A extinção da privacidade
Todos os novos usuários de telefones celulares da China precisarão escanear suas faces como determina uma lei que entrou em vigor nesta semana. Este é mais um passo na intensa política de uso de reconhecimento facial pelo governo chinês, o maior laboratório a céu aberto de como o uso de tecnologias sem qualquer freio podem afetar a sociedade.
Até agora, o que chega ao ocidente, filtrado pela escassa liberdade de expressão do gigante capital-comunista, é assustador. Basta acompanharmos o desenrolar dos protestos em Hong Kong e o esforço dos manifestantes em não se deixar identificar por câmeras de segurança.
Orwell era chinês?
Reconhecimento facial, controle das comunicações, gigantescos bancos de dados e o igualmente controverso sistema de crédito social (basicamente o episódio Nosedive, de Black Mirror, só que pra valer) fazem a China parecer o Lex Luthor global da privacidade. O país caminha para ser o primeiro em que o conceito de privacidade seja inteiramente extirpado da sociedade.
Utilizadas pelo próprio governo autoritário do país e com acesso crescente a dados produzidos por mais de 1 bilhão de pessoas, as avançadas tecnologias de reconhecimento facial e inteligência artificial — duas frentes em que a China nada de braçada — podem ter impactos sinistros e inéditos na vida dos chineses, sem que não haja qualquer órgão regulador que possa agir. Quem discorda do que é feito não tem a quem recorrer.
A China é aqui
Não que a China seja uma Lois Lane nessa história, mas é fácil culpar um regime autoritário e quase caricato como é a imagem do gigante asiático no ocidente. Ao utilizar recursos como desbloqueio facial em nossos celulares ou marcarmos familiares nos álbuns online e fotos em redes sociais, estamos sendo voluntários em experimentos similares. Sai um governo autoritário, entram empresas, fica a montanha de dados fornecida gratuitamente. No primeiro caso, pela força de leis draconianas. No segundo, em troca de um filtro bacana, uns segundos a menos para desbloquear o celular ou para não deixar passar o meme do momento. Em todos os casos, a privacidade torna-se um conceito em extinção.
Nenhum dado a mais. Nenhum direito a menos (será?)
Conhecer o outro é uma vantagem competitiva. O governo que conhece mais seus cidadãos que as pessoas ao governo tem vantagens sobre seu próprio povo. Idem para empresas, que cada vez nos conhecem mais e mais. Se não há governo que controle a si mesmo na China, é imperativo lutarmos para que as empresas que coletam nossos dados sejam transparentes no uso que pretendem dar a eles, que os armazenem de forma segura e, sobretudo, que possamos efetivamente ter controle sobre quem sabe o que sobre a gente.
Empresas hoje sabem exatamente onde você está agora, com quem, onde esteve nas últimas 24h e para onde provavelmente vai. Com quem você falou, o que comprou, o que comeu, que música ouviu, que seriado está vendo e por aí vai. Isso em si não é trágico, embora preocupante. A conta pode até fechar, desde que esse mar de informações não esteja numa terra sem lei.
Existem regulamentações, órgãos de controle e princípios pra isso, mas, como na luta por uma web saudável e democrática, não dá pra ficar apenas esperando que terceiros resolvam a pendenga pra gente. É uma briga pra encararmos continuamente, como consumidores, como indivíduos e organizados em sociedade, e pra ficarmos de olho em todos os movimentos do mercado e de governos (especialmente os com vocação autoritária), olho no olho, face a face.
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