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Por Deus, pela família e pela pátria

Written by

Roberto Cassano

O texto abaixo estava dormente em meu Evernote desde novembro de 2017. Achei pertinente tirá-lo da gaveta em meio a tempos tão turbulentos e perigosos que estamos vivendo.

De forma declarada ou sutil, todos vemos o mundo com base em nossas convicções, que jamais são completamente baseadas em fatos, dados e evidências científicas. Albert Einstein, a despeito da então crescente descoberta de evidências que comprovavam que o submundo quântico, por ele mesmo descoberto, era real, recusou-se a embarcar na “moda quântica” por não acreditar que havia espaço para probabilidades e ações integradas no espaço que violassem leis até então “sagradas” da Física e que fosse contra sua visão de que, ao fim, tudo no universo deveria ser ordenado e previsível, como se construído por uma regra maior. Na falta de termo mais adequado, ele mesmo se referia à essa ordem superior como Deus.

Convicções são inerentes a nós, humanos. Expostos ao desconhecido, tratamos prontamente de especular sobre o que se trata. E abraçamos as explicações mais convenientes. Convicções também são um direito. Temos o direito de acreditar no que quisermos. E de vivermos nossas vidas com base nessas convicções, por mais estranhas que elas possam parecer a terceiros. Uma sociedade baseada em respeito deveria ser estruturada de forma que diferentes verdades, ou melhor, diferentes convicções pessoais pudessem conviver em harmonia.

Carl Sagan, grande defensor do ceticismo, encarava crenças como algo com que você precisa se comprometer. Aceitar um dogma, uma fé, uma convicção conveniente é ato de comprometimento. Você se predispõe a aceitar aquele código ou aquela imagem, a despeito das críticas e penalidades que pode sofrer. É, portanto, um ato essencialmente individual. Não posso forçar alguém a se comprometer. Quem gerencia equipe sabe que não se faz um funcionário “vestir a camisa da empresa” à força.

Religiões demandam esse compromisso. Você aceita a divindade e os códigos e dogmas associados a elas. De Fox Mulder que queria acreditar em vida alienígena, a todas as religiões. Em comum, a necessidade de escolher, aceitar e se comprometer a acreditar em algo que soará e será sentido como absolutamente real, profundo e eterno. Mas que, e isso não poderia ser negado mesmo pelos praticantes, carece de evidências científicas irrefutáveis. Religiões não são, para usar um termo científico, falsificáveis. Isto é, não conseguimos provar que uma determinada afirmação — por exemplo, Deus é eterno — é falsa. Nem que é verdadeira. Para além de exercícios retóricos e filosóficos, só temos duas opções: aceitar ou não.

Desta maneira, há sim uma possibilidade de que alguma das milhares de religiões esteja certa. Ou que todas. Ou que nenhuma. Simplesmente NÃO SABEMOS. E não há crime em não saber. Faz parte.

O conceito de pátria é muito similar à estrutura das religiões. É baseado em símbolos imutáveis, bandeira, brasões, cores, pressupõe um código de conduta e exige comprometimento. Deve-se respeitar a pátria. Servir. Não agir em lesa-pátria. Pensar diferente pode ser visto como trair a pátria.

Mas o que é pátria? Seria aquilo que nos define como povo? E o que seria o limite desse povo? Os brasileiros formamos uma pátria? Ou os cariocas? É nossa cultura, nosso jeito, nossa língua que definem o que somos como pátria? Cultura e língua são elementos mutantes, móveis, muito mais biológicos do que arqueológicos. Cultura e língua são elementos vivos. Eram diferentes no passado. Serão diferentes no futuro.

Como definir claramente o que é a pátria se ela é construída sobre conceitos fluidos? Como eu posso me comprometer, como poderia trair, como poderia servir algo que não é tangível?

Note: para as religiões, as divindades são tangíveis visto que são imutáveis e descritas, em imagens ou metáforas, em seus símbolos igualmente imutáveis. O que é a pátria? A camisa da Seleção? O Estado? Para servir à pátria, para defender a pátria, é preciso aceitar e escolher o que é a pátria. Comprometer-se com ela. Jurar a bandeira, um símbolo arbitrariamente definido de cores e formas que busca tangibilizar de forma imutável o que é fluido.

Yuval Noah Harari, que aborda e defende um ponto de vista igualmente cético em relação a muitos conceitos, propõe um exercício para identificarmos se agentes da História (ou de histórias) são reais ou construções culturais aceitas por nós. Escreve Yuval, em “21 lições para o século 21”, “Quando você tem diante de si uma grande história, e quer saber se é real ou imaginária, uma das questões-chave é se o herói é capaz de sofrer. Por exemplo, se alguém lhe contar a história da nação polonesa, reserve um momento para pensar se a Polônia é capaz de sofrer.” Conceitos não sofrem, não sangram, não passam fome. (*)

Por último, família. O fato de existir um modelo de família que é mais comum e tradicional — no sentido de formato longevo — implica imutabilidade? A família tradicional deve ter 5 filhos? Um casal? Necessariamente um primogênito homem? Um casal sem filhos feriria o molde imutável de família tradicional? Seguindo a mesma lógica, cabe a cada pessoa se comprometer com o modelo de família que acha mais saudável, feliz e “correto”. Não?

Quem define? Qual o Inmetro, qual o Instituto de Pesos e Medidas que define o que é Deus, Pátria e Família?

Se os três elementos são passíveis de interpretações pessoais, se os três dependem de uma aceitação e comprometimento individual e pessoal, como seria possível imaginar uma visão de sociedade, uma visão política, uma visão de mundo baseada na defesa incondicional de que o todo, de que a sociedade, siga um alinhamento a essas três esferas? Seria como construir uma casa sobre três alicerces móveis.

O problema não está em Deus, nem na família, nem na pátria. Todos somos livres para aceitar e vivenciar os deuses, as famílias e as pátrias que desejarmos. A junção perigosa dos três elementos como justificativa e defesa de modelos sociais, coletivos, faz com que o defensor dessa tríplice bandeira erga toda sua visão de mundo — e que, não raro, tenta-se impô-la aos demais — em cima de três pilares em que ele pode estar coberto de razão. Ou não.

Se eu jogo cara ou coroa com uma moeda, tenho 50% de chance de acertar. Se o fizer com três moedas ao mesmo tempo, a chance de acerto é muito menor. Como aceitar, então, que queiramos impor ao coletivo um compromisso que deveria ser pessoal e que tem probabilidade tão pequena de ser de fato o melhor para todos?

* O trecho do Harari foi incluído em outubro de 2018.

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