Crie leis estúpidas (sobre tecnologia) e elas te comerão os olhos
Já fui partidário da filosofia valesiliciana de que a tecnologia é irrefreável, e que se uma lei ou um grupo social é atacado pela tecnologia, que se mude a lei ou o grupo social. Também já concordei integralmente com a visão de que se um robô tira o emprego de alguém, a culpa é do alguém que não é capaz de ser melhor que um amontoado de chips e algoritmos.
Tem horas em que é isso mesmo, mas hoje entendo que a questão é muito mais cinza do que preto-no-branco e que a evolução tecnológica não deve-se dar a qualquer custo. Um avanço tecnológico não é válido se não trouxer um avanço social a reboque. Ou seja, a descoberta de uma nova vacina beneficia mais pessoas e sociedades do que prejudica as pessoas contrárias à vacinação por alguma questão ideológica. Carros elétricos autônomos podem melhorar a vida de mais pessoas — pela redução de acidentes, melhoria do tráfego nas cidades e redução da poluição — do que os motoristas prejudicados pelo fim de seus empregos. E por aí vai.
Mas nossa classe política não ajuda no embate contra a visão tecnototalitária do Vale do Silício ao tentar restringir a inovação na base da canetada, e ainda mais com leis estúpidas e natimortas.
A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto de lei que exige que estacionamentos contratem um funcionário para cada máquina de autoatendimento. A justificativa é gerar/preservar empregos, mas é uma lei estúpida não necessariamente pela motivação, mas por ignorar que é inócua e facilmente contornável.
A lei não leva em conta de que a principal força tecnológica em jogo não é a proliferação de totens de autoatendimento, mas o processo de desintermediação e automação de processos. Eles entendem que, ao não poder interagir com a máquina, os clientes preferirão interagir com o atendente. Na verdade, o cliente não quer interagir com ninguém.
A alternativa ao atendente humano não é o totem, são os tags que permitem ao veículo entrar e sair pelas cancelas com pagamento mensal. Os Sem Parar e ConectCar da vida. Ou, ainda, o autoserviço via celular. O sujeito paga o estacionamento por um aplicativo, de dentro do próprio carro ou do shopping, sem precisar interagir com ninguém.
Como será controlado isso? A depender do bairro ou do perfil do estabelecimento, o estacionamento poderá funcionar normalmente sem qualquer posto de atendimento, seja humano ou na forma de totem. E, ainda assim, 100% dentro da lei.
Será econômico para o estabelecimento, prático e “sem fricção” para o cliente e impossível de se fiscalizar pelo poder público. Pra quê perder energia com uma lei impossível de se viabilizar?
Essa história me lembra um causo corporativo que ouvi certa vez. Reza a lenda que um executivo de uma multinacional tinha como meta reduzir o número de clientes inadimplentes. A meta não dizia que ele tinha que converter estes inadimplentes em pagantes, apenas que ele precisava terminar o ano com menos caloteiros do que tinha em janeiro. Como ele fez para resolver o problema e assegurar seu bônus? Encerrou todos os contratos de clientes em aberto e deixou para lá todo o faturamento que a empresa poderia recuperar com eles.
Muito cuidado com as leis e regras que você cria. Elas podem ser cumpridas ao pé da letra e o resultado pode ser muito pior do que antes de sua canetada.
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