Lidos nos idos de maio – livros e contos
Maio foi um mês interessante em leitura de livros e contos. Fui no caminho fácil, previsível até, ao seguir com a Maratona Julio Cortázar e ao me surpreender com um SciFi de Machado de Assis. Mas enveredei por gêneros e formatos que não me são habituais, incluindo calhamaços, YA e suspense. A ousadia rendeu frutos, com três ótimas experiências em textos nacionais. Vem comigo mergulhar nas leituras de maio.
Sobre a imortalidade de Rui de Leão
“Sobre a imortalidade de Rui de Leão” (Plutão) reúne dois contos de Machado de Assis, “Rui de Leão” e “O imortal“, duas narrativas sobre um mesmo fato que, embora não apresentem nenhuma cyborgue com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, são belas investidas do gênio Machado na ficção científica.
Gosto de imaginar as inspirações e gatilhos para as obras. Nestas, vejo um Machado ouvindo histórias e promessas de adeptos e embaixadores da (então) moderna e promissora ciência homeopática e, revirando sem pressa a colher em seu café na Confeitaria Colombo, lhe vem a ideia: e se um princípio homeopático tal desse a imortalidade a alguém? Como aproveitaria a eternidade? Seria-lhe uma dádiva ou um fardo?
E esta é a questão que se desenrola, revelando que mesmo num mundo imenso e repleto de coisas a se descobrir e experimentar, há de enfadonhar-se uma pessoa eterna. A abordagem é parecida com a que, mais de um século depois, Neil Gaiman traria às páginas de Sandman, com a personagem que vira imortal em meio a uma aposta entre Sonho e Morte.
É um deleite nos depararmos com temas que nos são tão caros como amantes de SciFi com a prosa absolutamente magnífica de Machado. E viva Machado de Assis!
O Metamorfo da Lua Quadrada
Direto do animadíssimo grupo de leitura coletiva dos companheiros do selo Saifers, fui presenteado com a leitura de “O Metamorfo da Lua Quadrada” (Saifers), thriller SciFi de Rogério Pietro. O autor de um dos melhores Hard SciFi que já li traz, nesse livro de 2021, uma provocação interessante: e se fosse possível extrair sentimentos das pessoas e converter emoções em matéria?
A história se passa em Neogeia, um planeta colonizado por uma sociedade baseada na Grécia, com filósofos, nomes e divindades gregas. É um mundo em guerra constante, e os filósofos (os cientistas tanto da Grécia antiga quanto de Neogeia) são convocados a exterminar esse mal. Mas acabando provocando a criação de algo muito pior, uma síntese de todo o mal de um planeta lacerado por décadas de conflitos. Coisa boa não tem como sair daí.
Temos ação e reflexão, sem cair em maniqueísmos e lições de moral, com uma escrita ágil e competente. Como sempre, Rogério nos brinda com uma meticulosa pesquisa. Termos gregos e elementos da mitologia tornam a história uma constante aula sobre o fomos e o que podemos ser quando temos o poder nas mãos – ou nos deixamos cegar por sua busca.
Não se engane com a idade de leitura de 12-18 anos sugerida pela Amazon. O “Metamorfo” não segue as fórmulas batidas das aventuras para jovens-adultos.
Fim do Jogo
A #MaratonaCortázar segue firme e forte. Agora, foi a vez do terceiro livro de contos de Julio Cortázar, “Fim do Jogo”, lido na coletânea “Todos os Contos” (Companhia das Letras). Essa publicação, de 1956, mostra um Cortázar mais maduro e ousado. Como em um jogo, temos histórias agrupadas em três grupos de complexidade crescente.
São pelos menos dois contos favoritos para a vida aí. Lendo na sequência, começamos a perceber os traços característicos do autor, seus temas mais caros e a forma como conduz as narrativas. A questão da dualidade (ou efemeridade) do eu seguem presentes, fortes, bem como a quebra de expectativas. Alguns truques soam como menos chocantes, pois usam recursos já explorados nos dois livros de contos anteriores, mas nenhum conto carece de magia por conta disso.
“Continuidade dos parques” abre o volume, uma narrativa fantástica incrível e carregada na metalinguagem, sobre um homem lendo um livro de suspense. As imagens de Cortázar seguem afiadas e líridas, como na passagem “Um diálogo palpitante corria pelas páginas como um arroio de serpentes.“
“A culpa de ninguém” é uma história tragicômica em que, no clímax, temos outra escolha de palavras de tirar o fôlego. Seguimos por outras narrativas (algumas, confesso, poderiam ser mais curtas), até outro petardo, “As mênades” e um surreal concerto de música clássica.
