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Como construir um passado melhor

Written by

Roberto Cassano

O incrível Silvio Meira tem uma metáfora fantástica para o tempo presente: um moedor de cana. Ele, o presente, nada mais é do que um estado transitório entre infinitas opções de futuros, dos quais escolhemos um (nosso próximo passo), e a cana moída, que é o passado.

Por essa lógica, não existe um presente, um hoje estável sobre o qual nos apoiarmos. Temos bagaço, o que passou, e temos uma constante escolha de qual insumo futuro usaremos para alimentar a máquina que transforma o amanhã em ontem. Só o passado é real.

Se o futuro é, por definição, uma multitude de coisas que ainda inexistem, e o presente é apenas o processo de passagem de um estado (irreal) para outro (real), de certa forma, o desafio de todo sonhador (ou planejador, ou empreendedor) não é mudar o futuro, é construir um passado diferente. 

De onde vêm as boas ideias?

No livro De onde vêm as boas ideias, de 2010, Steven Johnson busca outra analogia. Ele aborda o processo de inovação como um conjunto de salas. Cada sala tem várias portas. Digamos que você quer inventar o smartphone. É meio difícil, para ser otimista, fazer isso de uma sala com as opções de futuro possíveis a um inovador do século XIX.

Se você se permitir avançar pelas portas e fizer as escolhas mais adequadas (não ouso dizer corretas), uma hora você pode chegar lá (certezas só existem no passado, lembre-se). Da sala das cartas, abre-se a porta que leva ao telégrafo, da porta do telégrafo, à sala do telefone fixo, dele ao celular… até que surge uma porta que lhe permite pensar: “Hmm, e se esse treco tiver aplicativos e fizer mais do que fazer chamadas e enviar mensagens de texto?”

Uma crítica (válida) à inteligência artificial é que ela não cria coisas novas, de fato, apenas regurgita. Sim, ela funciona como um autocompletar anabolizado. No entanto, é exatamente assim que o processo criativo (ou de inovação) funciona. Isso vale para escritores, para músicos, vale para empreendedores. Não havia como saltar de Mozart para os Beatles, de Chiquinha Gonzaga para Eminem. Lembra o Marty McFly em De Volta para o Futuro, chocando a audiência do baile dos anos 50 com o rock’n roll? Aquela porta ainda não estava disponível para eles. 

Escolher dói (e isso é bom)

Acontece que a Inteligência Artificial segue a lógica do processo criativo/ inovador em uma escala de amplitude e velocidade imbatível. Mas ela é incapaz de se maravilhar com o insight. É incapaz de sentir o frio na barriga de se ter centenas de opções de cana (ou de portas) do futuro, o desconforto de saber que escolher um futuro (um único) é destruir para sempre toda a infinita miríade de caminhos desprezados. E o olhar para o passado sempre será privado do sentimento que temos quando avaliamos o caminho até ali, a percepção da jornada, que é importante para definirmos se é hora de seguir ou mudar rumos. IAs trarão sim ideias e insights incríveis. Mas são incapazes de correr peladas pela rua gritando “Eureka!” (e isso faz toda diferença).

Empreender, escrever, criar, planejar vai além de preencher campos numa lista de tarefas. Vai além de inventar ou embarcar na “próxima grande coisa”. É preciso uma visão do todo. Uma visão humana. Uma noção de que sustentabilidade é buscar algo que seja bom para si e para o todo. Não existe a parte sem o todo. Não existirão bons passados se ficarmos sem opções de escolha para o futuro. E as opções são mais variadas conforme mais pessoas estão na mesma página, nas mesmas salas, com portas únicas, mas equivalentes, a explorar. Essa escolha é e deve ser humana, em todos os sentidos do termo. Com ajuda da IA, acelerada e amplificada pela IA, mas humana. Se planejar é a arte de tirar um sonho do papel, sonhar é coisa essencialmente nossa.

Digo tudo isso como uma reflexão ampla sobre a vida, mas também para reforçar a importância dos passos, ainda que pequenos. Nos negócios, não é sustentável queimar etapas. Não adianta enfiar Inteligência Artificial (já pode ter sido criptomoeda, metaverso etc) só para estar na mesma página. Não adianta incorporar tecnologias ou modelos de negócio do século XXI em uma mentalidade corporativa do século XIX. Se você implementa uma ferramenta ou tecnologia e dá errado, pode não ser culpa da tecnologia. Sabendo-se (a hora, como, quando e por quê) usar, até o metaverso pode ser incrível.

Tudo isso pode (e provavelmente irá) gerar ganhos. Mas para ir além do ganhos e gerar valor, a evolução precisa ser sistêmica. Evoluir o coletivo para o patamar de onde as portas que se oferecerem são sustentáveis e direcionam para o leque de opções que se almeja no planejamento estratégico. Planejar (e executar o plano) é induzir o acaso (o futuro) a colocar à nossa frente as portas que buscamos abrir. Planejar é a arte de controlar o acaso.

Os modelos e as ferramentas testadas e validadas pelo tempo, sendo o elemento humano e sua criatividade o mais certificado deles, estão à disposição, e podem ser usadas para que, de um novo ponto de vista, de uma nova sala desse infinito complexo da inovação, seja possível destrancar as portas seguintes, o nível mais alto. A inovação tecnológica não é um truque ou um objetivo em si, é um convite a uma evolução sistêmica e centrada no elemento humano (não diferencio, aqui, humano de social nem de ambiental).

Não existe um presente sobre o qual se apoiar

Outra mensagem implícita nessa divagação é a de que “camarão que dorme a onda leva”. Se não existe um presente, não há como “ficar quieto no seu canto”. Não fazer nada é fazer alguma coisa. Não existe um presente sobre o qual se apoiar, apenas um tear infinito de passados. Não ousar, não inovar, não experimentar a porta seguinte é escolher a porta da repetição, é alimentar a máquina de cana com o mesmo sabor. Mas as portas, as ideias, os comportamentos, as ferramentas, as canas, elas envelhecem. Não se pode beber do mesmo caldo de cana para sempre.

Então, se não faz sentido forçar a barra com portas que não estão realmente se oferecendo, em entuchar a máquina do presente com futuros incompatíveis ou insustentáveis, tampouco é razoável fugir da experimentação, do risco, da evolução.

Tecnologias e métodos não vão, por si só, transformar seu bagaço de cana em suco de uva. Muito menos se você deixar que o acaso alimente seu moedor de futuros. Mas elas podem mudar gradualmente seu passado até que o cacho de uvas, ou a porta da vinícola, esteja ao alcance. É preciso saber para onde se quer ir, avançar, aos poucos, passo a passo, com mensuração do resultado (olhar para o passado para se aferir se o blend de futuros está correto), com coragem de experimentar, bom senso de pensar no todo (em todos). Adote o novo, teste, experimente, mensure. Uma sala por vez, uma porta por vez, uma escolha por vez.

E assim vamos. Eu acredito num passado melhor no futuro. Mesmo com IA, com mudanças climáticas, com todos os ciclos globais de retração e expansão, com a persistente desigualdade. Acredito por duas razões: não há escolha (o passado se constrói quer a gente queira ou não) e porque temos à frente o que há de mais valioso como matéria-prima: escolhas a fazer.

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