Corações partidos fazem chover
Do topo de um prédio, duas pessoas vestindo capas de chuva amarelas observavam um mundo cinza a seu redor, do céu aos prédios convertidos em pesadas nuvens de vidro, aos carros impacientemente engarrafados, ao asfalto encharcado sob os veículos.
O mais baixo tremia de frio, e mantinha as mãos nos bolsos da capa. Seu celular vibrava no bolso da calça com contínuas notificações. Ele sabia que precisava aproveitar ao máximo aquele exótico e raro encontro, mas mesmo assim estava tenso, como se o corpo reagisse numa espécie de crise de abstinência por não obedecer ao chamado imperioso do aparelho eletrônico que exigia atenção.
O mais alto apenas observava a chuva, que caía sobre as capas fazendo plec-plec. Não se movia, nada falava. Quando respirava, uma tênue nuvem de vapor se misturava às nuvens baixas que os cercavam.
O mais baixo rompeu o silêncio.
— Então… você disse que eu iria entender o impacto de minhas ações aqui, mas tudo que vejo é chuva. Minha empresa faz muitas coisas, mas chover ainda não é uma delas.
— Você tem pressa — respondeu a figura alta. Com as costas das mãos de dedos longos e pálidos, ele enxugou a testa. Depois, ficou alguns segundos observando as gotas escorrendo pelos dedos e pela mão. Estudava atento como elas demoravam alguns segundos a se misturar com os pingos de chuva — Você sabe de onde vem a chuva?
O mais baixo começou a pensar seriamente que aquilo tudo poderia ser uma pegadinha. Desde que acordou estava acompanhando aquela figura alta, que diz ser seu Guardião, Anjo da Guarda, Tutor ou algo assim. Já tinha viajado meio mundo, revisto cenas de sua infância e até mesmo ouvido o que seus funcionários falavam dele, como se invisível fosse. Ou essas experiências eram reais ou ele precisava patentear urgentemente a droga ou tecnologia que esse maluco estava usando. De qualquer forma, achou melhor ele dar corda e seguir com aquilo.
— Da evaporação, o vapor se condensa nas nuvens…. ah, você deve querer falar de Amazônia, rios voadores… olha, tá frio, eu tô todo molhado, e se a ideia é me dar alguma visão educativa, isso não tá funcionado — Ele tirou as mãos dos bolsos da capa de chuva e gesticulava. O telefone vibrava em seu jeans.
O mais alto se virou e o encarou com o rosto fino e pálido. A expressão tanto podia ser desprezo como pena.
O mais baixo sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Provavelmente era o frio. Então notou que o celular já não vibrava mais. E que seu smartwatch, que teoricamente era à prova d’água, já não passava de um quadrado preto em seu pulso.
Uma espécie de paz o invadiu. Ia comentar o fato, mas foi o Guardião que falou primeiro.
— Corações partidos. Corações partidos fazem chover. Não sobre a pessoa, como nas histórias em quadrinhos em que uma personagem tem uma nuvem preta sobre a cabeça — olhou para o céu e para as nuvens escuras cobrindo toda São Paulo — Sempre que alguém transborda de tristeza mas não chora, as lágrimas não vertidas viram chuva em algum lugar.
O executivo tentou falar alguma coisa, mas achou mais prudente apenas ouvir. O Guardião percebeu o gesto de resignação e fez um aceno com a cabeça sob o capuz amarelo-ovo que pareceu, ao mais baixo, um sinal de aprovação.
— Quanto mais pessoas sofrendo, e quanto mais elas guardam o sofrimento para si, mais lágrimas caem do céu. Todo mundo tem seus dias ruins. E todos tem dias solares, alegres. Eles se equilibram. Se não fossem os dias ruins, que valor teriam os bons? — o Guardião começou a caminhar lentamente pela borda do terraço, contornando o heliporto. O executivo o acompanhou, feliz por pelo menos poder se mexer um pouco para afastar o frio.
— Mas se as pessoas ficam mais e mais tristes e não têm com quem chorar, esse equilíbrio se afeta. E há o outro lado também. Se as pessoas simplesmente param de sentir, pessoas com rostos doces e adoráveis sem nada dentro.. nesses casos não há nem chuva, nem sol. O deserto de suas almas se espalha como mares de areia em seu planeta.
— “Meu” planeta? — o executivo não conseguiu segurar a pergunta, enquanto parte de seu cérebro tentava processar esse mar de informações tão distante de sua realidade quanto a piscina em forma de lua de um condomínio vizinho ao prédio de sua empresa de tecnologia, onde estavam. Qual teria sido a última vez em que ele tinha ido a uma piscina com a família? Não lembrava.
— Acho que você já tem informações demais para processar, não tem? Vamos voltar ao assunto principal e motivo de ter me revelado a você de forma tão explícita e didática — O Guardião usou um tom repleto de autoridade, e não restou ao executivo outra opção a não ser voltar ao tema da chuva e dos sentimentos.
— Tá, desculpe. Você quer me dizer que o clima, na verdade, é causado pelos sentimentos das pessoas. E se o sentimento das pessoas varia fora do normal, o clima fica fora do normal.
