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Mastodontes punks contra o sistema

Written by

Roberto Cassano

O Cory Doctorow, jornalista, escritor de ficção científica e um dos pioneiros digitais, usa um termo ótimo para o processo de estragação das plataformas digitais: enshittification (que vou traduzir aqui como merdificação). Em resumo, ele defende que todas compartilham um ciclo de crescimento e merdificação que passa por atrair o máximo de pessoas (alguém tem convite pro BluesKy aí?) com promessas incríveis, criar muros técnicos, psicológicos e financeiros para ninguém poder sair (inclua-se “usuários”, marcas, criadores de conteúdo e empresas) e, feito isso, espremer as laranjas até o bagaço.

Muitos aceitam os termos de uso e seguem suas vidas, não ligando para um anúncio mais invasivo aqui, o fechamento de pequenas lojas e veículos de imprensa acolá. Outros se adaptam e dedicam enorme energia a decifrar os algoritmos para “destravar” os perfis e alimentar as máquinas com temas, dancinhas, durações, termos e quantidade de palavras ditadas pelo punhado de donos de muros ao nosso redor.

Aldeias globais, descentralizadas e federadas

Gráfico mostrando a explosão (e posterior estabilidade) na criação de servidores do fediverso.

Muitos, mas não todos. Aí entram mastodontes, mamutes e afins. O movimento em torno das redes descentralizadas e federadas, o fediverso, vem ganhando força sobretudo com a merdificação acelerada de ambientes digitais, como o Twitter. Já são mais de 21 mil servidores e quase 9 milhões de contas, boa parte delas no Mastodon. A postura é punk na veia: “se não concorda com o sistema, faça um você mesmo.” Ao invés de uma rede global centralizada ditando as regras, temos uma profusão de pequenas comunidades digitais (as instâncias), sem mediação por algoritmos nem publicidade, que se integram entre si (a federação). No lugar de uma única aldeia global pós mcluhânica, temos milhares de ciberaldeias conectadas entre si. Milhares, mas não todas. O fediverso é e tende a ser fragmentado. Internets distintas que convivem, equilibrando a formação de laços locais (o local aqui pode ser literal, como instâncias de bairro, de cidades, de universidades, ou por interesse, como instâncias de esquerda/direita, LGBT, de geeks, torcedores do clube X etc).

Essa quebra lhe soa como um defeito? Claro que traz limitações e frustra as expectativas de influencers e marcas, para quem quanto mais alcance, melhor. Mas esse desenho, que é mais em forma de rede/teia do que de um cobertor planetário, é muito mais fiel aos princípios da origem da internet. Toda a plataforma foi criada para ser descentralizada e resiliente. Uma conexão de nós independentes cobrindo o planeta. No desenho original, o mundo não pararia se caísse um Google ou Instagram da época.

Era uma vez um BBS

Tela de BBS.

Eu já contei essa história mil vezes, mas eu gosto dela, então conto de novo. Antes da internet chegar até nossas casas, havia uma forma rudimentar de conexão via redes digitais, os BBSes. Eram sistemas que permitiam que o computador de alguém funcionasse como um servidor para permitir a troca de mensagens (e-mails), downloads de arquivos e, em alguns casos, chats. Para que cada usuário pudesse fazer parte da comunidade, era preciso usar as linhas telefônicas fixas. Você ligava para o telefone desse servidor e os computadores conversavam entre si, convertendo dados digitais em sinais de áudio que trafegavam pelas linhas telefônicas e eram decodificados do outro lado.

Havia tanto BBSes profissionais quanto amadores. Eu tive um, o Bohemius BBS, que funcionava todos os dias do lado de minha cama, de meia-noite às 6h da manhã (pois ele usava o telefone residencial da família). Se algum parente tivesse morrido de madrugada naquela época, a pessoa que tentasse nos alertar teria que se entender com os guinchos agudos do modem ligado ao computador e à linha. Ninguém bateu as botas naquele período, felizmente.

Como a conexão tinha que percorrer fisicamente o trajeto entre o computador A, a central telefônica e o computador B, quanto mais perto fisicamente estivesse o tal servidor, melhor a conexão. Ou seja, boa parte dos BBSes era regional, com usuários de um mesmo bairro ou, no máximo, da mesma cidade (gente de outra cidade teria que pagar ligações interurbanas para usar) compondo a comunidade.

Eram tempos incríveis, pois as ferramentas para fazer o set-up da infraestrutura eram acessíveis e open source, criavam-se comunidades sólidas, com frequentes encontros presenciais, as redes ou eram completamente desprovidas de objetivos comerciais ou eles não eram vistos como antagônicos aos melhores interesses dos membros. Raramente a missão primária do BBS era deixar seu SysOp (o adminstrador do sistema) rico.

A revolução será tootada

O movimento em torno do fediverso e das redes que utilizam o protocolo ActivePub, como o Mastodon, remete muito aqueles anos 1990. Embora não seja trivial (e aqui fica meu reconhecimento e gratidão aos admins das instâncias brazucas), a criação de uma instância é relativamente simples, podendo rodar do lado da cama como meu antigo BBS ou em hospedagens preparadas para isso. Centenas de comunidades surgem a todo momento, motivadas pelo desejo de compartilhar e criar laços sem perder as rédeas desse processo. São pessoas cansadas de serem obrigadas a construir suas personas digitais a partir do livro de regras em constante mutação das big techs. Gente que ama o digital, que deseja criar e consumir conteúdo, mas que já não se sente confortável em ser o produto, em ser o bem comercializado nessa rede de interesses, pessoas que valorizam serem os donos de seus textos, fotos, vídeos e de suas redes de contatos, seus grafos.

