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Lentes coloridas e a saudade de Macondo

Written by

Roberto Cassano

Testando um formato novo aqui, mezzo post de blog, mezzo news de Substack, mezzo (eu sei) microblog.

A importância de se trocar as lentes

O mundo é colorido pra caramba, mas tem gente que insiste em deixar uma lente de uma cor só grudada no rosto. Para essas pessoas, o mundo é monocromático. Eu adoro, e uso à exaustão, a expressão “pra quem só tem martelo, todo problema é prego”. Muita gente (cada vez mais, eu diria, sem qualquer embasamento estatístico) virou um martelo ambulante, descendo o cacete em todos os pregos (que não são pregos) que encontra. Há quem só consiga ver o mundo pelas lentes de jurados do Shark Tank ou do Aprendiz. Para essa criatura, tudo é negócio. Nada existe a não ser oportunidades de se ganhar dinheiro. Cultura, valores, saúde, História, bem-estar, futuro, vidas, meio ambiente, coletividade, famílias, educação, ciência, arte… não é que o indivíduo seja essencialmente contrário a essas coisas, ele as ignora. Ignora no sentido de que não vê, não percebe que existem, ocultas por lentes coloridas polarizadas que transformam tudo em money.

É por isso (não só) que o debate com certas pessoas é tão difícil. Você coloca os fatos e argumentos na mesa e a criatura não consegue debater porque as coisas e os argumentos são invisíveis, filtrados pelos óculos polarizados de celofane colorido que ela usa.

Como não ter uma lente fixa? Empatia. Ler, ver, ouvir. Entender que há outras formas de viver. Outras coisas pelas quais se apaixonar. Outros pontos de vista coloridos.

Deportado de Macondo

Por algumas semanas (e quase quinhentas páginas), emigrei para Macondo fugindo da gororoba diária do mundo real. Chafurdei em aurelianos, peixinhos de ouro, flores e borboletas amarelas e animaizinhos de caramelo. Que texto perfeito, atual e eterno. O Livro do Gênesis da América Latina, desde a época em que “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo” até um momento em que “Macondo naufragava numa prosperidade milagrosa” e mil modernidades se infundiam com outras mil coisas que se recusavam a mudar.

Agora, já ciente de que “as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra“, me sinto como um deportado, privado da magia, dos acontecimentos fantásticos, da rua dos turcos, do emaranhado de Josés Arcádios, Úrsulas e afins (desde Tolkien não me era tão útil uma árvore genealógica).

Saio com saudade, com a certeza de que jamais conseguirei escrever como García Márquez e com arrependimento de ter adiado tanto a leitura de Cem Anos de Solidão. A narrativa é, entre muitas interpretações, um alerta sobre os efeitos de se perder a memória de nossa própria história. “Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem acontecerá nada nunca. Este é um povo feliz.” É fácil olharmos ao redor e nos identificarmos coletivamente com Aureliano Segundo, “que se tinha alguma coisa do bisavô e não do coronel Aureliano Buendía era uma absoluta impermeabilidade para tirar lições da experiência.” Para quem lê, é impossível esquecer.

“O mundo terá se fodido de vez — disse então — no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.

Rapidinhas

  • Quase ninguém deu a mínima para a série do Disney+, mas achei Skeleton Crew super divertida. Tudo que se espera de uma aventura Star Wars, numa total vibe Sessão da Tarde com Caravana da Coragem encontra Stranger Things censura livre.
  • Tenho lido mais coisas no Substack, mas não me animo a levar o Brogue pra lá. Já fiz essa transição uma vez, com o Medium e, no fim, manter sua casa em terreno alugado sempre termina com o dono do terreno forçando uma relação abusiva ou mudando as regras do jogo. Estou com perfil por lá, de qualquer forma. Pelo menos, ler os conteúdos escritos por lá é bem mais saudável do que encarar o buraco negro das redes sociais de vídeo (ou seja, praticamente todas).
  • Toda semana pinga leituras e, vez em quando, uma aquisição de algum de meus livros na Amazon. Não paga nem um milkshake por mês, mas é bom ver minhas criaturas ganhando o mundo. Já leu algum?
  • Outras leituras das últimas semanas: “Jardim Lunar“, de Roque Valente (Saifers), “Mortalha de Irídio“, de Rogério Pietro (Saifers), “O Refúgio“, de Liliane Alves (Saifers), mais contos de Cortázar (estou em 75% da maratona) e “Uma Galáxia Multicor e os Confins do Universo“, de Becky Chambers (Darkside).

Em algum lugar deve existir um depósito de lixo onde estão amontoadas as explicações. Só uma coisa é inquietante nesse preciso panorama: o que vai acontecer no dia em que alguém conseguir explicar também o depósito de lixo.

Cortázar

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