— Muito bem. Parece que você finalmente está entendendo — abriu os braços com as palmas das mãos abertas — Sinta a chuva. Apenas sinta. Olhe a seu redor. Veja o mar de lágrimas. É um mar de desilusões, mas também de redenção. Pessoas colocando a dor para fora, empilhando sofrimento em sacos pretos e levando para a calçada, para poderem varrer suas almas e reorganizar suas vidas.
Ele imitou o Guardião. Percebeu as gotas. Fechou os olhos. Não como um clima ruim que atrapalhava seu dia e o fazia sentir frio, mas como histórias. Cada gota como a história de alguém que se conectava a ele de forma tangível.
Não teve muito tempo para aproveitar a nova sensação. Uma claridade forte invadiu suas pálpebras fechadas, e pôde perceber cada gota evaporando rapidamente de seus cabelos e da pele dos braços. Abriu os olhos e estavam, ele o Guardião, no alto de uma duna em um dia ensolarado no deserto. Percorreu o horizonte a seu redor. Dunas. Areia por toda parte e nada mais que areia para qualquer lado que se virasse. Os pés afundavam sob o solo fofo.
— Esse é o oposto da chuva. O oposto da tristeza não é a alegria, mas o vazio, a apatia. Quanto mais pessoas escolhem não sentir, mais árido fica este deserto. E mais áreas outrora verdes, cheias de vida e sentimentos, se transformam em apenas areia.
— Tá, mas e aquele papo de aquecimento global? E tem também catástrofes, tipo furacão, terremoto… eles também deixam estragos… — aquela conversa fazia cada menos sentido para o executivo. Ou era uma parte de si que já sabia para onde o papo seguiria e se antecipava, com medo, ao veredito. Ele se sentia como o velho Scrooge ao lado do Fantasma do Natal Passado, e não se sentia bem em viver aquele papel.
— As coisas estão interligadas. E, sim, não adianta você amar as pessoas e queimar florestas e petróleo. Continuem com esses cuidados — explicou o Guardião, esboçando o que parecia um leve sorriso. — Quanto às catástrofes… bem, lágrimas alimentam as chuvas, a apatia torna o mundo um deserto. Mas quando muitas pessoas se quebram, o mundo se quebra junto. Você sabe, quando alguém perde o controle, não aguenta mais… quando a pressão é tanta que ela explode… para o humano, é uma explosão em sentido figurado, ainda que muitas vezes seja fatal, mas para o planeta, são explosões violentas. Vulcões, terremotos, furacões.
O executivo se abaixou. Pegou um punhado de areia, quente e amarelada. Ela escorria por entre seus dados, fina como a areia de uma ampulheta. A sensação era absolutamente real. Tanto quanto o sol queimando sua nuca. Percebeu então que já não usavam as capas de chuva amarelas, mas roupas grossas que os faziam parecer dois beduínos no meio do Saara. Não tinha como aquilo ser um sonho, alucinação ou realidade virtual.
Ele sentiu que era hora de chegar ao ponto final desta viagem.
— Ok. O que eu faço? O que você espera de mim?
— Eu não espero nada — respondeu o Guardião, olhando para o sol sem que sua luz parecesse incomodar — Eu lhe guardo, não o comando. E meus, digamos, colegas guardam outras pessoas e me pediram para conversar com você. Não lhe peço nada, apenas que reflita sobre seu papel nisso tudo.
— Meu papel? Peraí, não sou presidente de um país, eu não tenho fábricas poluindo. Eu só trabalho com tecnologia, crio aplicativos.
— Como é que vocês chamam aquilo que vocês usam para… orquestrar a forma como as pessoas usam seus… aplicativos?
— Algoritmo?
— Isso. Algoritmo. Como ele funciona?
— Ele ajuda as pessoas a encontrarem conteúdos. Se ela vê tal coisa, o sistema mostra mais coisas parecidas, e por aí vai.
— E com isso elas ficam bastante tempo vendo o mundo por seus aparelhos, não é? E se o… algoritmo entende que elas estão com uma determinada emoção ou ideia, mostra mais coisas com a mesma emoção e ideia.
— É, isso mesmo — o executivo tremia. Não entendia muito de emoções represadas e lágrimas, mas sabia muito bem prever para onde um raciocínio pretendia levar o interlocutor.
— Então…
— Então eu afeto o sentimento das pessoas para poder lucrar com publicidade. E eu faço com que elas, no fim, ou explodam ou simplesmente virem… desertos, pessoas ocas.
— Muito bem. Você finalmente entendeu.
— Mas que magia é essa? Como é que eu tenho o poder de fazer chover apenas mostrando coisas tristes paras as pessoas?
— Dessa vez você errou completamente. Primeiro, não é magia. Não gosto de entender as coisas como mágicas. No mundo da magia tudo é possível, então nada tem valor de fato. Magia é apenas uma ciência ainda não compreendida. Segundo, você não tem poder algum. A emoção é das pessoas, deixar de sentir é uma decisão pessoal também, inconsciente, sim, mas pessoal. Você é, digamos, o gatilho. Um gatilho poderoso.