Daí chega-se a uma obra-prima. “O ídolo das Cíclades“, um petardo. Não vou falar nada. Apenas leia. Os contos seguintes brincam com o tempo: imortais, cartas que relatam fatos que só aconteceriam depois, um assassinato. Em alguns momentos, o diálogo com o leitor tem muito de Machado de Assis. Logo no começo de “O motivo“, escreve Cortázar: “Como quem não quer nada, já se passaram vinte anos e a coisa está mais que prescrita, de modo que vou contar e quem achar que estou inventado que vá fritar bolinhos.”
Depois de mais alguns relatos, outro conto absurdo de bom: “Axolotes“, puro Cortázar, mas também poderia ser Murakami (talvez Murakami falasse de enguias, mas ainda assim…). A história começa “numa manhã de primavera em que Paris abria sua cauda de pavão real depois da lenta invernada.” E fala sobre a relação de um homem e um axolote no aquário do Jardin des Plantes. Leia, leia.
Depois desse, até o incrível “A noite de barriga para cima” teve menos brilho do que merecia, e o conto final, que dá título ao livro, passou mais incompreendido do que amado.
O querido Alexandre Inagaki me desafio a fazer um TOP 5 contos de Cortázar. Atualizarei o ranking a cada livro da maratona. Com três volume lidos, já me vi forçado a deixar de fora vários contos fascinantes. Mas regras são regras. Até o momento, temos:
Top 5 contos de Julio Cortázar
- Casa Tomada
- O ídolo das Cíclades
- Axolotes
- Continuidade dos parques
- Carta a uma senhorita em Paris
O assassino das pétalas negras
Maysa Santiago é uma promissora autora de suspense-SciFi-com-coração. E temos tudo isso no conto “O assassino das pétalas negras” (Saifers), oferecido também em uma incrível versão impressa, de confecção artesanal. Trabalho fantástico que só valoriza uma história bastante bem elaborada.
A narrativa faz parte do universo ficcional criado por Maysa, que envolve viagens no tempo e investigações diversas, mas pode ser lida tranquilamente por quem nunca experimentou suas tramas antes.
Me agrada, no texto de Maysa, a sensibilidade como constrói personagens, diálogos e motivações. Aqui temos uma trama clássica de serial killer, com o elemento SciFi entrando para nos tirar do prumo e das opções óbvias de narrativas do gênero. E tudo isso em uma ambientação muito bem construída no interior de Minas Gerais, com direito a pão de queijo e simpáticas personagens locais.
Fim das religiões
Não sou muito fã dos calhamaços. Também não curto compromisso literário e fujo de séries que pretendem nos fisgar por volumes e volumes.
Ainda assim, me aventurei com um livro dos grandes, volume 1 de uma série que deve ter três títulos. Foi uma das melhores viagens literárias de minha vida.
“Fim das religiões“, de Luan Maia, é uma ficção científica pós-humanista/ transumanista que equilibra muito bem personagens cativantes, questões éticas e filosóficas e tiro-porrada-espadada-e-bomba, incluindo androides sensualizando. Um coquetel (molotov) perfeito.
A história se passa num futuro ao mesmo tempo muito distante e familiar, em que a humanidade MÓR-REU, se escafedeu, pirulitou, bateu as botas. Sobraram androides, que, à sua maneira, deram continuidade ao legado humano. Então, temos a humanidade representada por robôs, que Luan consegue tornar muito humanos. É fácil nos apegarmos às personagens, escolhermos nosso favoritos, nos irritarmos com suas escolhas equivocadas.
Destaco isso porque, como autor e leitor de SciFi, sei que esse é um desafio grande do gênero. Como unir tecnologia e sensibilidade.
A narrativa tem reviravoltas e uma construção de mundo sedutora. É de uma contemporaneidade intensa, com temas importantes colocados de forma sutil, não panfletária. De gêneros e sexualidade ao transumanismo, tudo está ali. E, como pano de fundo, nossa relação não com religiões enquanto grupos organizados, mas com a fé. Com a crença em algo maior, em propósito. Em um “depois”.
Um dos melhores SciFi que já li, que me capturou no esquema de pirâmide para finalmente concluir a saga nos próximos livros. Luan buscou criar uma obra universal. Não há elementos marcantes brasileiros ou uma busca por brasilidade (fora algumas expressões), mas referências globais diversas: cultura pop e nerd, o mundo dos games, literatura, filosofia e religiões, o mestre Isaac Asimov e até um rickroll (juro!). É uma história implorando por uma adaptação de Hollywood (Zack Snyder não, por favor).
P.S. Sou #Time_Ivan, dane-se.
P.S.2. Dre. Inebre concorda comigo.
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