Rápido e Devagar: de John Scalzi a Becky Chambers
Nas últimas semanas, devorei dois livros do John Scalzi, autor que ainda não tinha lido, e mais um da Becky Chambers, que já morava em meu coração. “A Guerra do Velho“, “A Sociedade de Preservação dos Kaiju” e “Salmo para um robô peregrino” foram excelentes experiências e renderam muitos aprendizados.
Tiro, porrada e referências
Primeiro de uma série, “A Guerra do Velho” (Aleph) foi um baita cartão de visitas de Scalzi para mim. Não só o tema conversou demais com um de meus textos engavetados (protagonistas 70+), como me identifiquei muito com a escrita direta, bem-humorada e lotada de referências. Foi reconhecimento imediato. Scalzi é uma versão de minhas aventuras autorais com mais talento, sucesso e menos cabelo.
A premissa do livro é super interessante e o desenvolvimento das personagens é cuidadoso. Tive uma certa dificuldade com o excesso de cenas de ação. Num dado ponto da narrativa, cansou a sequência cinematográfica de batalhas, e a descrição detalhada dos movimentos militares. Mas entendo que era parte do que se pretendia retratar nesta ficção científica, o vazio da guerra.
Dois trechos que ilustram bem a vibe (que vai ficando um tom mais séria no decorrer das carnificinas):
“Por favor, fale o nome que você gostaria de dar ao seu BrainPal™. – Cuzão – eu disse. Você selecionou “Cuzão”, escreveu o BrainPal e, mérito dele, soletrou a palavra corretamente.”
“Sobre a pilha disforme daquele corpo, três talos com olhos nas pontas, ou antenas, ou o que quer que fosse espreitavam. Algo ocre pingava deles. H. P. Lovecraft teria saído correndo e gritando.”
Na sequência, pulei da Saga do Velho para seu lançamento mais recente, passado durante a pandemia. Como o próprio Scalzi descreve, “A Sociedade de Preservação dos Kaiju” (Aleph) é leve, dinâmico e divertido. Diz o autor: “SPK não é, e digo isso sem absolutamente nenhum desdém, uma sinfonia melancólica de romance. É uma música pop. É para ser leve e cativante, com três minutos de riffs e refrões para você cantar junto, e então termina e segue seu dia, se tudo der certo, com um sorriso no rosto. Eu me diverti escrevendo, e eu precisava me divertir escrevendo. Todos nós precisamos de uma música pop de vez em quando, principalmente depois de um período de escuridão.”
A premissa, quase absurda, nos leva para uma dimensão paralela e todo um ecossistema novo a se explorar e Kaijus (Godzillas) a se proteger. Não tem como dar errado. Soa como um livro escrito já pensando na adaptação para TV ou cinema, e é ainda mais carregado nas referências pop, inclusive à Star Wars (e, de novo, vi que trechos de Kaiju e de meu IVUC quase que poderiam ser intercambiados como peças de Lego). Diz um vilão, em certo momento: “Suponho que tenham me incentivado a ficar falando na tentativa de permanecerem vivos por mais tempo. Sim, eu conheço a estratégia dos monólogos. Eu vi Os Incríveis.”
Eu não curto muito a expressão “ressaca literária”, mas se ela existe, SPK é um Engov e tanto.
Monge faz chá e anda de bicicleta com um robô. Entenda
Da porradaria sexagenária frenética e das aventuras repletas de piadas entre Godzillas, saltei para o universo lento e contemplativo de Becky Chambers. “Salmo para um robô peregrino” (Morro Branco, com tradução primorosa de Fábio Fernandes) é um livro lindo. Li na versão impressa, assim como os dois anteriores de Becky, e o acabamento e ilustrações são primorosos. E linda é a jornada de Irme Dex (ume monge desbocade) e do robô Chapéu de Musgo (que é ruim de matemática), ambos em busca de autoconhecimento e de entender melhor o mundo em que vivem.
Becky pulveriza as fronteiras entre romances comerciais e literários. Cria uma sociedade pós-industrial sustentável, uma lua habitada orbitando um planeta gigante gasoso, todo um panteão de deuses e a relação deles entre si e com o mundo visível, e usa tudo isso para narrar a história da angústia de uma pessoa com relação a seu papel na sociedade, regada a chá e pedaladas pelas estradas da lua. O texto, curto, é profundo em reflexões e frases cativantes. A escrita de Becky é uma caneca de chocolate-quente (não bebo chá), a pessoa sentada de pernas cruzadas com uma coberta colocada por alguém sobre as costas.
Foi muito curioso pular de Kaiju para Salmo. A gente vem da pegada hollywoodiana esperando que um monte de coisa aconteça e… nada acontece. Já vinha vacinado de “Os Registros Estelares de Uma Notável Odisseia Espacial“, em que só percebi que não haveria uma trama mais retumbante quando entrei no quarto final da história. E tudo bem. A viagem de Becky não é (só) pelo tempo e espaço, é para dentro dos personagens. Seu caminho, pela utopia, é poderoso. Podemos visualizar mundos que poderiam ser, que talvez devessem ser, futuros desejáveis dos quais estamos nos afastando. Ela coloca em prática o que disse Ray Bradbury: “Ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está falando do futuro quando na realidade está atacando o passado recente e o presente.”
Scalzi e Chambers são dois exemplos de que há vários caminhos, várias formas e propósitos ao se contar histórias, mesmo dentro de um mesmo gênero. E tá tudo bem.
P.S. Curte Scalzi? Então dê uma chance a este autor que se identificou bastante com seu estilo. Veja na Livraria do Brogue onde encontrar meus textos.
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