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A extinção da privacidade

Written by

Roberto Cassano
Wikimedia

Todos os novos usuários de telefones celulares da China precisarão escanear suas faces como determina uma lei que entrou em vigor nesta semana. Este é mais um passo na intensa política de uso de reconhecimento facial pelo governo chinês, o maior laboratório a céu aberto de como o uso de tecnologias sem qualquer freio podem afetar a sociedade.

Até agora, o que chega ao ocidente, filtrado pela escassa liberdade de expressão do gigante capital-comunista, é assustador. Basta acompanharmos o desenrolar dos protestos em Hong Kong e o esforço dos manifestantes em não se deixar identificar por câmeras de segurança.

Orwell era chinês?

Reconhecimento facial, controle das comunicações, gigantescos bancos de dados e o igualmente controverso sistema de crédito social (basicamente o episódio Nosedive, de Black Mirror, só que pra valer) fazem a China parecer o Lex Luthor global da privacidade. O país caminha para ser o primeiro em que o conceito de privacidade seja inteiramente extirpado da sociedade.

Utilizadas pelo próprio governo autoritário do país e com acesso crescente a dados produzidos por mais de 1 bilhão de pessoas, as avançadas tecnologias de reconhecimento facial e inteligência artificial — duas frentes em que a China nada de braçada — podem ter impactos sinistros e inéditos na vida dos chineses, sem que não haja qualquer órgão regulador que possa agir. Quem discorda do que é feito não tem a quem recorrer.

A China é aqui

Não que a China seja uma Lois Lane nessa história, mas é fácil culpar um regime autoritário e quase caricato como é a imagem do gigante asiático no ocidente. Ao utilizar recursos como desbloqueio facial em nossos celulares ou marcarmos familiares nos álbuns online e fotos em redes sociais, estamos sendo voluntários em experimentos similares. Sai um governo autoritário, entram empresas, fica a montanha de dados fornecida gratuitamente. No primeiro caso, pela força de leis draconianas. No segundo, em troca de um filtro bacana, uns segundos a menos para desbloquear o celular ou para não deixar passar o meme do momento. Em todos os casos, a privacidade torna-se um conceito em extinção.

Nenhum dado a mais. Nenhum direito a menos (será?)

Conhecer o outro é uma vantagem competitiva. O governo que conhece mais seus cidadãos que as pessoas ao governo tem vantagens sobre seu próprio povo. Idem para empresas, que cada vez nos conhecem mais e mais. Se não há governo que controle a si mesmo na China, é imperativo lutarmos para que as empresas que coletam nossos dados sejam transparentes no uso que pretendem dar a eles, que os armazenem de forma segura e, sobretudo, que possamos efetivamente ter controle sobre quem sabe o que sobre a gente.

Empresas hoje sabem exatamente onde você está agora, com quem, onde esteve nas últimas 24h e para onde provavelmente vai. Com quem você falou, o que comprou, o que comeu, que música ouviu, que seriado está vendo e por aí vai. Isso em si não é trágico, embora preocupante. A conta pode até fechar, desde que esse mar de informações não esteja numa terra sem lei.

Existem regulamentações, órgãos de controle e princípios pra isso, mas, como na luta por uma web saudável e democrática, não dá pra ficar apenas esperando que terceiros resolvam a pendenga pra gente. É uma briga pra encararmos continuamente, como consumidores, como indivíduos e organizados em sociedade, e pra ficarmos de olho em todos os movimentos do mercado e de governos (especialmente os com vocação autoritária), olho no olho, face a face.

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