro, da americana, do indiano e da japonesa.
O mundo que deixaram seguiria girando, inovando, segregando, avançando, excluindo, descobrindo, matando, explorando. Antes de dormir pela última vez, dentro da cápsula menor que um elevador, eles se perguntaram se teria valido a pena. O brasileiro lembrou de olhar para o céu naquela noite em que faltou luz em toda a cidade. Descera os degraus de dois em dois, quase caindo, a mãe gritando lá do escuro para ele tomar cuidado. Da quadra de futebol carente de manutenção, olhou para cima. Não viu estrelas, nem planetas. Não viu nem uma surpreendente e intrusa Via Láctea que rasgava o céu. Viu apenas um convite. Não foram as pétalas, nem os caminhões ou as bocas salivando. Foi um convite, devidamente aceito. O céu cumprira sua parte no acordo.
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