O fediverso é uma resposta direta ao modelo californiano de governança da internet. Mas toda ação tem uma reação, e as big techs já se movimentam para eliminar ou enfraquecer o movimento da forma mais eficaz: apoiando e abraçando o fediverso.

Quando as gigantes estiverem integradas e conectadas ao ecossistema, o equilíbrio de forças estará profundamente impactado. Corporações de caixa infinito competindo com hobbistas. Quando 60%, 70% dos usuários do fediverso estiverem em instâncias/servidores das big techs, será ainda possível às pequenas comunidades dizerem não e não se plugarem a elas?

O Sistema contra-ataca

Os BBSes dos anos 90 morreram de inanição, fagocitados pela internet, para a qual todos migramos. A internet 1.0, com seus websites que podíamos desenvolver apenas com o Bloco de Notas e o Paint, se viu atropelada pela primeira onda das redes sociais, as quais igualmente abraçamos de peito aberto. O movimento punk não foi derrotado pela polícia de Margaret Thatcher. Foi pasteurizado pelo sistema a ponto de você conseguir emular um look punk na loja de moda popular de seu bairro. Os punks se tornaram o sistema. Assim como os SysOps, a blogosfera, os webmasters e os editores da Wikipedia (não todos).

Todos os passos da merdificação são ofensores em potencial ao fediverso e afins. O sistema tentará ou isolar ou fagocitar o fediverso. E a absorção virá com uma equação bastante desigual. Como diria Paulo Henrique Ganso, craque do meu time do coração, “O sistema é f.”.

O fediverso precisa evoluir

Uma das vantagens de ser dinossauro é a experiência com meteoros.

Sou enorme entusiasta do fediverso. Vejo nele o brilho e o empoderamento individual que não via desde os BBSes, os primeiros movimentos da Web e a chegada das redes sociais. Uma das vantagens de ser dinossauro é a experiência com meteoros. Os BBSes e a internet 1.0 perderam sua essência ao evoluir, e as redes sociais não entregaram as maravilhas democráticas em que acreditávamos. Para o fediverso não seguir o mesmo caminho, ele precisa amadurecer, abraçar ferramentas da “internet como negócio” ainda que não queiramos construir o fediverso pelas mesmas regras e objetivos. É preciso que ele seja sustentável como negócio sem precisar seguir a cartilha da merdificação. Um sistema que dependa de dinheiro do bolso de admins que mantém as instâncias em suas horas vagas será presa fácil. Pontos em que o fediverso precisa evoluir rapidamente e ganhar escalabilidade:

  • Moderação – a adoção de recursos de Inteligência Artificial e moderação cruzada entre instâncias pode dar o ganho de escala necessário para um ecossistema que cresça de forma saudável;
  • Privacidade e LGPD/GDPR – Uma funcionalidade que ainda está em implementação no Mastodon (já disponível em outras plataformas do fediverso) * é a criptografia das mensagens privadas. A mera possibilidade de um admin ler mensagens privadas é um risco para o próprio admin. Além disso, as instâncias ficam muito expostas com as legislações tanto ligadas à proteção de dados como nas ordens de exclusão de conteúdos ou compartilhamento de informações com a Justiça.
  • Onboarding – A instância ligada ao criador do Mastodon, a mastodon.social, recentemente facilitou o processo de abertura de conta, o que foi visto de forma negativa por muitos admins de instâncias menores. Para reforçar seu argumento, a facilidade gerou uma onda de spam ligada a criptomoedas que levou à suspensão temporária da conexão entre as principais instâncias. Essa instabilidade não é saudável. E o onboarding precisa, sim, ser facilitado. Massa crítica de participantes é o principal desafio de qualquer plataforma.
  • Financiamento e monetização – Dinheiro não é pecado. As coisas custam dinheiro. O modelo de Patreon/doações funciona, mas tenho dúvidas se sustenta uma operação que precisa ser mais robusta. Talvez uma estrutura de cooperativismo? Abrir espaço para publicidade não intrusiva, sem coleta e uso de dados pessoais? Permitir a adesão segura de empresas que poderiam pagar às instâncias por algumas benesses, como ser “a loja oficial da Instância X”?
  • Impessoalidade e governança – O poder corrompe. Após certo ponto de crescimento, as intâncias não podem ser vistas como espaço pessoal e reflexo das crenças pessoais de seus admins. Mecanismos de participação democrática dos membros precisam ser implementados para que sejam, de fato, espaços coletivos. Não dá para criticar (com razão) Elon Musk e fazer igual.

Para quem aprendeu a viver no digital, o fediverso é nossa melhor alternativa para seguirmos como atores, autores, protagonistas e membros de um coletivo cibernético, e não apenas como usuários-cobaias e consumidores. Essa é uma luta antiga. Já construímos muitos prédios em terrenos alugados para saber que, depois que sobem os muros, o processo começa a feder.

* Post atualizado para corrigir a info de que não haveria criptografia em DMs do fediverso. O recurso ainda não existe no Mastodon, mas faz parte de outras plataformas/protocolos.

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