Medo do escuro
Algo se movimenta na mata, uns 50 metros à frente da torre de vigia. O soldado pega o binóculo, dá pausa no antigo MP3 player que toca Iron Maiden e tenta identificar o que é, prendendo a respiração. Na moldura circular de cada lente, apenas galhos levemente prateados pela lua cheia que torna a noite menos escura e assustadora. Movimenta o visor para a direita, nada. Faz o mesmo movimento para outro lado. Um vulto desaparece de súbito deixando um galho baixo agitado. Engole em seco.
Com um arrepio na nuca, retira o binóculo da frente do rosto e, instintivamente, olha a seu redor na solidão da torre de vigia. Ninguém, claro. Ninguém aparecerá até a troca de turno às 6h da manhã. Volta ao binóculo e à mata. Finalmente, identifica quem estava se movendo. Ou o quê. Mais um cervo. Ou talvez o mesmo, que insiste em passear à noite pela mata naquela região de fronteira em plena guerra.
Não há campos de batalha por perto, no entanto. E os dias e noites se sucedem sem nada que torne a torre de vigia diferente de um acampamento de escoteiros. Ou melhor, há uma diferença: o medo.
Dá play novamente na música. Adrian Smith explora dedos ágeis para transformar cordas esticadas em uma metralhadora de notas musicais agudas, rápidas, precisas. O soldado coloca o binóculo de volta na bancada. 50 metros abaixo dele, outros jovens dormem, esperando o dia de morrer por seu país invadido.
“Será que estão mesmo dormindo? Será que conseguem?”, pensa o soldado enquanto varre lentamente todo o perímetro com o olhar. Ao Norte, uma clareira de algumas dezenas de metros entre a casa e a base da torre e as primeiras árvores de uma mata densa. “Será que conseguem fechar os olhos e não imaginar que tem alguém ali, perto, pronto para atacar?”.
À Leste, a mesma floresta continua, menos densa, descendo levemente a colina de onde a torre tem uma vista panorâmica de uma vasta região. “Eu não conseguiria. Por esse lado, foi sorte ficar com o turno da noite. Porque tem alguém ali. Eu sinto. Só não consegui ver ainda.”
O Sul tem uma vista completamente diferente, com um riacho de água prateada serpenteando colina abaixo. É um riacho de água lenta e prateada ao luar. Quando os pássaros e outras criaturas da noite sossegam, dá para ouvir o ruído da água deslizando sobre as pedras. Do outro lado do riacho, uma pradaria que talvez tenha sido pasto de gado, ovelhas ou algo assim. “Os caras riem quando eu falo do medo, me chamam de mulherzinha. Mas, porra, o que eu posso fazer? Eu sinto. Algo não está certo.”
O lado Oeste da torre de vigia é dominado por um campo parecido ao pasto do Sul, que segue por umas centenas de metros até um paredão rochoso, que hoje está na penumbra da Lua que logo sumirá atrás da montanha. “Só mato. Cervos. Corujas. E mais mato. Não tem nada aqui. Ninguém aqui. Só esse bando de idiotas protegendo o nada, essa noite maldita, esse medo maldito e esse cervo maldito que toda noite me assusta.”
Senta em um banco. Não há muito conforto, nem muito espaço, no alto da torre. Acende uma lanterna e marca em um caderno o horário da ronda. Tem alguns minutos até a próxima. Pausa a música. Estica as pernas e olha a lua se afundando lentamente atrás da rocha à sua esquerda. Atrás dele, o rio se transforma de um fio prateado em uma língua negra e sem graça. A noite fica mais escura.
Tem a impressão de que os animais da floresta sentem a ausência da lua e se recolhem. Tudo fica mais silencioso. Até o vento parece ter resolvido deixar de soprar. O único som é a água correndo no riacho atrás dele. Ele torce para que o maldito cervo que todo dia o assusta ao caminhar pela mata também esteja quieto, dormindo.
Envolto na escuridão, e embalado pelo som do riacho, fecha os olhos. Adormece. E sonha.
No sonho, ele não está na torre, mas lá embaixo, na mata. Pela primeira vez em muitos dias não sente medo. Nada. Porque agora ele é o caçador. Veste roupas de couro e carrega uma grande faca. Ele se esgueira pela mata, passos leves. Com habilidade, se contorce para passar por galhos baixos sem que uma única folha se agite.
No silêncio e na escuridão, ele avança, sereno e concentrado, até encontrar sua presa. O cervo, que pasta lenta e sonolentamente entre árvores antigas. Contorna a pequena clareira onde está o cervo. Acerta a empunhadura da faca, flexiona os joelhos e salta sobre a presa, pleno de coragem.
Acorda num susto, a tempo de perceber a respiração de alguém atrás dele e, mesmo na escuridão da noite agora sem lua, com o canto dos olhos nota o brilho de uma longa faca rente a seu pescoço.
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