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Cortázar e nós, seus herdeiros

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Roberto Cassano
Capas dos livros "Contos Completos volume I" - Julio Cortázar, "Biblioteca além do tempo" - Pedro dos Santos e "Som do fim do mundo", de Maicon Moura.

Cheguei à metade da #MaratonaCortázar, com a conclusão do primeiro volume de “Todos os contos, que englobam todas as narrativas curtas do mestre argentino Julio Cortázar publicadas entre 1945 e 1966. Que viagem, meus amigos, que viagem! Trago aqui mais algumas percepções e, de brinde, duas leituras contemporâneas, de autores nacionais que (muito provavelmente) beberam de Cortázar e Borges. Afinal, é exagero dizer que todo apaixonado por contos é, antes, apaixonado por pelo menos um entre Poe, Borges e Cortázar?

Faltavam apenas dois livros para concluir esta etapa da jornada: “Todos os fogos o fogo” e “Histórias (inesperadas)“. Dessa leva, destaco o inebriante “O outro céu“, que se teleporta para lá e para cá no tempo e no espaço entre Buenos Aires e Paris de forma tão trivial (e mágica) como se atravessa uma galeria subterrânea. Sabe a sensação de que o aeroporto é um não lugar?

Pense num aeroporto. Num elevador (que é como começa o “O fim do Mundo“, do Murakami, em um elevador). Aeroportos, elevadores, passagens subterrâneas e, talvez, galerias (assim como os shoppings contemporâneos) são não-lugares, porque conectam a partida à chegada e, em geral, tendem a ser ambientes neutros. Quando se atravessa o portão de desembarque ou as portas do elevador shopping se abrem, você não se assusta se pôr os pés em Buenos Aires, Paris, Maceió, Madureira ou o terceiro andar.

Também me impactou demais o derradeiro texto, “Manuscrito encontrado ao lado de uma mão“, sobre um homem que descobre ser capaz de danificar violinos ou outros instrumentos musicais ao pensar em sua tia. E também “Autoestrada do sul“, que narra um engarrafamento, e “Reunião“, uma história de guerra, do qual trago o parágrafo de abertura:

“Nada poderia ir pior, mas pelo menos já não estávamos naquela maldita lancha, entre vômitos e lambadas de mar e pedaços de bolacha molhada, entre metralhadoras e babas, em estado lamentável, consolando-nos quando podíamos com o pouco fumo que permanecia seco porque Luis (que não se chamava Luis, mas havíamos jurado que não nos lembraríamos de nossos nomes até chegar o dia) tivera a boa ideia de guardá-lo numa lata que abríamos com mais cuidado do que se estivesse cheia de escorpiões.

Biblioteca além do tempo

Deu tempo para mais contos. Um é o lançamento mais recente do talentoso Pedro dos Santos, “Biblioteca além do tempo“. A narrativa une ficção científica, fantasia e História para nos apresentar um duelo que percorre o tempo. Velhos inimigos (será?) se encontram na Biblioteca de Alexandria. Ela será mandada pelos ares, como sabemos (sabemos?), mas por quê (e se)? É um supense que começa pelo meio, supera o fim para, finalmente, chegar ao início. O texto já começa com dois pés na porta:

Os anos intermináveis no vaivém do tempo me trouxeram de volta ao mesmo instante. A questão nunca foi onde, mas quando eu o encontraria. Era certo que minha última missão, aquela pela qual nunca recebi ordens, aconteceria aqui, na Biblioteca de Alexandria. Foi onde tudo começou. É aqui, e agora, que tudo deve terminar.

Vi muito de Borges, aqui, não sei se era a intenção do autor. O tema viagem no tempo e seus paradoxos é muito fascinante. Asimov o explorou com sagacidade em “O fim da eternidade“, assim como quase todos os mestres do gênero. Por isso mesmo é tão difícil trazer algo novo, como Pedro conseguiu.

O som do fim do mundo

Outra experiência com contos foi a descoberta de mais um bom autor brasileiro, Maicon Moura. Enquanto não leio seu romance de estreia, que me capturou totalmente pelo mote e sinopse (“Não quero patos elétricos“, uma aventura no espaço em busca de um raro pato de verdade), explorei o “Som do fim do mundo“. São 10 contos que oscilam entre realismo mágico, fantástico e SciFi, e também entre socos no estômago (“As estrelas do lago” e “Coma“) e uma abordagem divertida, SciFi biruleibe raiz, deliciosa, como em “O som do fim do mundo“, “Disco da Terra” e “Não pergunte“). Super recomendo.

Tem muito de Douglas Adams, outra que também faz parte de minhas maiores referências, nos contos SciFi de Maicon. Mas se existe um bom conto, de alguma forma ele faz parte da herança de mestres como Cortázar, Borges e Poe. E aqui tem vários ótimos contos. Somos todos herdeiros desses três, ainda que inconscientemente, que nem os tenhamos lido. Eles fazem parte do que se define do gênero, sobretudo para nós, na América Latina, que temos um jeito todo nosso de trazer o fantástico para nossa realidade amarga.

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