Sobre o deenério, suas características e a inviabilidade circular
Miguel foi conduzido ao púlpito por uma salva de palmas protocolar. A camisa social estava grudada ao corpo, ensopada por baixo do paletó, a despeito do potente ar-condicionado que acolhia as centenas de pessoas de ciência e do mundo dos negócios dispostas pelo amplo auditório. O bolo de folhas A4 com o roteiro e dados da apresentação oscilaram até o apoio. Sem saber o que fazer com as mãos recém-libertas da papelada, agarrou a borda de acrílico para minimizar a trepidação involuntária dos dedos.
A música eletrônica alta, repetitiva e irritante cessou, recuando para os alto-falantes e deixando em seu lugar uma atmosfera pesada de expectativa, um silêncio denso entrecortado por tossidas esporádicas. Duas telas se acenderam na beira do tablado, com uma contagem regressiva marcando o tempo restante em sua apresentação. Um ponto de luz vermelha na câmera montada num braço mecânico indicava que a transmissão online daquela sessão do Congresso Mundial de Ciências e Inovação já havia começado. Na tela às costas de Miguel, uma tipologia elegante anunciava o título de seu trabalho: “Sobre o deenério, suas características e a inviabilidade circular“.
Pigarreou. Pegou o bolo de folhas e bateu-as contra o acrílico para nivelar as páginas. Captado pelo microfone, o gesto retumbou pelos alto-falantes. Deu boa noite, confirmou seu nome e instituição de pesquisa, imaginando que isso ajudaria as pessoas a descobrirem que estavam na sala errada e partissem. Ninguém se levantou. Lembrou de um conselho recebido há muitos anos, antes dos mestrados, doutorados e pós-doutorados, antes de todos os discursos de agradecimento em premiações internacionais de Ciências e Sustentabilidade: ao palestrar ou dar aulas, escolha alguns interlocutores na plateia e fale para eles, olhe em seus olhos, leia suas reações. Apresente para eles, converse com eles e tudo fluirá melhor.
Escolheu os parceiros involuntários e iniciou a apresentação, surpreso por não ter gaguejado. A parte inicial da fala apresentava o deenério, elemento de origem orgânica com características minerais que ele e seu time haviam descoberto. Passando os slides com um controle remoto fornecido pela organização do evento, demonstrou o ciclo de vida da deenerídia, uma flor de aspecto desinteressante e desconhecida até poucos anos.
Relatou como ele e sua equipe estavam em uma expedição por diversos biomas da América do Sul, para mapear a teia ecológica local, decifrar o papel de cada ente naqueles ecossistemas, com base na premissa de que tudo na natureza evolui para fazer parte de um ciclo, que por sua vez se encerra em outro ciclo planetário.
Estavam acampados em um platô nos andes bolivianos, divididos entre passar frio nas sombras ao pés dos paredões rochosos ou suar por baixo das roupas e mochilas sob um sol inclemente. Observaram marcas de degelo recente, sinais das temperaturas cada vez mais elevadas a cada inverno. Foi um assistente que se deparou com uma fenda entre rochas de onde brotavam flores que nem os botânicos da equipe reconheciam. Eram, no máximo, comuns em aspecto. Nem belas nem feias, de aroma praticamente imperceptível, mas desconhecidas até então. Felizes pela descoberta de uma nova espécie, o time recolheu exemplares para estudo mais detalhado.
Nos meses seguintes, se multiplicaram os registros de observação da nova espécie em diversos cantos do planeta, sem qualquer evidência de conexão com as teias ecológicas locais, ou de impactos mais significativos à flora ou fauna de cada ecossistema.
Toda a apresentação tinha sido ensaiada uma dezena de vezes. Tinha cada palavra tão encadeada, como moléculas concatenadas, que sua mente se dividiu. Parte apresentava, encarando a meia dúzia de mulheres e homens de ciências e negócios escolhidos aleatoriamente entre os presentes. Outra, recapitulava as ações e reações, as ligações fortes e fracas, os ciclos que o levaram até aquele local, aquele momento.
