Murakami e o impiedoso escritor de maravilhas
“Em um lugar onde nada é normal o jeito é se adaptar à ausência de normalidade.” Essa frase de “O fim do mundo e o impiedoso País das Maravilhas“, livro lançado em 1985 por Haruki Murakami mas que só agora desembarcou no Brasil, via Alfaguara, resume bem nossa relação com a obra do autor.
Sou fascinado pela obra de Murakami, quase um refém. Me entrego aos mundos enganosamente normais e profundamente fantásticos/ intimistas que ele nos oferece de bandeja. Se suas obras nos levam a mergulhos em elementos surreais ou na intimidade emocional das personagens, este livro faz as duas coisas. Tudo ao mesmo tempo agora.
Seus livros despertam em mim sentimentos conflitantes. Encantamento, raiva, inveja. Aproveito todas. Ele representa um punhado de autores que me inspiram profundamente mas não me permitem nem a mais nobre e antiga forma de homenagem e admiração: o plágio. Simplesmente não dá para escrever Murakami, talvez porque só ele seja Murakami. Só Cortázar é Cortázar. Só Machadão é Machadão.
O que me fascina? Seu texto é simples, sem floreios, mas altamente poético (e um tanto quanto brega, às vezes). Ele consegue dedicar páginas descrevendo cenários e casas não só fisicamente, mas animicamente, sem cair no detalhismo de Tolkien. E essa descrição empurra a história, porque não é o vinil ou o k7 de jazz, a vitrola, o caracol, a caverna escura, a usina elétrica à beira de um bosque. É o efeito que aquele lugar ou objeto provoca no narrador/personagem. É como ele reverbera. É o som que aquele crânio provoca quando estimulado. Uma coisa não é uma coisa, é o que a coisa provoca em nós.
Murakami é impiedoso. É um trem em movimento, alguém na porta com o braço esticado. “Vem, pula”. E você, ali, na estação, precisa se decidir se pula ou não. Se pular, viajará para um destino desconhecido. Ao final, ninguém lhe entregará um folheto com as atrações ou explicações. Cabe a você recolher sua bagagem e reconstituir o que viveu. Isso acontece com alguns autores. Ao final, nem sempre sou capaz de recapitular o que li (há romances do autor em que não “acontece” muita coisa), mas conseguimos revisitar o que sentimos.
Esse texto não é uma resenha. Está mais para um react. “O fim do mundo…” foi publicado pouco depois de “Caçando Carneiros“, outra obra genial. Em ambos, o fantástico está fortemente presente. Nessa obra, Murakami consegue envelopar tudo numa lógica de ficção científica, sem se ater às mil regrinhas que o gênero vez em quando apresenta (o que não impede uma longa explicação sobre as gambiarras cerebrais feitas no quengo do protagonista).
Há passagens que remetem muito a “Lugar nenhum“, do Gaiman. Ambos autores conseguem unir o mundo real, suas ruas, esquinas e estações de metrô às narrativas fantásticas. Murakami, como o inglês, adiciona elementos surreais ao cotidiano, um molho mágico que torna qualquer coisa especial. E que transforma o incrível em plausível. Um homem-carneiro, seres do subterrâneo, embaralhamentos cerebrais, unicórnios.
Mergulhamos tão fundo em sua alma e imaginação, que o mundo externo desaparece. Como indica outra passagem: “Quando se olha o céu a partir da terra, sente-se que ele sintetiza todas as existências. O mesmo ocorre com o mar. Quando se contempla um oceano por dias a fio, começa-se a acreditar que só existe isso no mundo.“
Me deu certo orgulho, confesso, que um trecho importante, já no desenlace, tem exatamente a mesma premissa de um de meus contos, “O mestre de todos os paranauês“, em que mundo e personagem se entrelaçam num universo de múltiplas possibilidades. Narra Murakami, em um diálogo: “Em outras palavras, não é um mundo fixo e completo. Ele alcança a completude enquanto se movimenta. (…) Aqui é um mundo de possibilidades. Ao mesmo tempo, existe tudo e nada.” Na minha história, escrita bem antes desta leitura, o protagonista, Gleidinho, se vê numa enrascada num contexto parecido: “Aquele era justamente o lugar de tudo que não era, e eu só conhecia as coisas que eram, as coisas que estavam no meu mundo (…)… é isso!“.
Nessa viagem entre mundo real e universo imaginário, Murakami nos provoca a descobrir os mundos murados que construímos em nossas vidas e nossas mentes. A refletir sobre o que (e quem) cabe em nossas visões fechadas de mundo. A pensar que viagens podemos fazer do corpo pra fora e do corpo pra dentro. Nossa mente é um universo. Tão óbvio. Tão simples. Tão Murakami.
Não me arrisco a fazer um TOP 5 do autor, mas este livro certamente está entre os preferidos. Nem todas as pontas se fecham, mas já me acostumei com isso. As personagens são humanas, profundas e transantes (as pessoas transam muito no mundo de Murakami). A cada livro dele fico com mais vontade de conhecer o Japão e me agrada que ele tenha flertado com SciFi/ FC, ainda que a seu modo.
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