Silêncio, o jovem está esquecendo
“Silêncio, o jovem está descobrindo…” A frase é popular no Twitter, ferramenta usada para pensar em voz alta e ser criticado por estar pensando errado. É usada sobretudo entre um público mais sênior, indignado com jovens que descobrem, como algo inovador e revolucionário, coisas, processos ou hábitos que existem há décadas, mas com nomes e roupagens menos “mudernas”. É um comentário quase sempre pedante e inapropriado, especialmente por ignorar a importância de se maravilhar, de se surpreender mesmo com as pequenas coisas.
A surpresa pelo novo é importante para nossa vida. Faz bem para o corpo, para alma e para o mundo. No entanto, é preciso fazer uma justiça ao comentário arrogante sobre os jovens: em muitos casos, a descoberta é mesmo de algo que já existia. Se você tirar aspectos muito específicos, “coliving” não é tão diferente assim da boa e velha “república”. A clássica T-shirt era unissex muito antes das roupas de gênero neutro. E por aí vai.
Antes de apedrejar os jovens e sufocar um saudável senso de maravilhamento com o mundo, vale refletir sobre o motivo de tantos redescobrimentos.
Como em quase tudo, a resposta não é monolítica, óbvia e simples, como muitos debates de Twitter dão a entender. Vários fatores contribuem. Listarei apenas alguns, como o que nos vem sendo alertado desde 2011 por Nicholas Carr, com seu best-seller The Shallows (Geração Superficial no Brasil). A estrutura da internet e, sobretudo, das redes sociais, nos afoga numa piscina rasa de informação. Precisamos estar prontos a absorver, curtir, reagir e debater tudo. Política, Big Brother, os cancelamentos do dia, a rotina dos atletas e celebridades, pessoas que são felizes/ricas/amadas/mimadas demais, os políticos de estimação etc etc etc. Não há tempo para nos aprofundarmos, pois o deslizar do dedo sobre tela traz uma novidade, uma invenção, uma revolução, uma treta e um cancelamento diferente.
É compreensível que falte tempo para processar o mundo. Atire o primeiro meme aquele que nunca se viu compartilhando como inédito um vídeo, notícia ou fato do ano passado que ressurgiu na linha do tempo. Quem não lamentou a morte do artista que já tinha entrado obituário anos atrás?
Como falta tempo para efetivamente conhecer e entender o mundo, entramos na era do “lavou tá novo” da informação. Se tem um novo nome, é novo. Isso explica a facilidade que muitos políticos têm encontrado de ignorar todo o passado e se apresentar, depois de décadas de abuso da máquina pública, como o novo, os anti-sistema, os salvadores.
Outro motivo também é culpa da Internet. É muito mais fácil achar rastros digitais e históricos daquilo que surgiu na era digital. Nossa sociedade está digitalizada, mas nossa memória não. Há um vasto oceano de fatos, notícias, conteúdo audiovisual e literário, negócios e inovações exilados e distantes de nossos olhos por serem analógicos ou, se digitais, ainda presos em arquivos de veículos restritos a assinantes ou digitalizados em PDFs não indexados. Dessa forma, ao adotarmos a percepção de que “se o Google não acha, não existe”, perdemos nossa memória. As implicações são gravíssimas, visíveis nos recentes processos de revisionismo histórico, com negações a fatos como o Holocausto, a sanguinária ditadura militar no Brasil e demais países da América Latina e atrocidades soviéticas.
A arquitetura fechada das redes sociais e a efemeridade dos conteúdos curtos em vídeo, como stories, só agravam esse processo. Mesmo o conteúdo contemporâneo, o vídeo de ontem, é levado pela correnteza digital, uma constante cabeça d’água que não só entorna litros de informação a cada segundo sobre nossas cabeças, mas que também enxágua nossa mente levando essas mesmas informações para o ralo.
O jovem não está só descobrindo o velho. Está, ao mesmo tempo, esquecendo-o. E não é só o jovem, somos todos nós que cada vez mais terceirizamos nossas habilidades cognitivas para uma incrível plataforma digital que “tudo” armazena, encontra e comunica, mas que, justamente, não reflete. Não pensa, não contextualiza além do que determinam seus algoritmos.
Que nos maravilhemos, então, ao “redescobrir” o passado. Isso vale para tudo. Das repúblicas estudantis aos documentos legítimos de fatos históricos. Da moda unissex às importantes questões sobre gênero e representatividade. Do trisal de Armação Ilimitada, nos anos 80, ao poliamor de hoje. Da inflação aos preconceitos e hábitos injustos que precisam ser lembrados exatamente para que não voltem com um novo nome.
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