O abandono da terra natal, contaminada pela mineração ilegal. O desgosto do pai, a morte esquálida da mãe doente, o juramento de ser alguém e de fazer alguma coisa. A luta pelas causas ambientais. A troca da panfletagem pelos papers, estudos e artigos. A contribuição em temas como economia circular, reciclagem. A participação em fóruns econômicos, as entrevistas na TV, os convites para desconfortáveis mesas-redondas com todo tipo de gente, defendendo o óbvio: não há espaço para o que não é sustentável, para o que não é reciclável, para o que contribui para a mudança climática, para o que é parte do problema e não da solução.
Esses pensamentos se debatiam por dentro da camisa suada. Por fora, mãos agora firmes deslizavam folha após folha para o fim do bolo de palavras, fórmulas e esquemas. Seu time, relatou Miguel, ficou intrigado pelo papel misterioso da deenerídia na teia alimentar e em seus ecossistemas nativos. Não atraía insetos ou pássaros, suas raízes pouco interagiam com as redes miceliais, não era comestível. E, salvo uma incomum desatenção de toda a espécie humana, passou despercebida por milênios até ser notada, e se espalhou com incomum velocidade, justo agora, época infelizmente marcada por tantas extinções em massa, sobretudo pela elevação da temperatura de mares e solo.
Consideraram, então, a possibilidade de o calor ser benéfico à deenerídia. Submeteram algumas amostras, então, a temperaturas variadas. Foi então quando elas começaram a produzir. Passou uma sequência de fotos para que o público pudesse absorver o que ele queria dizer. As imagens eram claras. Submetidas às condições ideais de concentração de carbono e temperaturas elevadas, as deenerídias começavam a produzir uma finíssima substância, que, sozinha, se erguia por vários centímetros sobre as flores. Ao contato com filamentos de flores vizinhas, se emaranhavam e, mais firmes, erguiam-se por metros. Mostrou uma foto com ampliação de 50 vezes do filamento, e ficou claro para todos a origem do nome deenério para esta estranha estrutura, nem mineral nem vegetal, e de deenerídia para a flor de onde brotava: sua forma era helicoidal, suas elegantes fitas translúcidas num eterno jogo de buscar o abraço e fugir dele, girando em torno de um eixo, com espinhos ligando uma fita à outra. Era idêntico à uma estrutura de DNA, só que mineralóide, e criado por um vegetal.
Lembrou-se das sucessivas perdas em sua vida. Dos pais. Da terra. Amigos de infância. Lhe veio vívido à boca o gosto do peixe contaminado. O frescor das águas calmas do rio em que já não se pode nadar. Uma manhã de brincadeira, à margem, acompanhando a labuta de uma trilha de formigas que transportava fragmentos de folhas ao ninho. O pesar ensaiado do médico lendo os resultados de exames, a tentativa vã de amenizar os dados evidentes apontando danos irrecuperáveis à sua saúde. Lembrou-se das espécies animais e vegetais que testemunhou sumirem do planeta no curto tempo de sua vida humana, que não pôde salvar, que escaparam por entre seus dedos enquanto ele escrevia artigos, revisava trabalhos e dava palestras como aquela.
Passou para a segunda parte, a das curiosas características do deenério. Sua equipe descobriu como formar ligas a partir do simples contato entre os filamentos submetidos à correta quantidade de carbono e de calor. Submetida a rigorosos testes, a liga de deenério se mostrou o mais revolucionário material jamais descoberto. Era leve como uma folha de papel, mas resistente como titânio. A depender de como as hélices fossem dispostas, podia ser resiliente como uma borracha ou sólido como um diamante. Tanto poderia ser afiado como uma agulha quanto disposto na forma de chapas para a fabricação de veículos, aviões e drones indestrutíveis, porém leves como uma andorinha.
Os slides exibiam imagens que seus assistentes haviam criado com inteligência artificial para ilustrar aplicações do material. A liga era a solução perfeita para navios que jamais sofreriam corrosão ou afundariam não importa quão forte fosse o choque, capazes de carregar duas vezes mais peso em cargas. Aviões hiper-leves e resistentes que cruzariam o planeta consumindo metade do combustível.