O executivo agradeceu em pensamento quando o Guardião começou a caminhar pela duna, suas pegadas sendo rapidamente apagadas por grãos de areia que ocupavam os buracos deixados. O seguiu, feliz por pelo menos poder mudar o ângulo em que o sol queimava sua testa e pescoço. Subiu a gola do manto de pano pesado e percebeu que seu manto também tinha um capuz nas costas. O colocou. O Guardião prosseguiu.
— Vocês são feitos disso aqui — apontou para a areia e para o horizonte, em um gesto amplo. O executivo então percebeu como os braços do Guardião eram longos. Exageradamente longos. — Cada átomo de seus corpos vem do seu planeta. E, na verdade, cada parte de você existe há bilhões de anos. E antes de fazer parte de seu planeta, já fizeram parte de estrelas, que já foram outras estrelas e por aí vai. Quando vocês morrem, voltam a fazer parte desse todo.
É natural que boa parte de seus átomos estejam ligados a outros…vocês têm um nome para isso… ah, sim, entrelaçados. Você está inevitável e inexoravelmente entrelaçado com o mundo. O que acontece com você, acontece com esse par emaranhado.
— Tipo uma alma gêmea?
— É. “Tipo” uma alma gêmea. Mas nesse caso, seu par não é necessariamente um humano. Pode ser outro ser vivo. Uma pedra. Água. Areia — Chutou um punhado de areia e ela subiu e desceu lentamente, chovendo como gotas áridas. — É por isso que quando seus corações partidos choram, chove. Quando eles se endurecem, seca. Quando eles explodem… o mundo explode.
— E você quer que eu pare de afetar esse equilíbrio, certo?
— Eu não quero nada, já disse. Você é que precisa querer, a vida é sua, o mundo é seu.
— Tá. Você pode até não poder me pedir ou ordenar algo por alguma regra aí de vocês, mas eu entendo de negócios, entendo de negociações e entendo de desejos. Ninguém marca uma reunião de um dia inteiro indo pro alto de prédios e desertos sem querer nada. Então, me deixa refazer a pergunta: que escolha e ação minha, totalmente independente e pessoal, deixaria você feliz, ou satisfeito, ou com sentimento de missão cumprida? Vamos, fala. Vamos acabar com isso. Ainda que você não queira nada, que conclusão dessa história o deixaria feliz?
O Guardião pigarreou. Respirou fundo e jogou para trás o capuz de seu traje de pessoa do deserto. O executivo teve a impressão de que ele estava ainda mais alto. E seu rosto… embora tivesse dois olhos, nariz e boca, embora tivesse orelhas e um cabelo cinza-prateado curto, o rosto… não parecia humano.
— Existe um minério. Normalmente ele se apresenta em pequenos grãos. Tão pequenos e insignificantes que vocês nunca se deram ao trabalho de dar um nome para ele — Dessa vez, foi o Guardião que se abaixou e pegou um punhado de areia com as mãos. Os grãos escorriam lentamente por seus dedos desproporcionalmente longos. — Esse grão não tem qualquer valor ou função para vocês, mas ele é vital para meu povo. É a base de nossa energia, de nossa alimentação, daquilo que são feitas nossas construções… enfim, tudo.
— Meu povo não foi sábio. Também fazemos burradas. Esse não é um monopólio humano — caminhava pela areia, em passos curtos. Parecia envergonhado de chegar finalmente ao ponto-chave de sua explanação. — Enfim… este minério está acabando em minha casa.
Limpou as mãos no manto para retirar os grãos de areia que ficaram grudados. E prosseguiu:
— Então fomos mandados, eu e meus colegas, para cá. Para servirmos de guardiões da grande reserva deste minério que existe aqui. E para cuidar de vocês. Garantir que vocês mantenham o equilíbrio, produzindo suas chuvas, ventos, areias e… nosso minério.
— Você já deve ter entendido que o que vocês sentem transforma o mundo. Então, quanto mais de alguns sentimentos, mais deste minério. E você parece ter descoberto o gatilho perfeito para que os humanos produzam mais e mais dele. O suficiente para salvar todo meu povo. Por ordens superiores, eu não posso obrigá-lo a me ajudar, nem pedir. Mas posso lhe mostrar que os resultados podem ser muito satisfatórios.
— E que sentimento é esse que você precisa… digo, que você ficaria feliz se meu aplicativo fizesse crescer nas pessoas?
— Ódio.
— Ódio? – O executivo parou. O Guardião seguiu caminhando alguns passos. Então também se deteve e se virou. O executivo insistiu na pergunta. — Ódio? O que eu ganho instigando o ódio? Por que faria isso?
— O que você ganha instigando ódio? — perguntou o Guardião, sorrindo. — Há mais que preciso lhe mostrar.
E, num instante, eles foram transportados do deserto para o berço de outra máquina de instigar ódio e construir fortunas: a Alemanha dos anos 1930.
Join the discussion