Os olhos das seis pessoas escolhidas aleatoriamente o seguiam, fascinados. Ele os tinha. Brilhavam. Ele pôde ver pensamentos ardendo, ligações sendo feitas do outro lado daquelas pupilas que refletiam seus slides. Suas mentes maquinavam aplicações, frutos de sua descoberta. Era assim que a ciência funcionava. Cada sala era cercada de portas que levavam para a sala seguinte. Uma descoberta era degrau para a próxima. Uma lenta subida até… até o quê?
Quase perdeu o fio da meada. Consultou suas anotações e recomeçou. Era chegado o momento da terceira parte, que discorria sobre a inviabilidade circular do deenério e seus riscos. Se o processo de reversão do aquecimento global causado pelas mudanças climáticas se interromper, podemos alcançar as condições para o surgimento in natura do deenério ainda na próxima década. Com o atual ritmo acelerado de expansão da deenerídia por todos os continentes, e com o provável plantio em massa da espécie após essa descoberta, cria-se uma perigosa condição: a produção em larga escala de deenério na natureza. Fios, depois filamentos, depois florestas inteiras de um metal-vegetal indestrutível erguendo-se por metros e metros.
O deenério, apesar de ser inerte, mais mineral do que vegetal, tem características muito peculiares. Ele retém calor e o emite de volta de forma acentuada. Sua estrutura captura continuamente oxigênio da atmosfera para construir as pontes que ligam seus dois filamentos. É uma rocha que respira, que disputa conosco o oxigênio, e que tem potencial para se multiplicar exponencialmente.
Ele repetiu para garantir a ênfase necessária ao alerta: seja produzido em laboratório ou na natureza, o deenério tem potencial para aquecer o ambiente a seu redor, reduzir o percentual de oxigênio na atmosfera (afetando não só aos seres vivos como aumentando, proporcionalmente, a presença de dióxido de carbono) e, sendo indestrutível. Não há como ser reciclado, triturado ou derretido. Uma floresta de deenério ficaria lá para sempre, absorvendo mais e mais oxigênio e exalando calor. Um navio de deenério vagaria para sempre no mar, aquecendo as águas ao seu redor.
Buscou seus interlocutores na platéia. Não estavam mais com ele. Seus olhos refletiam suas palavras de volta. Os alertas que verbalizava ricocheteavam velozmente, voltando para si, rasgando-lhe a alma. Só via chamas dentro de cada olhar. Eles não o ouviam. Deeneritas brotavam em suas mentes.
O público sonhava com edifícios, com estações espaciais, com foguetes, navios, carros. Sonhava com estradas de deenério, pontes, túneis. Elevadores espaciais. Eles não o ouviam. Lembranças de seus pais ocuparam o palco principal em sua mente. Olhou para as mãos que voltavam a tremer. Podia ver suas veias e artérias, como se sua pele fosse feita de deenério, translúcida. Seu sangue era cinza-chumbo. Era mercúrio. Ele era um homem-mercúrio e tinha acabado de contaminar toda a platéia. A respiração ficou curta, e rápida. Filetes de suor começaram a escorrer pelas têmporas. Por um instante, imaginou que perderia apoio na perna direita.
“A inviabilidade circular”, subiu o tom e aproximou o microfone do rosto, “a inviabilidade circular do deenério, somada ao potencial devastador de sua natureza, torna-o um risco ímpar à vida na Terra. Ele tem potencial para criar as condições ideais para sua própria replicação, instaurando um ciclo vicioso e sufocante. Por isso, é ímpar a organização de um esforço internacional para suprimir a espécie, resguardando-a somente em seu ambiente nativo sobre rígida vigilância, e que não nos deixemos levar pela ganância, pondo a perder todos os esforços empenhados em iniciativas como o movimento NetZero e os pactos globais pela reversão das mudanças climáticas.”
As pessoas digitavam freneticamente em seus celulares. Não o ouviam, ele tinha certeza. Ignoravam todos os alertas, todos os avisos. A respiração ficava cada vez mais curta. Calor. Mais uma gota escorreu pela testa e nublou sua vista esquerda. Queria gritar. Queria voltar no tempo. Recusar o convite. Apagar todos os dados de sua pesquisa. Não tinha como. Era um cientista, acima de tudo. Cientistas pesquisam, descobrem, relatam as descobertas. Aquela era a descoberta do século. Talvez a última descoberta de todas. Seria um crime não relatá-la. Foi um crime relatá-la.
Só percebeu que tinha chegado ao slide final quando os aplausos começaram a surgir, empolgados. Alguns presentes se levantaram. Um enxame subiu ao palco. Mãos vinham de todas as partes para lhe cumprimentar. “Será uma nova revolução industrial”, diziam alguns. “Os efeitos são claramente compensados por outros aspectos”, celebravam outros. “imagine estruturas jamais sequer consideradas”, “as patentes precisam sair antes que os chineses…”
Abriu caminho entre a multidão que o orbitava, acompanhando o rodopiar do auditório. Cambaleou até uma saída de emergência, afrouxando o nó da gravata enquanto tentava divisar o caminho em meio a toda névoa, até o momento em que se perdeu. Tudo era branco, uma fumaça. A cabeça doía, o peito, como um fole, inspirava e expirava com força, mas o ar não era suficiente.
Confuso, tirou o paletó, e sentou-se sobre algumas pedras. Pontas de grama seca alfinetaram a pele através da calça. Estava imerso numa nuvem de vapor quente, irrespirável. Puxou o ar com força e se ergueu. Andou alguns passos até que tocou numa parede quente. Agitou as mãos para dissipar a névoa, e percebeu, de relance, uma imensa estrutura de deenério que se erguia até onde a vista alcançava, translúcida como água, sólida como rocha.
Tateando, margeou a muralha até o ponto em que uma rocha deslizou sob seu pé e rolou ribanceira abaixo. Recuou um passo, depois se ajoelhou. Estava à beira de um penhasco, ou de uma falésia. O vapor se tornava menos denso dali para baixo, e a visibilidade era maior. Estava no litoral. Uma longa faixa de corais esbranquiçados e sem vida estendia-se por toda a costa. Encalhados no recife, dezenas de metros adiante, quatro grandes embarcações pareciam abandonadas, amontoadas. Eram feitas de uma liga quase transparente e muito fina. O ar tremulava acima dos barcos, sinal de ar quente subindo dos destroços.
A dor de cabeça era insuportável. Sentia-se exausto com a falta de oxigênio. O peito chacoalhava com o retumbar rápido do coração. Nada fazia sentido. A alucinação, as vozes chamando seu nome à distância. O deenério e a deenerídia não faziam sentido. Toda sua vida buscou entender as coisas como parte de um grande ciclo. Integrou a natureza à economia. Lutou para que finalmente se entendesse coisas básicas como a necessidade de reintroduzir tudo no ecossistema. Não existe lixo, nada é eterno e tudo se transforma, é alimentado por algo e alimenta outro. Não existe jogar fora etc etc.
O mundo começou a escurecer, o negrume corroendo as bordas do campo de visão, um silêncio macabro o encobrindo. Até que cedeu e fechou os olhos. Não sabe quanto tempo ficou imerso no vácuo da existência, saboreando uma paz que reconhecia ser efêmera. Abriu novamente os olhos.
Estava a grande altitude. Conseguia distinguir cadeias de montanhas abaixo de sua linha de visão, os traçados e blocos cinzentos de cidades distantes. Não voava. Estava preso a um emaranhado translúcido de fitas de deenério, braços abertos. Era um espantalho em sua própria plantação.
Por mais que tentasse, não podia se mover. As fibras refutavam qualquer tentativa de se libertar. O ar era mais fresco e o corpo já não protestava por mais oxigênio. Uma leve brisa tocava seu corpo e ele oscilava preso à floresta do maldito mineral orgânico.
A deenerídia rompeu todas as suas crenças. Uma espécie que pouco interage com o ecossistema ao redor — pelo contrário, sua existência ameaça o delicado equilíbrio de onde se instala. Excreta uma substância indestrutível. O que surge dela não se decompõe, não se permite quebrar, triturar, derreter. Uma vez brotada ou tecida a teia de deenério, ela ficará para sempre. O círculo se rompera, o ciclo fora interrompido.
Uma borboleta passou voando por ele, enorme. Lembrava uma bela monarca solitária. Seguiu-a com o olhar. À sua frente, um punhado de terra tinha sido erguido aos céus por uma trama de deenério. No pequeno ninho de barro, brotara uma única deenerídia. A borboleta ignorou a flor e seguiu seu rumo pelo céu. Miguel fitou a flor, salivando e praguejando, odiando-a e a si mesmo. Foi quando ouviu uma voz se formar em sua mente, monótona, fria, nem bela nem feia, mas inédita.
— Não se culpe. Aconteceria de qualquer forma. É parte do ciclo, do grande círculo.
— Que ciclo? É uma praga. Você se espalha, cresce, vai matar todo o resto só para seu próprio proveito. Eu sei, eu sinto, eu vi. Em alguns anos, o planeta estará coberto por um manto sólido de deenerita, um forno assando tudo acima e abaixo da estrutura.
— Essas são as condições ideais para que o ciclo prossiga. Esperamos pacientemente por muito tempo.
— Mas será o fim da vida na Terra.
— Você vê o ciclo como restrito a seu planeta. Como alguns humanos de seu tempo, olham para o horizonte e, incapazes de perceber a curvatura da Terra, afirmam que ela é plana. Incapaz de ver a curvatura do tempo, você olha para nossa chegada e nos vê como uma reta violando o ciclo da natureza. A verdade é que você ignora a natureza, conhece uma pequena parte, um dos pequenos ciclos que se unem, como uma grande corrente, em um ciclo maior. Nós somos o próximo elo.
— Nós?
Os filamentos de deenério se agitaram e ele foi lentamente propelido em direção ao montículo de terra e sua solitária flor. Imaginou-se um príncipe sendo dominado por uma rosa egoísta e infeliz. A trama parou de se mover a uns 20 centímetros da planta. Seu cheiro não era agradável.
— Você por acaso diria que a borboleta mata a lagarta que a precede? Que borboleta e lagarta não fazem parte de um ciclo? Diria que a concha que se formou ao longo de centenas de anos não faz parte do ciclo do caranguejo? Vocês são a lagarta. Nós somos o casulo e a crisálida.
— Quem é a borboleta?
— Elas estão chegando. Precisamos deixar a Terra pronta para quando elas chegarem. E, assim, o ciclo poderá continuar.
Cansaço. Confusão. O que era aquilo? Onde estava o auditório, a palestra? Respirou, mas o ar era ralo novamente. Vozes muito distantes gritavam coisas incompreensíveis. Estava mais alto que as montanhas, crucificado pela liga que ele mesmo descobriu, discutindo o futuro do planeta com uma flor feia, maldita, fedorenta, cruel. Tentava odiá-la. Queria dilacerá-la com os dentes. Não conseguia. Era viva. Era vida. Era a vida seguindo seu rumo… seu ciclo.
— Chegando de onde? — perguntou num sussuro, o corpo desistindo de qualquer esforço.
— Do que vocês chamam de fora. Do espaço. Que nada mais é que parte do mesmo todo.
Sentia-se diáfano, abstrato, um tanto quanto anestesiado. Efeito da baixa oxigenação, justificou-se.
— Então é isso? É assim que acaba?
— Acaba? Nada acaba. Você ainda não entendeu. A grama vive no gado. O gado vive no homem. A Terra viverá em nós. Até o dia em que todos nós viveremos no sol em expansão. E, ao fim do ciclo do universo, viveremos na explosão que reiniciará o tempo.
— E eu? O que será de mim? — envergonhou-se da pergunta egoísta, mas a luta para manter a consciência esvaía todas suas forças e amarras.
— Você faz parte do grande ciclo. Agora vai continuar seu caminho. Sinta, você também se libertou de seu casulo.
Ouviu atentamente e só recebeu silêncio. Nada pulsava dentro de si. Nenhuma voz chamava seu nome. Uma lágrima escorreu. Tudo fez sentido. Prestou atenção ao vento que o tocava suavemente. Desviou o olhar da flor para se despedir das montanhas e das cidades lá embaixo. Cerrou os olhos. Imaginou-se voando, asas diáfanas reluzindo ao sol. Percebeu que a treliça de deenério não mais o prendia. Voava. A cada lufada de ar sob o novo corpo, dissipavam-se as lembranças dos dias de lagarta sobre a terra.